quarta-feira, abril 27

Adalberto Campos Fernandes

"Entrar num processo de racionamento em saúde é passar fronteira muito perigosa"
Professor da Escola Nacional de Saúde Pública e ex-presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, Adalberto Campos Fernandes defende que é preciso "transparência" na Saúde. Hoje, "o grande risco é entrarmos numa abordagem precipitada de desmantelamento do sistema em nome de uma fórmula que não está testada", defende.

Que balanço faz do Governo socialista na área da Saúde?


Há alguns aspectos que são bastantes positivos, como a reforma dos cuidados de saúde primários. Independentemente de ainda existirem manchas de população sem médico de família, o modelo das USF (unidades de saúde familiar) tem grande potencial. Uma iniciativa também muito bem desenhada é a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. Houve ainda uma evolução muito positiva da mediana dos tempos de espera cirúrgicos. E o cheque-dentista permitiu o acesso a uma área até então praticamente a descoberto. Dos aspectos que correram menos bem, destaco claramente a política do medicamento. Foi confusa, em certos momentos pareceu mesmo contraditória. Não se avançou na área da avaliação da inovação e na reforma do sistema de comparticipações. Também a taxa de penetração dos medicamentos genéricos (cerca de 20 por cento) continua a ser muito modesta. Outra área em que se fica com alguma frustração: o modelo de gestão hospitalar. Não se avançou na avaliação da gestão nem se aprofundou o modelo empresarial. Com os centros hospitalares foi-se muito à componente jurídica e formal, a amplitude da reforma foi muito tímida.


No programa do Governo 2009-2013 estava previsto que os subsistemas de saúde públicos deveriam evoluir no sentido da auto-suficiência, o que implicaria, na prática, o fim da ADSE tal como existe hoje. Acha que este é o caminho a seguir

É uma medida muito pouco popular. Mas se reler o relatório sobre a sustentabilidade do SNS está lá bem recomendado que efectivamente esta medida deve ser prosseguida. Estamos num tempo em que é preciso fazer escolhas. Ao nível da despesa, há a convicção profunda de que ainda é possível cortar. Há problemas de organização do trabalho, nos recursos humanos há uma grande dependência do trabalho extraordinário, há uma sobrecarga muito grande das urgências hospitalares. Temos algumas redundâncias de serviços e hospitais a mais.


E o que se deve fazer nas parcerias público-privadas (PPP)? No quadro actual, será de prosseguir com os planos iniciais de construir 10 hospitais em PPP?


Deve-se avaliar primeiro antes de tomar decisões. É um modelo atípico, muito propício a uma grande conflitualidade. O mais importante é que a rede do SNS tenha uma gestão profissionalizada e que os processos sejam muito transparentes. Há uma grande opacidade no sistema de saúde em geral. O grande risco é entrarmos numa abordagem um bocadinho precipitada de desmantelamento do sistema - que tem provado que responde - em nome de uma fórmula que não está testada. É preciso transparência, comparabilidade, avaliação interna e externa.


Relativamente aos cortes na Saúde, acredita que é possível ir mais longe?


É preciso traçar objectivos realistas. [Doutra forma], as unidades entram numa espiral de subfinanciamento, em processo de dívidas a fornecedores, deixam de poder prestar cuidados. E esta é uma área muito sensível, que pede muito bom senso. Quem vier dizer que consegue garantir o acesso sem restringir não está a falar verdade. É necessário fazer tudo para que nos próximos três, quatro anos a despesa se mantenha controlada (crescimento de zero ou um por cento, no máximo), o que implica um trabalho muito intenso na eficiência interna. Mas é importante que não sejam impostas mais medidas de carácter cego e que não se avance numa espiral de agravamento. Dois milhões de portugueses vivem abaixo do limiar de pobreza e quatro milhões não pagam IRS. São pessoas que dependem do sistema público. Entrar num processo de racionamento em saúde significa passar uma fronteira muito perigosa.

entrevista de Alexandra Campos, JP 25.04.11

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1 Comments:

Blogger e-pá! said...

..."Entrar num processo de racionamento em saúde significa passar uma fronteira muito perigosa".

Já saltamos a raia! Estamos por aí a gerir o descontentamento e a contrabandear cuidados...

10:08 da tarde  

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