domingo, junho 17

Médicos: relação público/privado

Caro É-Pá:link

1. Usando de maior rigor, ameaça é apenas o risco de acontecer qualquer coisa de mau. O exercício de medicina liberal pela grande maioria dos profissionais, em acumulação com funções no SNS, não é uma ameaça, tem sido um prejuízo para o SNS, efectivo, consumado, desde o início do SNS, para não irmos mais atrás. Só não é ressarcível perante os tribunais porque o Estado é conivente e o maior culpado: podendo evitá-lo, não o faz, antes sugerindo uma mal sã composição de interesses, do tipo “pago pouco, mas dou outras vantagens por fora…” Para o É-Pá, parece-lhe estarmos “em presença de um "espantalho" ou da repetição exaustiva de argumentos que valem essencialmente pela sua repetição”. Não acrescentarei qualquer outro argumento, não por má consciência, mas porque os já aduzidos me parecem mais do que suficientes, se analisarmos à luz da razão. Mas não resisto a dizer que a vivência hospitalar de muitos de nós que referi, e os exemplos que escolhi não são de um passado distante: tudo continua nos mesmos termos nos dias de hoje. Ou:

- não é verdade que a falta de incentivos é frequentemente referida, a propósito ou com menor propósito, para justificar inúmeras deficiências do SNS? (Também eu defendo a sua utilidade e necessidade, mas só num contexto revisto e alterado);

- não continuam a ser frequentes os casos em que, não podendo ou temendo aceitar a espera de vez no SNS, o doente é operado na semana seguinte em regime privado?

- o número de intervenções por dia útil e por sala e o número de intervenções/ano por cirurgião não continuam escandalosa e perigosamente baixos?
Que mais faz falta para termos sintomas bastantes do escasso comprometimento médico, imprescindível para as coisas darem a volta?

2. Por onde tem andado o É-Pá para poder afirmar “Penso que número significativo dos médicos hospitalares do quadro dos SPA (desconheço as percentagens exactas) estão em regime de exclusividade”? Também eu não tenho percentagens exactas, mas não duvido que estão em muito acentuada minoria, sobretudo nas áreas cirúrgicas e nas faixas etárias abaixo dos 60 anos, porque a aproximação da idade da reforma torna a exclusividade mais atractiva.
Como não se apercebeu de que nos HH-SA, depois HH-EPE, os médicos optaram na sua quase totalidade (não conheço qualquer excepção) por manter o estatuto que traziam dos HH-SPA e de que as novas contratações, feitas ao abrigo do estatuto de EPE, foram em ínfima minoria?

Claro que ao defender a não acumulação pelos profissionais de saúde não era nos contratos que refere “(alguns a 10 outros a 20 h/semana ...)“, visando resolver situações pontuais e concretas, que estava a pensar. De resto, muito mau seria que estes, cuja “relação, ou (o) entrosamento, com as áreas clínicas hospitalares organizadas é nula”, como muito bem observa, não fossem ínfima minoria.
Quando partimos de premissas erradas, como fez em ambos os casos, toda a construção cai pela base.

3. Também pretendo que fique claro que as “empresas de iniciativa profissional (médicos, em regra)” não eram o que tinha em mente quando me referi a "medicina privada organizada". Essas empresas de iniciativa profissional “estão acantonadas em nichos de mercado", como diz (principalmente área de exames de diagnóstico e terapêutica: análises, RX, …, Reabilitação), embora representem parte com significado concorrencial.

4. Quanto ao resto, e atendendo a que entraríamos num domínio em que os argumentos derivados da “teia de afectividades” parecem insuperáveis, nada tenho a dizer que não tenha já dito. Para quê repetir?

É melhor aceitar a sua sugestão: não celebrar, mas ir beber um copo …

AIDENÓS

3 Comments:

Blogger e-pá! said...

Caro aidenós:

Todos temos experiência hospitalar.
Não me vai subtrair isso.
A história do tipo "pago pouco, mas dou outras vantagens por fora…" é uma longa história do antes SNS, mais própeiamente do salazarismo, com outros termos mas com o mesmo sentido: "paguem mal aos médicos, mas não os chateiem"... Esta evocação foi muitas vezes, ironicamente, aduzida, no ainda não totalmente historiado "confronto" com os profissionais médicos, protagonizado pela dupla L Beleza/C Freire.
Mas não pretendo regressar à história desses tempos. Nem do fascismo, nem de Leonor Beleza.

O que eu sublinhei por me parecer excessiva foi a situação (relação público/privado), referenciada como sendo importante ameaça ao SNS. Mais, acrescentei, que essa situação, tem tido evolução diferente da que defende.
Tenho de insistir de que não julgo defensável considerar ... "que tudo continua nos mesmos termos nos dias de hoje".

Assim:

1.
a) É mera estultícia a consideração que reivindicações de incentivos por parte de um grupo profissional possam ser consideradas um facto aberrante ou pernicioso num quadro de serviço público.
b) Mais deslocado será tirar ilações sobre esse facto, em termos de cumprimento de funções.

2.
a) Hoje, ou pelo menos desde há um ano, em grande número de Hospitais, existe em relação às intervenções cirúrgicas um sistema de informação e controlo - SCIG.
b) Tem a noção que um número significativo de doentes consulta os Serviços, por e-mail, a fim de saber a sua posição relativa na lista de espera?
c) Pelo que aberrações, como a que refere, de "temendo aceitar a espera de vez no SNS, o doente é operado na semana seguinte em regime privado" serão quando muito, vai-me desculpar, eventuais episódios do passado.

3.
a) O nº. de intervenções/dia útil/sala não pode crescer exponencialmente;
b) O doente depois de operado não é "lançado aos bichos". Vai ocupar uma cama no Serviço respectivo, onde terá uma demora adequada á sua situação clínica
c) Sei que as taxas de ocupação em alguns serviços cirúrgicos estão longe de estar optimizadas.
d) Tal facto, criticável em termos de performance, não deve fazer perder a noção de que a capacidade hospitalar é finita (a rotatividade esgota-se), que a progressão produtiva tem tectos e não poderá ser esticada "ad eternum".
e) Finalmente, a redução lenta mas progressiva das listas de espera cirúrgicas, é um mero dado estatistico ou representa ganhos de eficiencia no trabalho hospitalar?

4.
a) Terá de me conceder que o comprometimento médico não pode ser o único, nem o principal, "bode expiatório" para, como afirma: "as coisas darem a volta", no meio hospitalar.
b) Inerente a esta necessidade de reverter situações (que todos sabemos que estão mal) destacam-se profundos problemas de organização, de direcção, de gestão e informação.
c) Um detectável sub-aproveitamento das capacidades cirúrgicas dos HH's do SNS, não terá a ver com opções estratégicas que, não passam por médicos que acumulam ou não mas, por exemplo, pela implementação da cirurgia de ambulatório?
d) Não é, portanto, justo fixar-nos em epifenómenos, que existindo, são cada vez menos relevantes.

5.
a) É pena não serem conhecidos os números relativos a pessoal médico, na área hospitalar, em exclusividade, porque passamos a viver de impressões;
b) Todavia, na área cirúrgica que, nesta troca de impressões, veio a talhe de foice, é cada vez mais notória opção pela exclusividade;
c) Mais significativa será, ainda, a adesão na área de Medicina Interna;
d) Isto é, nos 2 pilares clínicos dos Hospitais - Medicina Interna e Cirurgia Geral - a tendência cairá para o lado da exclusividade.
d) Concedo, por outro lado, que nas especialidades directas (médico-cirúrgicas)- Oftalmologia, ORL, Ginecologia, Dermatologia, etc - a situação será, substancialmente, diferente.

6.
a)Quando insisto que o problema da acumulação público/privado, não é um problema do futuro, baseio-me, no facto, de se verificar uma inexorável e silenciosa extinção das carreiras médicas e, ainda, no actual (e futuro) regime de trabalho em implementação - a contratação.
b) Esta situação de pecaridade, sejamos objectivos, permite resolver as situações anómalas detectadas.
c) Mas, para além disso, não tenhamos dúvidas é que este último regime de trabalho - independentemente do horário - contribuirá, por falta de entrosamento, para a derrocada dos serviços hospitalares organizados e clinicamente eficientes.
d) E assim, temos a "pescadinha de rabo na boca".

7.
a) Alguma vez os orgãos de decisão públicos da área da Saúde mostram vontade, pressa, ou determinação, em "separar as águas"?
b) Não o fizeram, nem estão interessados nisso porque, nessa situação, teriam obrigatoriamente de definir as regras do jogo e esta é a última coisa que desejam ou estão em condições de o fazer.
c) De facto, nesta situação, estou de acordo com afirmações de Constantino Sakellarides quando afirma que o Governo não tem uma estratégia clara e definida para a Saúde e, não o iria fazer, só para resolver o problema das relações público/privadas dos médicos ou de outros profissionais da saúde.
d) Na realidade, sabemos que "valores mais altos se alevantam".

Resumindo, para não ficarmos só por questões e especulações.

A existência de situações de eventual promiscuidade merece o meu activo repúdio.
Só que divergimos na sua solução.
Ou há uma definição clara, objectiva e rigorosa do campo público e do espaço privado, quando a tudo, incluindo contratualizações, convenções, acordos, programas, futuro, etc. e os médicos devem ser obrigados a optar;
Ou, num sistema de "mistura de águas", onde a indefinição prolifera, os zig-zags são constantes, os compromissos velados abundam, as responsabilidades estão diluidas, os médicos devem gozar das liberdades, legalmente e actualmente, consagradas.
As prevaricações devem ser tratadas na sede própria, ie, nos Hospitais e por quem de direito: as direcções de Serviço, o Director Clínico, o CA, e, como todos os cidadãos, nos Tribunais.
Cercear liberdades, preventivamente, é sempre o pior caminho.
Faz-me lembrar os argumentos sobre a imperiosa necessidade de promover a luta anti-terrorista, para de seguida, condicionarem, aos cidadãos, liberdades fundamentais.
É que sendo verdade que politica e humanamente condeno o terrorismo, não suporto olhar para Guantámano, ver videos ou fotos de Abu Ghraib, sentir que fomos "relais" aeroportuários de tráfico de prisioneiros, etc.

Aí não festejo, nem bebo 1 copo.
Indigno-me!

1:56 da manhã  
Blogger e-pá! said...

Adenda:

Em muitas das situações controversas que ganharam "força" e subsistem - devo reconhecer - na área cirúrgica, deve o "mal" ser dividido pelas aldeias:
- médicos, gestores, criadores do malogrado PECLEC, sector privado organizado, sector social e outros interesses, nomeadamente, políticos (...as "chicanas" parlamentares sobre as LEC), etc.
Mas, não deixe os médicos, sozinhos... neste pântano (como diria o Engº. Guterres).
Esperemos que o SGIC tenha outro rumo... mas, como se deve recordar, as "ameaças" do sector social já pairam no ar!
Outros sectores da área da Saúde, aparecerão...
É o complexo "Mundo Hospitalar" a que me referia no 1º. comentário.

11:13 da manhã  
Blogger tonitosa said...

Esta matéria de debate entre os colegas E-PÁ e AIDENÓS já noutras ocasiões foi abordada no Saúde SA.
E no centro acaba por estar a "honestidade" dos trabalhadores-médicos. No entanto, sabemos que não são os únicos profissionais de saúde que acumulam funções públicas com privadas.
Para mim, o problema não está na acumulação de funções. Pode estar, e em alguns casos temos a percepção clara de que existe, na falta de ética dos profissionais. Mas não generalizemos. Se o fizermos seremos injustos.
Mas, se o problema existe, como resolvê-lo?
A solução poderá nem ser complicada. Em primeiro lugar é possível e desejável que todos os profissionais em acumulação de funções sejam sujeitos a uma "espécie de registo de interesses" ficando a saber-se onde exercem funções.
Depois haverá que, no SNS, obter informação que permita conhecer a sua "produtividade" em ligação com a dos serviços onde está integrado. Se é cirurgião, por exemplo, o número de intervenções em que participa não pode afastar-se (muito) da média de um cirurgião diligente, atenta a complexidade das intervenções. E o mesmo se há-de verificar em relação aos serviços dos hospitais.
Se a taxa de ocupação do BO ou das camas cirúrgicas é baixa, cabe aos gestores questionar os responsáveis.
E se o tempo de espera é excessivo há que avaliar as causas: falta de recursos ou baixa produtividade?
E se o número de MCDT's realizados no exterior é julgado anormalmente alto, o caminho deve ser idêntico.
Assim, e do meu ponto de vista da forma mais correcta, se porá fim aos abusos. E devem ser penalizados aqueles que não cumprirem com os seus deveres. Mas, e esta não é matéria de somenos importância, os dirigentes não podem ficar de fora do processo. Porque entre colegas, por vezes, há cumplicidades.
Enfim, um bom sistema de informação (a cuja falta ainda recentemente se referiu o Xavier) é imprescindível para que isto se torne possível. Mas não basta ter informação é preciso "olhar para ela" e há gestores de topo que "têm pouco tempo para o fazer..." e eles próprios não são um bom exemplo para os restantes colaboradores.
A situação actual está fortemente influenciada por um longo passado de HH SPA's onde nada dsito era preocupação e por isso há que contar com a resistência de interesses instalados. Cremos, no entanto, que com a empresarialização dos hospitais se iniciou uma nova fase de gestão onde questões como esta começaram a ser matéria relevante.
Em conclusão: a acumulação não é má em si mesma e até pode contribuir para a descompressão no SNS. O que é desejável é que se faça com honestidade e transparência de processos.

12:36 da tarde  

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