sábado, outubro 15

Uma raiva a nascer-nos nos dentes


Sr. primeiro-ministro, depois das medidas que anunciou sinto uma força a crescer-me nos dedos e uma raiva a nascer-me nos dentes, como diria o Sérgio Godinho. V.Exa. dirá que está a fazer o que é preciso. Eu direi que V.Exa. faz o que disse que não faria, faz mais do que deveria e faz sempre contra os mesmos. V.Exa. disse que era um disparate a ideia de cativar o subsídio de Natal. Quando o fez por metade disse que iria vigorar apenas em 2011. Agora cativa a 100% os subsídios de férias e de Natal, como o fará até 2013. Lançou o imposto de solidariedade. Nada disto está no acordo com a troika. A lista de malfeitorias contra os trabalhadores por conta de outrem é extensa, mas V.Exa. diz que as medidas são suas, mas o défice não. É verdade que o défice não é seu, embora já leve quatro meses de manifesta dificuldade em o controlar. Mas as medidas são suas e do seu ministro das Finanças, um holograma do sr. Otmar Issing, que o incita a lançar uma terrível punição sobre este povo ignaro e gastador, obrigando-o a sorver até à última gota a cicuta que o há de conduzir à redenção.

Não há alternativa? Há sempre alternativa mesmo com uma pistola encostada à cabeça. E o que eu esperava do meu primeiro-ministro é que ele estivesse, de forma incondicional, ao lado do povo que o elegeu e não dos credores que nos querem extrair até à última gota de sangue. O que eu esperava do meu primeiro-ministro é que ele estivesse a lutar ferozmente nas instâncias internacionais para minimizar os sacrifícios que teremos inevitavelmente de suportar. O que eu esperava do meu primeiro-ministro é que ele explicasse aos Césares que no conforto dos seus gabinetes decretam o sacrifício de povos centenários que Portugal cumprirá integralmente os seus compromissos — mas que precisa de mais tempo, melhores condições e mais algum dinheiro.

Mas V.Exa. e o seu ministro das Finanças comportam-se como diligentes diretores-gerais da troika; não têm a menor noção de como estão a destruir a delicada teia de relações que sustenta a nossa coesão social; não se preocupam com a emigração de milhares de quadros e estudantes altamente qualificados; e acreditam cegamente que a receita que tão mal está a provar na Grécia terá excelentes resultados por aqui. Não terá. Milhares de pessoas serão lançadas no desemprego e no desespero, o consumo recuará aos anos 70, o rendimento cairá 40%, o investimento vai evaporar-se e dentro de dois anos dir-nos-ão que não atingimos os resultados porque não aplicámos a receita na íntegra.

Senhor primeiro-ministro, talvez ainda possa arrepiar caminho. Até lá, sinto uma força a crescer-me nos dedos e uma raiva a nascer-me nos dentes.

Nicolau Santos, expresso 15.10.11

Nota: É a raiva a nascer-nos nos dentes. A foto acima foi tirada esta tarde nas escadarias da AR, depois de termos galgado a 1.ª barreira do forte dispositivo de segurança. Acompanharam-me neste "acto tresloucado" a minha mulher, os meus filhos, amigos, colegas do SNS. Estamos prontos para tudo.

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4 Comments:

Blogger e-pá! said...

15.Out.2011: Rompeu-se o tabu…

Os protestos de rua, protagonizados pelos “indignados”, atingiram uma dimensão internacional, embora o seu âmbito – em termos de alternativas - seja ainda confuso.
Trata-se de um movimento que parece apostado em ultrapassar as peias do “nacionalismo pequeno burguês” (para usar uma terminologia marxista). De facto, o cerne da questão não está na capacidade e na imaginação em “lançar palavras de ordem” aparentemente mobilizadoras. Da História sabemos que as democracias burguesas e, agora, as neoliberais, são especialistas nos processos de construção de “frases adocicadas” e no inventar de “idealismos charlatanescos”, quase sempre chauvinistas, integrados num vasto processo de marketing e publicidade, pejados de slogans, vazias “moralidades” e hipócritas perversões (como é, p. exº., o “martelar” do anúncio de mudanças…).

A grande potencialidade deste movimento está na sua natural tendência para a radicalização e numa emergente capacidade de internacionalização. Na realidade, ontem, foi possível detectar que os “indignados” já não se satisfazem com o “aperfeiçoamento” do(s) sistema(s) políticos ou com promessas de reformas, sempre o soubemos, “cosméticas”.
Hoje, as bases políticas dos defensores dos sistemas democráticos “orgânicos”, que foram burilados (não mais do que isso) durante o séc. XX, começam a esboroar-se. Tornou-se cada vez mais notória a identificação de uma subjugação do Mundo (global) a manobras financeiras concebidas por mecanismos “filistinos”, i. e., acumulando tudo o que pode ser contabilizado em proveito próprio, passando por cima das pessoas.

O movimento dos “indignados” deve ter a consciência de que o poder financeiro se acastelou num bunker que gravita à volta de um “internacionalismo monetário”.
A resposta a esta perversão democrática e deriva monetarista deve assentar no exacto conhecimento das intenções do poder financeiro. Ele continuará a apostar em combater qualquer poder público, legitimado, que queira regular a Economia e as Finanças. Melhor dizendo: esconder-se-á por detrás dos” mercados” que não conhecem pátrias, não deixam rasto, nem se submetem a escrutínios.

Retomando o fio à meada, ontem, o movimento dos indignados deu sobejas mostras de estar determinado em dar um passo em frente. E o grande salto qualitativo foi a sua internacionalização. A subtil diferença é: o poder financeiro tende a “externalizar-se” na peugada dos mercados para defender-se; a contestação popular caminhou para a internacionalização no sentido de ganhar novas dinâmicas.
Não me parece que seja indiferente para o Mundo o que aconteceu, ontem, nos EUA, Austrália, Itália, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Espanha, Hong-Kong, ... e, finalmente, em alguns dos países emergentes como o Brasil.

A mensagem de Slavoj Žižek, ontem, na Liberty Plaza (Nova Iorque) sistematiza e mostra a profundidade das questões trazidas para a ordem do dia pelos chamados “indignados”:
“Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem...”. link

12:48 da tarde  
Blogger tambemquero said...

O Primeiro-Ministro defendeu a existência de cortes salariais (temporários por dois anos, no anúncio) na função pública com o argumento de que os trabalhadores do sector público auferem salários superiores aos do sector privado para funções e características similares.

A evidência a que se refere está, segundo creio, num artigo de 2001 de Pedro Portugal e Mário Centeno, publicado no Boletim Económico do Banco de Portugal, em Setembro de 2001. É possível que existam actualizações desses valores, embora não os tenha conseguido encontrar (e seria de elementar bom senso que tivesse sido pedida uma sua actualização).

O quadro seguinte, retirado do artigo, mostra que esse diferencial oscila entre os 25 e os 18% para as mulheres, e entre os 18 e 7% /8% para os homens. Em qualquer dos casos com a característica de o diferencial ser maior para os rendimentos mais baixos do que para os rendimentos mais elevados. A consequência óbvia do argumento de querer corrigir este “prémio” de salário por se trabalhar na função pública obrigaria a baixar mais nos rendimentos mais baixos. O que nas condições actuais teria sérias consequências de imagem.

Adicionalmente, o “prémio” de salário é maior para as mulheres, o que provavelmente reflecte apenas um enviezamento contra as mulheres no mercado privado de trabalho, em que para as mesmas funções recebem menos. Certamente não se quererá, com argumento de equalização salarial, importar esse tipo de discriminação para o sector público.

Daqui resulta que o argumento usado para justificar esta medida de contenção de despesa (retirar subsídio de férias e de Natal). Os 14% a que correspondem a retirada do subsídio de Natal e de subsídio de férias acrescem aos 5% a 10% de redução salarial do ano passado. O que para os escalões mais elevados corresponde a uma redução de cerca de 23% do salário bruto. Para estes níveis salariais, compare-se o “prémio” salarial que existia de 7 a 8%. Mais do que fica compensado, e que se poderá traduzir a médio prazo numa saída da função pública para o sector privado dos profissionais com maiores remunerações (incluindo aqui os sectores da educação, justiça, saúde, para além dos cargos dirigentes da Administração Pública). Não será no curto prazo por incertezas de conjuntura e elevado nível de desemprego, mas logo que se note uma animação na actividade privada será natural que esses movimentos surjam.

O argumento de Passos Coelho de maior “prémio” salarial na função pública é no sentido do efeito correcto, mas a decisão tomada, na sua magnitude, esmaga, e inverte, o prémio para as remunerações mais elevadas. Veremos se a prazo se traduzirá num problema de recursos qualificados para o sector público.

Pedro Pita Barros

7:44 da tarde  
Blogger DrFeelGood said...

«Dr. Passos, porque é que V. Exa. não abordou — no seu discurso — a renegociação das PPP do dr. Paulo Campos? Porquê? V. Exa. está a pensar em pagar tudo direitinho ao dr. Jorge Coelho? Meu caro, o Estado foi capturado por interesses privados. Se V. Exa. não reverter esta situação, o Estado deixará de merecer qualquer respeito. Eu não vou pagar impostos para depois V. Exa. depositar rendas nos cofres da Mota-Engil. Não vou. »

expresso 15.10.11

9:17 da tarde  
Blogger Clara said...

A democracia directa ocupou a escada da democracia partidária

Uma manifestação diferente da de 12 de Março ficou marcada pelo incidente que precedeu a assembleia popular em frente ao Parlamento
Num segundo, a confusão instalou-se. Atraiu os polícias e os repórteres que estavam na escadaria da Assembleia da República. A multidão dos indignados que repetia palavras de ordem no largo começou a chamar “fascistas!, fascistas!” aos polícias. Um homem que estava a sentir-se mal é transportado para o relvado, do lado nascente da escada. Os manifestantes pressionam as barreiras de protecção, a tensão cresce. O homem é transportado até ao cimo das escadas, as barreiras cedem. A polícia tinha recuado e os agentes do corpo de intervenção sustêm a investida.

“Estas são as nossas armas! Estamos a lutar pelos nossos direitos”, dizem os manifestantes na escadaria.

“Foi uma provocação policial”, disse Garcia Pereira, que atribuiu a agressão a um agente infiltrado.

Foi o ponto de viragem da manifestação. Um pouco antes de tudo acontecer, alguém foi aos microfones dizer “ocupa São Bento, ocupa o Parlamento”. Os organizadores silenciaram-o. A ocupação da escadaria era o “momento Petrogrado”, em escala reduzida com algumas vozes a pedir a “invasão” da AR. Acabaria por ser um momento “é só fumaça”, frase celebrizada numa manifestação no Terreiro do Paço por um primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, que foi cercado no Parlamento por uma manifestação nos idos do PREC.

Uma mudança no cenário

A principal consequência do incidente foi simbólica. A cenografia mudou. A assembleia popular, em que cada manifestante ia falar à multidão, devia ter ocorrido no largo ao fundo da escadaria. Ocupada pelos manifestantes, esta transformou-se num anfiteatro para os discursos em defesa da democracia directa.

“Vim por solidariedade com tudo o que se está a passar com estas situações de contenção. São sempre os mesmos a pagar. Não contribuíram para o despautério e para o despesismo”, dizia Paulo Correia, 68 anos designer de interiores. Que estava interessado em ver também como a geração mais nova se mobiliza. “O direito à indignação deve ser uma atitude concreta e assumida”.

António Alves, 26 anos – “trabalho a recibos verdes em cinema, faço montagem em filmes e televisão” – participava na manifestação sem esconder uma frustração. “Vai acabar o dia e as pessoas vão voltar para casa. Cada cidadão devia trazer pelo menos um ovo e atirá-lo à Assembleia da República. Os políticos tapam os ouvidos e não ouvem os gritos”.

Ao cair da noite, no Parlamento, um manifestante lembrou que os polícias também ficaram sem subsídios de férias e de Natal. E os manifestantes que tinham vaiado os polícias, aplaudiram-nos. Em Lisboa, nunca sabemos se pode ser Petrogrado ou se é só fumaça.

JP 16.10.11

9:53 da tarde  

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