Distraídos, parvos, impotentes?
foto JMF
Parabéns ao Aidenós por mais este excelente post link em que cruza dois negócios actualmente sob foco dos media e com muito (dinheiro) em comum:
• Farmácia concessionadas por hospitais;
• Genéricos, no meio de guerra influência da ANF e do Sr. Bastonário.
Depois de Aidenós nada mais resta para dizer sobre a luta de influência (poder, dinheiro, vantagens) ou sobre as posições “evolutivas” do Sr. Bastonário quanto aos genéricos e ao carácter sagrado da prescrição.
Sobre as farmácias concessionadas é de reconhecer que a ideia de base é boa, porque vocacionada para aumentar a concorrência nas farmácias, melhorar o acesso ao medicamento e a qualidade da sua distribuição (ouvimos falar em unidose). Acresce que a associação de farmacêuticos privados permitia ultrapassar os problemas da função pública, da escassez de verbas orçamentais para investimento, da menor flexibilidade, eficiência e qualidade de atendimento.
O que vimos depois pode ser produto de empreendorismo mas não o é menos do “fosso que separa o Estados dos privados de saúde, em capacidade de controlo e sofisticação”, como alguém escreveu aqui no saudesa.
Aos empreendedores louva-se a capacidade de rapidamente terem estruturado e posto a funcionar farmácias de qualidade e, ainda, o saberem oferecer condições aliciantes aos hospitais, partilhando os sobrelucros, fruto da confusão e ausência de regras que caracteriza o mercado de genéricos actualmente.
Os laboratórios rapidamente se adaptaram à nova realidade dos genéricos, primeiro criam dificuldades à sua introdução, por via legal, depois quando já estão no mercado, multiplicam o número de marcas e mantêm os preços altos – assim asseguram bons lucros para os medicamentos originais e para os genéricos, que irão canabilizar aqueles (devagarinho). Pelo meio percebem que podem deslocar as elevadas despesas em marketing entregando-as em ofertas às farmácias. Sobre este assunto vale a pena ler o excelente artigo de MCA no JNegócios.link
As farmácias colhem sobrelucros e obtêm margens astronómicas nos genéricos, como o artigo referido mostra, e só esperam pelo triplo Jackpot, quando se concretizar:
• Produção de genéricos pela ANF;
• Aquisição por concurso público de um só genérico aos laboratórios;
• Possibilidade da farmácia substituir por genéricos a prescrição do médico.
O Estado parece distraído e perdido nos vários papéis nos medicamentos, legislador e regulador, principal pagador, representante dos doentes e dos contribuintes, fiscalizador.
No referido artigo há 3 coisas que o autor não refere e que me parecem importantes:
1. Os médicos podem “cair em tentação” de prescrever o que lhes interessa, porque “quem paga é o doente ou o Estado”. Mas aí temos a moderar os princípios éticos da nossa profissão e a Ordem, que não deixará de promover a prescrição ética, isto é, em medicamentos equivalentes somos eticamente obrigados a prescrever o mais barato. Penso que a OM iniciará brevemente uma campanha pública nesse sentido.
2. Não são só os doentes que pagam os sobrelucros que a “confusão” dos genéricos propicia. O Estado também paga, e não é pouco, e através dele todos nós pagadores de impostos. Ora a saúde é um dos grandes contribuintes para o défice e endividamento do Estado e como uma das áreas em que há maior desperdício é a do medicamento (30% da despesa em saúde) segue-se, neste governo ou no próximo, o fim daquela confusão.
3. Ninguém acredita que o Estado, regulador e representante dos doentes, esteja desatento e que assim vai continuar, deixando que se instale a anarquia quanto ao número de marcas de genéricos, mantendo os preços elevados e permitindo que as ofertas da indústria não se repercutam para o pagador (doente e Estado). Doutro modo caíram no ridículo de vigiar nuns medicamentos margens de 18,5%, noutros permiti-las em mais de 60%, ou continuar a avalanche de marcas que se encarregará de proteger o conservadorismo de prescrição (ainda que não ético) e os atropelos à lei de manutenção de stocks nas farmácias.
Deixo assim duas questões:
• O que acontecerá às farmácias concessionadas quando o Estado repuser a normalidade no mercado de genéricos, baixando os preços, forçando a repercussão das ofertas em quantidade para o pagador e regulando o número de marcas?
• Porque não se difunde, na net e nos locais de venda, os genéricos mais baratos comparados com os de “marca” e não se permite ao doente a substituição por esse medicamento nas farmácias, assumindo que com isso desresponsabiliza o médico prescritor? Talvez assim o mundo da “influência” ficasse mais pequeno, embora parvo (“pequeno”) é mesmo o que ele já é.
• Farmácia concessionadas por hospitais;
• Genéricos, no meio de guerra influência da ANF e do Sr. Bastonário.
Depois de Aidenós nada mais resta para dizer sobre a luta de influência (poder, dinheiro, vantagens) ou sobre as posições “evolutivas” do Sr. Bastonário quanto aos genéricos e ao carácter sagrado da prescrição.
Sobre as farmácias concessionadas é de reconhecer que a ideia de base é boa, porque vocacionada para aumentar a concorrência nas farmácias, melhorar o acesso ao medicamento e a qualidade da sua distribuição (ouvimos falar em unidose). Acresce que a associação de farmacêuticos privados permitia ultrapassar os problemas da função pública, da escassez de verbas orçamentais para investimento, da menor flexibilidade, eficiência e qualidade de atendimento.
O que vimos depois pode ser produto de empreendorismo mas não o é menos do “fosso que separa o Estados dos privados de saúde, em capacidade de controlo e sofisticação”, como alguém escreveu aqui no saudesa.
Aos empreendedores louva-se a capacidade de rapidamente terem estruturado e posto a funcionar farmácias de qualidade e, ainda, o saberem oferecer condições aliciantes aos hospitais, partilhando os sobrelucros, fruto da confusão e ausência de regras que caracteriza o mercado de genéricos actualmente.
Os laboratórios rapidamente se adaptaram à nova realidade dos genéricos, primeiro criam dificuldades à sua introdução, por via legal, depois quando já estão no mercado, multiplicam o número de marcas e mantêm os preços altos – assim asseguram bons lucros para os medicamentos originais e para os genéricos, que irão canabilizar aqueles (devagarinho). Pelo meio percebem que podem deslocar as elevadas despesas em marketing entregando-as em ofertas às farmácias. Sobre este assunto vale a pena ler o excelente artigo de MCA no JNegócios.link
As farmácias colhem sobrelucros e obtêm margens astronómicas nos genéricos, como o artigo referido mostra, e só esperam pelo triplo Jackpot, quando se concretizar:
• Produção de genéricos pela ANF;
• Aquisição por concurso público de um só genérico aos laboratórios;
• Possibilidade da farmácia substituir por genéricos a prescrição do médico.
O Estado parece distraído e perdido nos vários papéis nos medicamentos, legislador e regulador, principal pagador, representante dos doentes e dos contribuintes, fiscalizador.
No referido artigo há 3 coisas que o autor não refere e que me parecem importantes:
1. Os médicos podem “cair em tentação” de prescrever o que lhes interessa, porque “quem paga é o doente ou o Estado”. Mas aí temos a moderar os princípios éticos da nossa profissão e a Ordem, que não deixará de promover a prescrição ética, isto é, em medicamentos equivalentes somos eticamente obrigados a prescrever o mais barato. Penso que a OM iniciará brevemente uma campanha pública nesse sentido.
2. Não são só os doentes que pagam os sobrelucros que a “confusão” dos genéricos propicia. O Estado também paga, e não é pouco, e através dele todos nós pagadores de impostos. Ora a saúde é um dos grandes contribuintes para o défice e endividamento do Estado e como uma das áreas em que há maior desperdício é a do medicamento (30% da despesa em saúde) segue-se, neste governo ou no próximo, o fim daquela confusão.
3. Ninguém acredita que o Estado, regulador e representante dos doentes, esteja desatento e que assim vai continuar, deixando que se instale a anarquia quanto ao número de marcas de genéricos, mantendo os preços elevados e permitindo que as ofertas da indústria não se repercutam para o pagador (doente e Estado). Doutro modo caíram no ridículo de vigiar nuns medicamentos margens de 18,5%, noutros permiti-las em mais de 60%, ou continuar a avalanche de marcas que se encarregará de proteger o conservadorismo de prescrição (ainda que não ético) e os atropelos à lei de manutenção de stocks nas farmácias.
Deixo assim duas questões:
• O que acontecerá às farmácias concessionadas quando o Estado repuser a normalidade no mercado de genéricos, baixando os preços, forçando a repercussão das ofertas em quantidade para o pagador e regulando o número de marcas?
• Porque não se difunde, na net e nos locais de venda, os genéricos mais baratos comparados com os de “marca” e não se permite ao doente a substituição por esse medicamento nas farmácias, assumindo que com isso desresponsabiliza o médico prescritor? Talvez assim o mundo da “influência” ficasse mais pequeno, embora parvo (“pequeno”) é mesmo o que ele já é.
Hunoh Vital
Etiquetas: Medicamento
8 Comments:
Distraídos parecemos quando contemplamos esta selva, que se inicia pelo mercado livre de genéricos e não advinha que, o passo seguinte, é a chegada, em força, da contrafacção.
Parvos os que acreditamos que o mercado livre se autoregula.
Impotentes, estaremos, todos, quando verificarmos que esta profunda crise pretende resolver-se à custa de dinheiros públicos, sem beliscar as doutrinas neoliberais.
Liberalize-se a abertura de farmácias e a ANF acaba no dia a seguir.
Mas se não quiserem tanto, abram as 500 farmácias prometidas pelo CC e que a lei actual permite e a ANF acaba na semana seguinte.
Porque não abrem farmácias com Sócrates? Era popular em época eleitoral, criava emprego, impostos e rendas de lojas, vendiam-se computadores, móveis e carros, melhorava a cobertura farmacêutica, etc, etc.
Perguntem ao Zé Lelo, que ele sabe a resposta.
E os comentadores do SaúdeSa porque não falam deste calcanhar de Aquiles do João Cordeiro, a única coisa que lhe tira o sono?
MEDICAMENTOS GENÉRICOS GRATUITOS.
- Nova abébia à ANF?A medida anunciada pelo Governo concernente aos pensionistas, que recebem menos do que o salário mínimo nacional, virem a auferir de medicamentos genéricos gratuitos é uma medida excepcional no mercado farmacêutico, mas pejada de riscos.
Esta medida social, de enorme alcance (1 milhão de portugueses?) mereceu o apoio de todas as organizações ligadas à Saúde.
Todavia, a sua implementação pode ser difícil, melindrosa e abre caminho a todo o tipo de fraudes.
Primeiro, a formulação como foi apresentada é muito generalista e nada parece estar definido no pormenor, levantado sobre as condições, modalidades e transparência de cedência dos genéricos, inquietantes dúvidas.
Sendo a ANF, produtora, distribuidora e retalhista de medicamentos, nomeadamente de genéricos, terá a tentação de capturar estes benefícios dos pensionistas em proveito próprio.
Para salvaguardar a equidade e a transparência desta medida, o Infarmed tem de, previamente, regular e fiscalizar o selvático mercado de genéricos.
Poderá inclusivé de ter necessidade de, com base nas leis da concorrência e na necessidade de eliminar insanáveis conflitos de interesses, ser obrigada a excluir a produtora de genéricos da ANF (Almus) de entrar nesta medida de excepção, que não aparece para promover os genéricos, mas para fazer face à dilacerante crise económica.
Acho que todo este enquadramento está muito verde em termos de concepção e falta fazer um gigantesco trabalho de casa para evitar as necessárias fraudes.
E avaliar a evolução e a aplicação prática desta louvável medida.
Aposto como daqui a 1 ano, vai disparar o consumo de medicamentos dos pensionistas que recebem abaixo do ordenado mínimo.
Toda a família vai abastecer-se através desta nova via.
Há, inclusivé, o risco de transfuga medicamentosa nas zonas transfronteiriça...,etc.
Vamos esperar para ver.
A gestão, se aumentar o consumo, justificará tal facto como um inevitável desperdício, já que se tratam de medicamentos gratuitos.
Mas, sendo os medicamentos (incluindo os genéricos), produtos de prescrição médica, esta explicação não colhe.
O que vai acontecer será um brutal "alargamento" da actual abrangência desta medida ... e não vão ser 1 milhão de beneficiários, mas 2 ou 3 milhões...
Vamos monitorizar para sabermos ou vamos dar mais esta abébia à ANF?
A maior parte dos médicos de família não terá disponibilidade para andar a distribuir medicamentos. Um referendo aos médicos não é uma iniciativa legislativa [em Portugal]
Jorge Silva, SIM, JP 18.04.09
O Ministério da Saúde, empregador da grande maioria dos médicos, nunca se preocupou com a formação, delegando completamente essa função na Indústria
Penso que nenhum laboratório prometerá seja o que for a um médico se ele receitar determinado medicamento. Mas o que está completamente provado é que, depois de uma acção de marketing bem feita, as vendas sobem. E, infelizmente, os meus colegas deslumbram-se facilmente com bons restaurantes e hotéis de cinco estrelas
José Gameiro,Hospital Miguel Bombarda,JN,18.04.09
A dispensa de medicamentos é um acto farmacêutico e não clínico, e a legislação tem de ser cumprida. É preciso manter o bom senso e a calma e deixarem-se de extremismos
Elisabete Faria, bastonária da OF, CM 18.04.09
Deputados responsabilizam tutela pela «crise» dos genéricos
Genéricos, contas, cuidados de saúde primários e Saúde Pública foram alguns dos itens sobre os quais os deputados questionaram Ana Jorge na Comissão Parlamentar de Saúde. Numa audição morna e sem novidades, que decorreu no passado dia 21, o que tirou a ministra do «sério» foram os seguros de saúde.
«Ainda gostaria de saber porque é que as pessoas fazem tantos seguros de saúde se a determinada altura, nomeadamente na Oncologia, os doentes são transferidos para o Serviço Nacional de Saúde [SNS], porque os seguros não chegam.»
Esta dúvida foi lançada por Ana Jorge no único momento em que elevou mais o tom de voz na Comissão Parlamentar de Saúde, depois de a deputada do CDS, Teresa Caeiro, afirmar por várias vezes que «num contexto em que os utentes estão satisfeitos com o SNS, não vêem necessidade de recorrer a seguros de saúde».
Nesta audição à ministra sobre política geral de Saúde, ao abrigo do artigo 104.º do Regimento da Assembleia da República, a recente controvérsia relacionada com a campanha de substituição do receituário pelo genérico mais barato não escapou aos parlamentares. Regina Bastos acusou o Executivo de ser «pouco ambicioso» no mercado de genéricos e de ser o responsável pela «frente» que opõe Associação Nacional de Farmácias (ANF) e Ordem dos Médicos (OM). A representante do PSD disse ainda que o Governo poderia ter registado poupanças «superiores a 250 milhões de euros», caso tivesse apostado mais neste mercado.
Já para Bernardino Soares, do PCP, o desentendimento entre farmacêuticos e médicos causado pela campanha da ANF é a consequência do «labirinto» criado pelo Estado com as assinaturas de acordos tanto com a ANF como com a Apifarma, enquanto Teresa Caeiro considera que o Ministério da Saúde tardou a reagir ao acontecimento e acusou a tutela de estar há quatro anos «para regulamentar» a prescrição por unidose e por DCI.
Nesta matéria, João Semedo, do Bloco de Esquerda questionou: «Qual é a dificuldade que o Governo tem em tornar obrigatória a prescrição generalizada por DCI?»
O deputado até considerou «apropriadas» as declarações de Ana Jorge durante a «guerrilha» entre a ANF e a Ordem dos Médicos, mas chamou a atenção para as diferentes versões que se conhecem da conversa entre a ministra da Saúde e João Cordeiro.
Respondendo à deputada do PSD, Francisco Ramos, secretário de Estado Adjunto e da Saúde, disse que «se o Governo tivesse estado sossegado e se se tivesse mantido a tendência de crescimento da despesa de medicamentos» os portugueses «tinham gasto mais 726 milhões de euros». E pegando nas palavras do representante do PCP, o governante apelidou os acordos com a ANF e a Apifarma de «labirinto virtuoso», pelos bons resultados que trouxe «para as contas públicas e para os portugueses».
Reforma não chega a todo o País
Bernardino Soares levou à discussão a reforma dos cuidados de saúde primários que, na sua opinião, tem criado um «sistema parcelar» que não respeita o carácter universal do SNS, acusando a tutela de não ter o «objectivo» de generalizar estas unidades a todo o País.
Ana Jorge negou, reforçando que as USF «são para alargar» a todo o território, mas frisou que estas unidades estão dependentes da «iniciativa dos profissionais» e é nela que reside a «dificuldade» de cobertura nacional. Todavia, reafirmou o objectivo de «até 31 de Julho» ter «mais de 200 USF» em funcionamento e enalteceu o papel a desempenhar pelos agrupamentos de centros de saúde e directores executivos com vista a «reorganizar» a prestação de cuidados das unidades de cuidados de saúde personalizados, para as aproximar do modelo das USF.
Manuel Pizarro, secretário de Estado da Saúde, que tem esse dossiê no Ministério, garantiu que o Governo «mantém todo o apoio» para o surgimento de novas USF e, apesar de reconhecer a «falta de recursos humanos médicos», salientou o reforço do número de internos de Medicina Geral e Familiar.
As recentes modificações na Saúde Pública (ver também pág. 2) também não escaparam aos deputados e Bernardino Soares questionou «com que meios» vão ser aplicadas as medidas preconizadas se a Saúde Pública é das especialidades «em maior carência».
Ana Jorge respondeu com alguma ironia, lembrando ao deputado que a anterior lei «nasceu em 1949, ou seja, tem a minha idade», mas, na sua opinião, a carência de recursos «não deve impedir» que se faça a reforma — que «não se faz só com médicos», mas também com equipas multidisciplinares.
Rita Vassal , TEMPO MEDICINA 27.04.09
O Expresso foi a 25 farmácias com receitas ‘trancadas’ e pediu para trocar os medicamentos prescritos por genéricos. Duas delas acederam a substituir a receita. E outras cinco violavam a lei até há duas semanas.
semanário expresso 25.04.09
Isto transformou-se num verdadeiro Far west.
Com o JC a apelar à desobediência civil.
Mais de duas dezenas de farmácias visitadas. Resultado: ainda se mudam receitas trancadas
Às cinco e tal da tarde, a fila de idosas que não atina com o sistema de senhas automático de uma farmácia no Chiado não pára de crescer. Bem como a impaciência dos jornalistas ‘camuflados’ de utentes com uma receita de antidepressivos para aviar na mão. Quando chega finalmente a nossa vez, o farmacêutico coça a cabeça. Tínhamos uma receita de Prozac ‘trancada’ pelo médico e que não podia ser alterada pelo responsável da farmácia. Com a desculpa de que o valor dos comprimidos é demasiado elevado para as nossas bolsas, pedimos genéricos com o mesmo princípio activo. “Se tivessem vindo cá no início do mês, antes da bronca entre a Ana Jorge e o João Cordeiro, aviava-lhes a receita, como fazia antes. Agora estamos a ser demasiado apertados pela ministra. Não podemos arriscar”. Ouvimos este discurso por mais quatro vezes em farmácias no Bairro Alto, Chiado e Telheiras. Todos eles violavam até há duas semanas a lei do receituário e as regras deontológicas dos farmacêuticos. A recente guerra entre a ministra da Saúde e o presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF), obrigou-as a agir com maior prudência.
Foi só no final do primeiro dia de reportagem que a nossa sorte mudou. Numa farmácia sem qualquer cliente, na Baixa, a directora técnica faz um sorriso matreiro ao olhar para o nosso papelinho rabiscado pelo médico. “Querem genéricos? Bem, não devia fazer isto, mas já este mês substituí algumas receitas ‘trancadas’. Abro mais esta excepção...” Antes de fazer menção para retirar os medicamentos de ‘marca branca’ do armário, ainda atira uns petardos à ministra, a meia voz: “As ameaças dela, de que não iria pagar as comparticipações dos medicamentos substituídos pelo genérico sem autorização do médico, não me metem medo.”
Na manhã seguinte, no Lumiar, apanhámos outro farmacêutico a violar a lei às claras. “Nem sei bem como vai ser a minha vida quando no próximo mês receber as comparticipações. Muitas das receitas que passei nos últimos tempos devem vir para trás com este controlo apertado. A ver vamos...” Também ele vende usualmente genéricos com receitas ‘trancadas’. E não abriu qualquer excepção connosco.
A ronda feita pelo Expresso a 25 farmácias de Lisboa e Cascais revela que mesmo em farmácias que respeitam escrupulosamente a lei, há quem nos sugira que arranjemos outro médico que não passe receitas ‘trancadas’. Numa farmácia de um hospital público, um dos funcionários anuncia não poder aviar comprimidos de ‘marca branca’, que ficariam a metade do preço. Mas deixa no ar uma sugestão: “Se a receita tivesse sido passada por um médico do hospital seríamos mais maleáveis”. Quisemos perceber o que ele queria dizer com a expressão ‘maleáveis’: “Falaríamos directamente com o clínico para ele mudar a receita. Os médicos dos hospitais não costumam ‘trancar’ o receituário”.
Paradoxalmente, na farmácia do director da ANF, João Cordeiro — que autorizou que o seu estabelecimento em Cascais desrespeitasse esta imposição e que, por isso, deverá ser processado —, o técnico que nos atendeu foi cem por cento rigoroso. E não permitiu a troca de comprimidos de marca por genéricos. “Só podemos aviar a marca prescrita pelo médico. Lei é lei”. O Expresso decidiu também fazer a experiência em algumas farmácias com receitas ‘abertas’ — em que o médico deixa ao critério do farmacêutico sugerir, ou não, um medicamento de ‘marca branca’. Mas nem em todos os estabelecimentos nos perguntaram, como é da praxe, se preferíamos optar por genéricos. Foi o caso de duas farmácias situadas no coração de Lisboa, onde os funcionários nos fizeram de imediato as contas ao preço dos genéricos, sem dar hipótese de escolha. Só nos apercebemos de que não eram os da marca prescrita quando se preparava para entregar as caixas dos medicamentos, que recusámos.
Outra situação, no mínimo estranha, passou-se noutra farmácia do Lumiar. A receita que tínhamos na mão indicava um medicamento numa embalagem com vinte comprimidos. Mas só havia caixas de sessenta. Nada que não se resolvesse com alguma improvisação à mistura. O técnico retirou dois blisters de dez comprimidos e entregou-nos, com toda a naturalidade, juntamente com a bula. A embalagem, meio vazia, ficou assim numa prateleira da farmácia à espera que o conteúdo seja mais tarde reposto quando chegarem outras caixas de duas dezenas de comprimidos.
semanário expresso 24.04.09
Medicina e Farmácia são cursos tradicionais, mas a actividade dos seus licenciados cruza fronteiras profissionais. Recordo o passado, quando jovem aprendi a manusear as balanças de precisão indispensáveis à produção dos manipulados de acordo com a prescrição médica, relembro as receitas do meu pai e do meu tio, de inspiração galénica, reencontradas nas lições de Farmacologia e nas aulas de Juvenal Esteves, em Dermatologia. A essência da profissão farmacêutica mudou mais do que em medicina. Acabaram os manipulados, substituídos pelos fármacos industriais, de produção estandardizada e segurança garantida, perdeu-se o componente artesanal — a arte — e, com ele, a individualidade do farmacêutico. Por isso, a nomenclatura mudou, como em Inglaterra: dispensing chemists é rótulo profissional nas farmácias de venda ao público. Sem percebermos, incorporámos o conceito. Nós, médicos, continuamos perscrutadores da doença e agentes do seu tratamento; por isso é tão relevante a relação pessoal de confiança com os nossos doentes, é a essência da nossa profissão e prevalece na medicina, pública ou privada: não dispensamos cuidados médicos como quem vende groceries ao melhor preço. É nesta diferença que reside uma parte do conflito. Estiveram bem, primeiro, o Bastonário da Ordem dos Médicos, num debate desigual — a Ordem dos Médicos é diferente da Associação de Proprietários de Farmácias —, depois, os responsáveis clínicos que exigiram a confirmação das denúncias de má prática médica. A outra diferença é puramente económica e fruto de um equívoco essencial. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um sistema público, da prevenção à assistência, não orientado para o lucro individual. Coexiste com o serviço de dispensa medicamentosa privado, com lógica empresarial própria. Mesmo as farmácias hospitalares de venda ao público, em boa hora inauguradas para serviço dos cidadãos, são uma estrutura privada, inquilinos em propriedade pública. Compreendem-se as erupções recentes; de um lado, a preocupação com a margem financeira do negócio, do outro, a absoluta necessidade de assegurar eficácia terapêutica pela qualidade da prescrição. A multiplicidade da produção de genéricos — 900 para um só produto (será possível?) — inquieta-me, e recorda-me o frenesim recente da indústria financeira, dos seus derivados e futuros, que redundou na crise conhecida. Não é possível assegurar qualidade em tamanha variedade, como não foi possível garantir a viabilidade dos produtos financeiros de vão de escada que abalaram a economia mundial. Duas atitudes se impõem. Primeiro, reflexão da indústria farmacêutica sobre a continuidade desta política de produção de genéricos, depois, mecanismos de regulação eficazes, para que os Estados, na defesa do interesse público, privilegiem qualidade e defendam os cidadãos das ambições e manipulações de aprendizes de feiticeiro.
expresso 24.04.09
Aqui está uma intervenção inteligente a apelar ao bom senso.
Neste conflito mais recente que opõe médicos a farmacêuticos, o Estado não está isento de culpa.
A regulação devia ter prevenido parte substancial do conflito.
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