segunda-feira, fevereiro 28

O Modelo da Engenheira

No dia 24.2.2011, foi feito o lançamento do 1º número dos “Cadernos Saúde e Sociedade”, uma revista coordenada pelo Dr. Adalberto Fernandes e aberta a várias correntes de opinião, que procura promover o debate objectivo sobre os problemas da saúde em Portugal em que estivemos presentes. Para essa sessão foi convidada como conferencista a engª Isabel Vaz, presidente do grupo Espírito Santo Saúde, que aproveitou a ocasião para apresentar o seu “modelo” para a saúde em Portugal que, segundo ela, garantiria a sustentabilidade do SNS. link

De uma forma sintética podemos apresentar esse “modelo” da seguinte forma. Actualmente gasta-se em Portugal com a saúde dos portugueses o correspondente a cerca de 10% do PIB, sendo 7% (70%) pago por fundos públicos e os restantes 3% (30%) suportados directamente pelos portugueses. E a proposta da presidente do ES Saúde resume-se no seguinte: os 3% do PIB suportados directamente pelos portugueses passariam a ser utilizados, na sua totalidade, em adquirir seguros de saúde, com os quais os portugueses teriam a liberdade de ir depois adquirir aos prestadores de serviços de saúde, públicos ou privados, esses serviços, pagando depois o Estado o resto (com os 70% de fundos públicos gastos actualmente com a saúde dos portugueses). As companhias de seguros e eventualmente as ADS´s fariam contratos com os prestadores de serviços de saúde (públicos e privados), e assim os portugueses ficariam com liberdade de escolher. Como era natural que os 3% do PIB gastos directamente pelos portugueses não fossem suficientes para adquirir os seguros de saúde, o Estado financiaria aqueles que não tivessem meios suficientes, para eles também terem liberdade de escolha entre serviços públicos e privados. É um “modelo” simples que certamente ampliaria o mercado dos grupos privados de saúde embora com custos imprevisíveis para o Estado e para os cidadãos.

Durante a sessão coloquei a Isabel Vaz, entre as múltiplas questões que tal “modelo” levanta, apenas uma, que foi a seguinte. É sabido que no sector da saúde os investimentos são muito caros, e os custos crescem muito rapidamente. Como é que se garantiria a sustentabilidade do SNS desta forma, duplicando os prestadores (públicos e privados) que concorreriam entre si em pé de igualdade mas sendo assegurado o seu financiamento pelo Estado? Como é que se garantiria que muitos serviços, incluindo hospitais, não ficassem subutilizados por falta de “clientes” determinando para o País custos acrescidos? Como que o Estado sendo obrigado a financiar de igual forma os serviços privados e serviços públicos, tudo dependendo da escolha (procura) aleatória dos utentes (e sabe-se que os grupos privados são exímios na utilização do marketing para captar clientes, muitas vezes até de forma enganosa) não corria o risco de, para além de ter de financiar os privados, ter ainda de suportar os custos de muitos serviços de saúde públicos que ficariam “às moscas”? . Perante estas questões incómodas, e não estando preparada ou não querendo responder, a presidente do ES Saúde apenas soube dizer que esta visão era “estalinista” (o frágil “verniz democrático” da presidente do ES Saúde estalou rapidamente) e que o “mercado” (mais uma vez os “mercados” cujas consequências o País e os portugueses já conhecem bem) resolveria o problema, determinando o fecho daquelas unidades de saúde que não tivessem “clientes” suficientes.

No entanto, o “modelo” defendido pela presidente do ES Saúde merece que nos debrucemos sobre ele até para que fiquem claras outras facetas. Em primeiro lugar, o facto do acesso à saúde em Portugal passar a depender de se ter um seguro de saúde, e sendo este fundamentalmente fornecido por grandes grupos económicos, para além de ser já um grande negócio para as seguradoras destes grupos, iria depois também permitir a estes condicionar a escolha dos portugueses na preferência por este ou aquele prestador de serviços de saúde. E isto até porque essas seguradoras iriam estabelecer contratos com alguns dos prestadores, preferencialmente os pertencentes ao respectivo grupo económico. Basta lembrar o que sucede actualmente com os bancos que concedem um empréstimo e procuram condicionar o seguro de vida que exigem para que seja feito no companhia de seguros do grupo.

Em segundo lugar, embora a presidente do ES Saúde tenha apresentado o seu “modelo” como aquele que garantiria a sustentabilidade do SNS não apresentou um único dado que provasse essa afirmação. Ela não possui quaisquer estimativa de custos quer para o Estado quer para os portugueses. A experiencia de outros países, como é o caso dos Estados Unidos que tem um modelo que assenta em seguros de saúde, revela que é um modelo extremamente caro (os EUA gastam com a saúde da população o correspondente a 15% do PIB, portanto mais 50% do que média europeia), e provoca uma elevada exclusão (nos E.U.A. existem mais de 50 milhões de americanos sem acesso à saúde, precisamente por não poderem pagar um seguro de saúde, que o actual presidente está a procurar resolver, mas que enfrenta forte oposição de importantes “lobbies”). O que diferencia o modelo americano da proposta de Isabel Vaz, é que no primeiro caso os seguros de saúde são financiados pelas empresas e pelos próprios, enquanto em Portugal seriam financiados pelo Estado e pelos portugueses.

Em terceiro lugar, a liberdade escolha assente em seguros de saúde controlados fundamentalmente por grupos privados, embora a presidente do ES Saúde tenha dito que o Ministério da Saúde, através das ARS´s também poderia concorrer neste mercado com privados, o certo é que levantaria problemas graves à sustentabilidade de muitas unidades de saúde pública. Com a redução de utentes e, consequentemente, do seu financiamento seriam levadas a fechar. E com a progressiva redução do sector público de saúde, e sem a concorrência deste, os grupos privados rapidamente dominariam o mercado da saúde em Portugal, e certamente aproveitariam esse domínio para impor as suas condições. Veja-se o que acontece em mercados como é da energia, onde dominam. Desta forma também o acesso de todos a serviços de saúde como estabelece a Constituição da República não ficaria garantido, pois só teriam acesso a eles os que pudessem pagar o valor fixado. É certamente por esta razão que o PSD está tão interessado em alterar a Constituição precisamente neste ponto.

Com o aumento da esperança de vida aos 65 anos e, consequente, envelhecimento da população, e com o aparecimento continuo de novos medicamentos e de novos equipamentos que permitem prolongar a vida humana com um mínimo de qualidade, os custos da saúde tendem continuamente a aumentar. O desperdício nesta área determinada por duplicações de prestadores, de equipamentos, só poderá ser mais caro para o País e para os portugueses. Mais que qualquer outra área, já que o bem saúde é um bem diferente de todos os outros bens, pois o que está em causa é a vida humana, e por isso deve ser garantido a todos os portugueses, para que isso seja possível é necessário evitar o desperdício, as duplicações de serviços que são extremamente caros. Por isso a intervenção do Estado neste sector é fundamental, e o domínio do mercado como defende Isabel Vaz só poderá determinar uma situação em que este bem vital fique acessível apenas aos que têm dinheiro, até porque os recursos do Estado são escassos.

Eugénio Rosa, economista

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5 Comments:

Blogger e-pá! said...

O que está a dar é "emprestar" aos direitos sociais - inscritos na Lei Fundamental - uma pesada "carga" subjectiva.
E agir, nesse campo [social], empolando as exigências que, como sabemos, são o covil da universalidade e da equidade.
Assim, os direitos sociais transformam-se em "direitos de crédito".
É isso que a Engª. Isabel Vaz, em nome de um grande grupo financeiro, defende.
Uma política social baseada na discricionariedade - é isso que está por detrás da "livre escolha" - prostituindo o conceito de políticas públicas constitucionais vinculativas.
É o arraial do neoliberalismo, abrilhantado pelos "mercados", a par do "assassinato" do Estado.
Quanto custa esta discricionariedade?
Bem, um dia o "mercado" o dirá...!
Entretanto, a todo o vapor, trabalha-se - na áreas sociais - pela rápida "desconstrução" da estruturas públicas [na Educação, na Saúde e, lá mais para diante, na Segurança Social].
Porque - a Srª. Engª ter-se-á esquecido de dizer - o "mercado" deve ser "livre"!
Ah! as justificações - para todos os retrocessos sociais - são sempre as mesmas: a sustentabilidade financeira.
E, claro está, a modernidade! Que estará em vias de chegar…
Aguarda-se “só” uma oportunidade para o "assalto" coelhista ao poder.

12:02 da tarde  
Blogger José Jorge Frade said...

Vai-se ouvindo cada vez com maior frequência a necessidade de criação de Gabinetes de Crise em alguns hospitais da rede do SNS. O que se sabe ao certo?

6:40 da tarde  
Blogger xavier said...

Critério da insuficiência económica vai ter exceções. Viagens podem ser grátis pela gravidade da doença, rotina do tratamento ou por falta de alternativa.

Polémicas, as novas regras para o transporte gratuito de doentes não urgentes vão, afinal, ser aligeiradas. O Ministério da Saúde admite abrir exceções ao critério da insuficiência económica, assegurando as deslocações de utentes com rendimentos mensais acima dos €485 que tenham uma doença grave, tratamentos de rotina ou estejam impossibilitados de utilizar outro tipo de transporte, por exemplo.

“São justificações de peso a que o SNS não pode deixar de dar resposta” — e, portanto, estão a ser ponderadas “situações em que o médico pode requisitar o transporte sem que seja necessário aferir as condições económicas do utente”, explicam as assessoras de Ana Jorge. Os casos excecionais vão constar da regulamentação do despacho, de 29 de dezembro, que limita o transporte a critérios clínicos e económicos e já está “em finalização”.

O requisito clínico mantém-se inalterado, estando asseguradas as viagens a doentes oncológicos, insuficientes renais, invisuais, entre outros, mas haverá mais controlo. “Estão a ser criadas normas no sentido de atribuir ao médico a exclusividade para a requisição de transporte, que terá de ser feita com uma credencial emitida por via informática e só estas serão validadas”, isto é, pagas pelo Estado.
Estas adaptações ao despacho do transporte, para consultas e tratamentos, de doentes não urgentes ainda não têm data para entrar em vigor porque há negociações em curso. Já na segunda-feira, a Liga dos Bombeiros Portugueses regressa ao ministério para apresentar as “bases gerais”. Entre elas, “o serviço que prescreve o transporte é o mesmo que paga; a insuficiência económica não limitada a uma fórmula matemática e a existência da emergência social” (para quem não cumpre os critérios, mas não tem forma de pagar o transporte) , adianta o presidente, Duarte Caldeira.

Também até ao final do mês, a tutela terá ainda de responder à Entidade Reguladora da Saúde (ERS). Segundo o presidente, Jorge Simões, “o transporte de doentes não urgentes está no âmbito da prestação de cuidados e tem de obedecer à lógica do SNS”, sem excluir ninguém.

Mas a tutela faz saber que “o documento final da ERS só será elaborado depois de ponderadas as razões do Ministério”. Por exemplo, “não esquecer que o Estado gasta, anualmente, no transporte não urgente de doentes cerca de €200 milhões e racionalizar e regular a utilização é a única forma de garantir que os doentes que precisam de transporte pago pelo Estado vão continuar a ter acesso a ele”.

expresso 26.02.11

11:14 da tarde  
Blogger e-pá! said...

Hospital de São João acusa Hospital de Braga de transferência indevida de doentes

O Hospital de São João, no Porto, vai apresentar uma queixa contra o Hospital de Braga na Entidade Reguladora da Saúde. Em causa está uma alegada transferência indevida de doentes.
A directora clínica do Hospital de São João acusa a parceria público-privada de São Marcos de transferir indevidamente cerca de 700 doentes em 2010 para o hospital do Porto, não assumindo as suas responsabilidades.
Margarida Tavares considera que por vezes as transferências são «caricatas» e rejeita os argumentos apresentados pelo Hospital de São Marcos nas cartas enviadas, onde se fala em insuficiência de recursos.
A Bola.pt; 02-03-2011 link

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O modelo português de PPP’s...

4:56 da tarde  
Blogger Guimaraes said...

Para além dos problemas muito bem expostos no texto, acrescem aqueles inerentes aos seguros de saúde. A maior parte expira aos 65 anos. Depois dessa idade deixaria de se ser português de pleno direito? Os seguros normalmente não cobrem doenças anteriores ao contrato, doenças novas, deficientes e em geral tudo o que implique riscos. Os portugueses com essas patologias perderiam o direito a cobertura de saúde?
Lembra-me o seguro dos cães que só cobre mordeduras se o cão for açaimado. Cão açaimado morde?

12:34 da manhã  

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