terça-feira, julho 6

Sophia de Mello Breyner Andresen

O meu poster tinha colado à esquerda este poema.
Obrigado Sophia, por me teres ajudado ao sonho.

Che Guevara

Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de
consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das
Igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece
.

Lisboa, 1972


“Fernando Pessoa” ou “Poeta em Lisboa”

Em sinal de sorte ou desgraça
A tua sombra cruza o ângulo da praça
(Trémula incerta impossessiva alheia
E como escrita de lápis leve e baça)
E sob o voo das gaivotas passa
Atropelada por tudo quanto passa

Em sinal de sorte ou de desgraça

Lisboa, 1973


Um texto genial sobre o processo criativo.
A poetisa explica com minúcia inexcedível, direi, comovente, como sente e cria a poesia.
Num país de poetas, Sophia de Mello Breyner Andresen é das maiores.
A leitura da sua obra dá-me orgulho em ser português.
Quantas bandeiras eu não poria na varanda por Sophia.

Arte Poética IV

Fernando Pessoa dizia “Aconteceu-me um poema”.
A minha maneira de escrever fundamental é muito próxima deste “acontecer”. O poema aparece feito, emerge, dado ( ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto.
É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de, na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas. Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.
Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador.
É difícil descrever o fazer um poema. Há sempre uma parte que não consigo distinguir, uma parte que se passa na zona onde eu não vejo.
Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial de atenção, numa tensão especial da concentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o “poema todo” e não apenas um fragmento. Para ouvir o “poema todo” é necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não intervenha, é preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que quando o poema se quebra, como um fio de ar, o meu trabalho, a minha aplicação não conseguem continuá-lo.
Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como já feito? A esse “como, onde e quem” os antigos chamavam Musa. É possível dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão o subconsciente, um subconsciente acumulado, enrolado sobre si próprio como um filme que de repente, movido por qualquer estímulo, se projecta na consciência como num écran. Por mim, é-me difícil nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível, distinguir se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em mim se inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível – como a película de um filme – ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir de uma obstinada paixão por esse ser e aparecer.
Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever.
Assim algumas vezes o poema aparece desarrumado, desordenado, numa sucessão incoerente de versos e imagens. Então faço uma espécie de montagem em que geralmente mudo não os versos mas a sua ordem. Mas esta intervenção não é propriamente “intervir” pois só toco no poema depois de ele se ter dito até ao fim. Se toco a meio o poema nas minhas mãos desagrega-se. O poema “Crepúsculo dos deuses” (Geografia) é um exemplo desta maneira de escrever. É uma montagem feita com um texto caótico que arrumei: ordenei os versos e acrescentei no final uma citação de um texto histórico sobre Juliano, o Apóstata.
Algumas vezes surge não um poema mas um desejo de escrever, um “estado de escrita”. Há uma aguda sensação de plasticidade e um vazio, como num palco antes de entrar a bailarina. E há uma espécie de jogo com o desconhecido, o “in-dito”, a possibilidade. O branco do papel torna-se hipnótico. Exemplo dessa maneira de escrever, texto que diz esta maneira de escrever, é o poema Coral:
Que poema, de entre todos os poemas,
Página em branco?

Outra ainda é a maneira que surgiu quando escrevi o Cristo Cigano: havia uma história, um tema, anterior ao poema. Sobre este tema escrevi vários poemas soltos que depois organizei num só poema longo.
E por três vezes me aconteceu uma outra maneira de escrever: de textos que eu escrevera em prosa surgiram poemas. Assim o poema “Fernando Pessoa” apareceu repentinamente depois de eu ter acabado de escrever uma conferência sobre Fernando Pessoa. E o poema “Maria Helena Vieira da Silva ou o itinerário inelutável” emergiu de um artigo sobre a obra desta pintora. E enquanto escrevi este texto para a Crítica apareceu um poema que cito por ser a forma mais concreta de dar a resposta que me é pedida:

Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente

Durante vários dias disse a mim própria: tenho de responder à Crítica. Sabia que ia escrever e sobre que tema ia escrever. Escrevi pouco a pouco, com muitas interrupções, metade escrito num caderno, metade num bloco, riscando e emendando para trás e para a frente, num artesanato muito laborioso, perdida em pausas e descontinuidades. E através das pausas o poema surgiu, passou através da prosa, apareceu na folha direita do caderno que estava vazia.
Ninguém me tinha pedido um poema, eu própria não o tinha pedido a mim própria e não sabia que o ia escrever. Direi que o poema falou quando eu me calei e se escreveu quando parei de escrever. Ao tentar escrever um texto em prosa sobre a minha maneira de escrever “invoquei” essa maneira de escrever para a “ver” e assim poder descrever, Mas, quando “vi”, aquilo que me apareceu foi um poema.

Etiquetas: