sábado, abril 11

Estado predador


A reforma do Estado reduz-se sempre, em última análise, à contratualização de serviços públicos assegurando privilégios a negócios privados
Nada como um momento de alguma incontinência verbal para a verdade vir ao de cima. Num “Fórum” da TSF desta semana, o secretário de Estado da Saúde, Leal da Costa, foi de uma clareza ímpar. Confrontado com dados do INE que confirmam que, na última década, há menos camas de internamento na rede de hospitais públicos e mais nas unidades privadas, enquanto diminuíram também os serviços de urgência, o governante foi claro.
Admitiu existir de facto uma transferência para os hospitais privados, mas, esclareceu, parte dessas transferências é suportada por recursos públicos, o que mostra que não há um alívio das contas públicas na saúde (sic).
Fica assim mais uma vez demonstrado que, para onde quer que olhemos, a famigerada reforma do Estado reduz-se sempre, em última análise, à contratualização de serviços públicos, assegurando privilégios a negócios privados, construindo, assim, um verdadeiro Estado paralelo. Não se diga, portanto, que o Governo falhou. Naquilo que era a sua verdadeira intenção, a coligação concretizou os seus verdadeiros intentos.
Claro está que na saúde o que se passa é particularmente dramático (pois acentua a desigualdade no acesso) e não resultou de uma única decisão isolada. Pelo contrário, trata-se do efeito  combinado de várias medidas que incentivaram o recurso a privados, enquanto delapidaram a capacidade das respostas públicas. Enquanto se assistia a uma subida das taxas moderadoras, a uma redução das camas nos hospitais públicos e a uma fragilização generalizada do funcionamento dos serviços, através de cortes sucessivos, nada se alterou do lado da ADSE — além, claro está, do reforço do financiamento pelos utentes. O resultado foi que para os funcionários públicos passou a compensar optar pelo privado, que se tornou mais apelativo de todos os pontos de vista. Se a isto somarmos a profusão de seguros de saúde e até a forma como, por exemplo, a banca exige seguros para conceder algum tipo de crédito, fica explicada a promoção da oferta privada e a desvalorização das resposta públicas.
Claro que nada disto seria problemático se assentasse em regras de mercado claras. O problema é que não assenta. Como bem tem explicado o economista norte-americano James Galbraith, a direita há muito abandonou a crença nos mercados livres como instrumento racional. Em o “Estado Predador”, Galbraith defende que, hoje, para a direita o laissez-faire é apenas um mito, ainda que útil na medida em que tem um efeito de ilusão, e que o que temos hoje é um Estado predador, ou seja, uma coligação de opositores à ideia de interesse público e que tem como propósito final reconfigurar as políticas públicas, de forma a que estas sejam um instrumento de financiamento de negócios privados.
Quando ouvirem falar em sucesso da estratégia de ajustamento, não se iludam. Estão mesmo a falar verdade.

Pedro Adão e Silva, expresso 11.04.15

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