O nosso SNS
SNS português e os nossos hospitais
JS, sexo masculino, raça caucasiana, de 66 anos de idade,
cidadão britânico a viver em Portugal há cinco anos, nascido e anteriormente
residente em Inglaterra, teve um acidente vascular cerebral. Foi atendido no
local e transportado de imediato pelo INEM para o Serviço de Urgência do
Hospital dos Covões, em Coimbra (agora do CHUC), hospital central de referência
da sua área de residência. Deu entrada seguindo a Via Verde dos AVCs, foi
observado, tratado, internado, evoluiu bem, teve alta. No estudo da circulação
carótido-vertebral feito por ecodoppler foi detectada uma estenose
significativa da carótida esquerda, que a angioTAC confirmou com indicação para
intervenção, na sequência dum acidente vascular a que se atribuiu natureza
isquémica. Por isso foi enviado à minha consulta.
Veio com a esposa, ambos simpáticos, cultos, educados,
britânicamente contidos, falando em inglês entremeado ocasionalmente com
algumas palavras, muito poucas, em português com um sotaque típico. Disse-lhe
que precisava de ser operado, e perguntei-lhe se para isso não preferiria ir a
Inglaterra. Respondeu-me, naturalmente em inglês: “Doutor, eu tive um AVC e ao
fim de meia hora estava a ser tratado – tratado, veja bem – neste hospital. No
meu país isso não seria possível! Por isso é aqui que quero continuar a ser
tratado. É neste hospital que eu quero ser operado.”
E foi. Fez-se-lhe endarterectomia carotídea esquerda, sem
intercorrências ou complicações, esteve internado quatro dias. Voltou passado
um mês, em consulta de controlo pós-operatório. Sempre acompanhado pela esposa,
sem sequelas evidentes de AVC, bem dispostos os dois. Exibe a cicatriz cervical, “You did a great job
here” - afirma. Prescrevo o clopidogrel, conversamos, conversa rápida de
consultório, o tempo (claro, ou não fosse ele inglês!), a política europeia, a
crise, o euro. Levantamo-nos, depois de me despedir da esposa estendo-lhe a
mão. Aperta-ma com a sua e diz, com alguma tremura no porte fleumaticamente
britânico: “You know, if I lived in my country I would be dead now. Portugal
saved my life. Obrigado.”
Podem crer que no momento fiquei emocionado. Disfarcei o
melhor que pude, acompanhei-os à porta do gabinete. É destes momentos –
pessoais, como este, ou apenas conhecidos através de outros - que se constrói o
enorme prazer de ter a nossa profissão. Basta o sentimento íntimo de ter feito
um bom trabalho, e que acabou bem, frequentemente reconhecido por colegas e, às
vezes, se calhar não muitas, pelos doentes. Mas este caso teve um sabor muito
especial, porque foi a opinião de um paciente estrangeiro esclarecido, que não
fala por ouvir dizer, com possibilidade de estabelecer comparações e de
escolher, e que deu fortemente preferência ao nosso Serviço Nacional de Saúde e
aos nossos hospitais.
Um SNS sob ataque de há vários anos para cá, em processo de
descaracterização, de restruturação que parece uma desestruturação, de redução,
e eliminação. Um SNS que trabalhava bem. Aquele doente inglês, ao pôr
frontalmente em causa o National Health Service, fala obviamente do NHS de agora,
depois da governação da Mrs. Thatcher. Depois das reestruturações
descaracterizações, fusões e eliminações que sofreu, muito na senda do que tem
vindo a ser feito por cá. Não do NHS que serviu de exemplo ao Mundo, e até deu
o nome ao nosso. É claro que o nome manteve-se, o serviço também, mas não são
nada do que eram, e os doentes sabem disso. Continua a haver grandes médicos e
óptimas instituições médicas na Grã-Bretanha, mas já não são o NHS que
costumava ser. E todo o esquema de assistência se ressentiu disso, agora que
nos Serviços médicos dos hospitais públicos por lá há pessoal administrativo
que toma parte em decisões que deveriam ser puramente clínicas. A minha emoção
ao ouvir o desabafo do paciente inglês tratado em Portugal, deveu-se também à
pena de termos entre nós algo de bom durante tanto tempo e os nossos doentes
tantas vezes não o apreciarem devidamente, e estarmos se calhar a resvalar no
sentido de a perder.
Mudar por mudar, não. Em equipa que ganha não se mexe, diz o
povo e o bom senso. Em momentos de crise há frequentemente a fraqueza, por
parte dos dirigentes menos esclarecidos, de mudar para ver o que é que dá, sem
o discernimento de atender ao que está bem e assim o manter. É claro que mais
tarde ou mais cedo virá a exigência de responsabilidades, e a exposição pública
do mal que foi feito e de quem o fez, mas em geral tarde demais para o
corrigir. E Portugal não pode dar-se ao luxo de deixar destruir o pouco que
dentro de si funciona bem. A Saúde é um exemplo disso, e um exemplo para o
estrangeiro, e matéria em que não se deve querer copiar o que vem de fora.
Carlos Manuel Costa Almeida
Etiquetas: s.n.s
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home