Revisão da Lei de Bases da Saúde
A proposta de revisão da Lei n.º 48/90, de
24 de agosto (Lei de Bases da Saúde), apresentada por António Arnaut e João
Semedo é oportuna e justifica-se, nomeadamente, pelas seguintes duas ordens de
razões:
1.Expurgar a Lei de Bases da Saúde atual da
filosofia neoliberal. A Lei de Bases da Saúde de 1990 introduziu
no sistema de saúde português um paradigma de organização e gestão claramente
neoliberal, de fuga da gestão pública tradicional, vista como o grande problema
do sistema (em especial do Serviço Nacional de Saúde), para a gestão privada,
vista, esta, quase como o único modelo de gestão eficiente. De acordo com o
novo paradigma da gestão “privada”, criou-se o conceito de “sistema de saúde”,
até aí legalmente inexistente, deixando o SNS de ser “o sistema”, para passar a
ter, com força de lei, um compagnon de route, o setor privado;
criaram-se facilidades (v.g., mobilidade de profissionais do SNS para o setor
privado sem quaisquer penalizações, por exemplo, criando para os profissionais
que fossem trabalhar para o setor privado “dentro do sistema” uma licença de
longa duração especial, podendo, depois de um ano e até ao máximo de dez anos,
retornar ao SNS sem qualquer dificuldade, caso pretendessem voltar a fazê-lo; a
possibilidade de continuarem a descontar para a ADSE e para a Caixa Geral de
Aposentações, situação ainda hoje vedada aos profissionais em regime de
contrato individual de trabalho), e condições, para o desenvolvimento do setor
privado (v.g., a designação “hospital”, até aí reservada apenas ao setor
público, passou a poder ser utilizada também pelo setor privado; passou a ser
permitida a criação de seguros privados de saúde; criaram-se novas formas
jurídicas de organização e gestão dos hospitais públicos próximos das empresas
e da gestão privada, como foi o caso dos Hospitais “Sociedades Anónimas”, dos
Hospitais “Parcerias-Público-Privado”, e dos hospitais públicos com gestão
privada; foram introduzidas na gestão pública dos serviços de saúde regras
próximas da gestão privada (v.g., contratos individuais de trabalho e, numa
primeira fase, a livre escolha como método de recrutamento; dos mapas de
pessoal, que vieram substituir os tradicionais quadros de pessoal como
instrumento público de gestão; ou dos processos de aquisição de bens e
serviços, que, ao invés de concursos limitados ou públicos, passaram a ser
feitos, em regra, por ajuste direto).
Com a atual Lei de Bases da Saúde abriu-se,
assim, e permite continuar a abrir-se, o caminho à gestão privada/“privatização”
do sistema de saúde, de um modo que parece estar no limiar do início da
destruição do SNS e da sociedade democrática e republicana.
Repensar, e equilibrar saudavelmente, esta
“fuga para a gestão privada/‘privatização’” do sistema de saúde é, por isso,
uma iniciativa não só oportuna e urgente, como vem de encontro às chamadas de
atenção que têm vindo a ser feitas, sobretudo nas duas últimas décadas, por
autores como Paul de Gay (sociólogo, professor da Copenhagen Business School) e
Philip Petit (filósofo irlandês, professor da universidade americana de
Princeton), sobre a necessidade de rever os caminhos da nova gestão pública (new
public management) abertos com o advento do neoliberalismo.
2.Em defesa do neorrepublicanismo. A
Lei de Bases da Saúde de 1990 abriu fortes brechas no republicanismo, entendido
aqui, sobretudo, como ideário político.
É sabido que um dos princípios republicanos
básicos é o de que “o poder não se herda, merece-se”. No que se refere à
administração e gestão do sistema, com a Lei de Bases da Saúde de 1990 passou a
imperar a lógica inversa: introduziu-se, em larga escala, a política dos jobs
for the boys, com a substituição dos filhos de algo (fidalgos) pelos filhos
dos partidos (“filiados”, familiares ou amigos) (a que chamaríamos “os filhos
da república”); as carreiras profissionais foram destruídas ou seriamente
afetadas; os concursos públicos deixaram de existir ou tornaram-se irrelevantes
como método de recrutamento; a gestão pública desprofissionalizou-se com o fim
do estatuto de funcionário público; em suma, passou a haver um desrespeito
generalizado da ética (ou virtudes) republicana (s), nomeadamente, do mérito,
da igualdade, da justiça/equidade, em última instância, da liberdade.
A proposta de nova Lei de Bases da Saúde
vem, ao menos no setor da saúde, de encontro às preocupações do
neorrepublicanismo, movimento que veio colocar no centro do debate político, um
pouco por todo o lado, o conceito de república e de republicanismo, e defender
a necessidade da atualização destes conceitos e da sua defesa.
O neorrepublicanismo nasceu no âmbito da
“recuperação do paradigma republicano nos estudos históricos norte-americanos
nos anos 60”, diz Ricardo Leite Pinto (Uma introdução ao neorrepublicanismo,
Análise Social, vol. XXXVI, 158-159, 2001, 461-485), envolvendo vários
autores, ganhando, contudo, particular ênfase, sobretudo com o aparecimento, em
1997, da obra Republicanismo: Uma teoria da liberdade e do governo, da
autoria de Philip Petit, politólogo e filósofo irlandês, professor da
Universidade de Princeton (New Jersey, EUA).
Parecem-me estar de acordo com a ética, as
virtudes e os objetivos neorrepublicanos, na proposta de nova Lei de Bases da
Saúde, nomeadamente, os seguintes aspetos: (1) a revalorização da gestão
pública da saúde; (2) a defesa do papel central do Serviço Nacional de Saúde no
sistema de saúde português; (3) a necessidade de clarificação do papel do setor
privado, visto como complementar e não concorrencial do setor público; (4) a
importância primeira do Estado na defesa da saúde pública; (5) uma abordagem
positiva (de construir o SNS e não destrui-lo) dos princípios da nova gestão
pública (uma gestão empresarial, sim, mas não necessariamente privada dos
serviços e instituições de saúde); (6) a defesa do concurso público, logo, do
mérito, da igualdade, da publicidade e da transparência, como meio “de escolha
dos órgãos dos titulares dos órgãos de administração, fiscalização e consulta
das entidades que integram o SNS”; (7) o reconhecimento do “regime legal de
carreiras das profissões de saúde” para todos os profissionais que trabalham no
SNS como instrumento de defesa do SNS; (8) a formação permanente como garantia
da sobrevivência e qualidade do SNS; (9) a participação e consulta dos
interessados.
Numa ótica neorrepublicana, ficam, contudo,
ainda, por referir na proposta da lei de bases dois aspetos que me parecem
fundamentais: (1) a obrigatoriedade da fixação clara do limite dos mandatos dos
órgãos de administração; (2) a obrigatoriedade da avaliação de desempenho dos
referidos órgãos.
Como bem diz o professor Paulo Ferreira da
Cunha (Princípio Republicano e Virtudes Republicanas, Revista de
Mestrado em Direito, Osasco, Ano 8, n.º 2, p.145-174), aqui aplicável,
“[...] é inegável que a república democrática, qualquer república democrática,
só vive no quotidiano pelas virtudes republicanas, e pela virtude em geral”,
[...] sendo de “todo o modo muito importante que as repúblicas saibam precaver-se
dos perigos que as ameaçam”.
João Aguiar Coelho, JP 08.02.18 link
Lei de Bases da Saúde link
Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde link
Comentário ultra leve: Não podíamos estar mais de acordo. O jogo da revisão parece-nos viciado de início com a nomeação de Maria de Belém. A eterna cromo da Saúde, adepta do pacto para a saúde, cavalo de Tróia da estratégia de franquear as portas do serviço público aos privados.
1 Comments:
A actual Direcção da APAH, sobre este assunto, nada...
Transformou-se numa agência de formação (realizada em instituições amigas) a preço mínimo de 300 euros.
Ao que (esta Direcção da APAH) chegou!
OBS: Só hoje já recebi 3 emails, do secretariado desta Direcção da APAH, publicitando acções de formação...com preços que variam entre os 300 e os 600 euros!
Ao estado que isto chegou!
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