sexta-feira, março 25

Luís Campos, entrevista à GH

...GH: Reúne uma longa experiência na direcção de serviços e departamentos hospitalares. Quais os principais obstáculos que identifica na governação hospitalar na actualidade?
LC: Para quem tem que gerir equipas e hospitais os tempos não têm sido fáceis. Em primeiro lugar houve uma redução substancial das remunerações dos profissionais de saúde: os médicos foram os funcionários públicos mais penalizados nesta crise, tendo perdido quase 700 euros de rendimento mensal nos últimos quatro anos e os enfermeiros quase 200 euros. Em contraste os juízes viram o seu rendimento mensal subir quase 1000 euros. Quando a saúde é reconhecidamente o sector da administração pública que funciona melhor e os tribunais um dos que funciona pior, imagine-se o impacto desta iniquidade na motivação das pessoas e a nossa dificuldade em motivar as nossas equipas. Depois assistiu-se a uma ditadura cega do ministério das finanças em relação aos hospitais. Os hospitais têm estado tolhidos na sua capacidade de gestão e as restrições aplicaram-se da mesma forma aos que tinham bons resultados e aos que tinham maus resultados. Acabaram por ser os hospitais que eram mais eficientes os que foram mais penalizados. A crise das urgências é, em parte, resultante desta perda de flexibilidade dos hospitais pelas restrições às contratações. Há que autonomizar a gestão e naturalmente responsabilizar mais, o que significa que a má gestão tem que ter consequências e a boa deve ser incentivada. Uma das áreas mais penalizantes foi a perda da capacidade de escolha dos profissionais por parte dos hospitais, o que impossibilita a formação de equipas coerentes e funcionais. Este facto, a par da dificuldade em concorrer com os grupos privados de saúde e com os hospitais em PPP, tem impossibilitado a renovação dos serviços com as pessoas que nos fazem falta. Em relação à minha especialidade, Medicina Interna, a obrigatoriedade que muitos hospitais introduziram de os internistas admitidos terem que ficar um ou mais anos nas equipas fixas de urgência está a ser fatal para muitos serviços de Medicina. O reforço da gestão intermédia é uma mudança desejável, mas isso já faz parte das prioridades enunciadas por esta equipa ministerial. No entanto, para que isto seja real esta gestão intermédia não pode ser ultrapassada e desautorizada pelas administrações, tal como sucede em alguns hospitais, em que esta gestão intermédia está instituída.
GH: Como vê o futuro dos cuidados hospitalares no quadro do sistema nacional de saúde ?
LC: É cada vez mais difícil predizer o futuro, porque ele acontece cada vez mais rapidamente e porque é cada vez mais incerto. A possibilidade de epidemias à escala global, a emergência de estirpes bacterianas resistentes a todos antibióticos, as catástrofes decorrentes das alterações climáticas, os fenómenos migratórios, novas crises económicas, são possibilidades próximas que podem inverter subitamente as nossas prioridades. pelo que a atitude mais correta é a criação de cenários. A perspetiva que apresento é baseada num cenário evolutivo que o Institute for Alternative Futures designou de “zona de expectativa convencional”.
Em primeiro lugar: de que doentes têm os hospitais que cuidar? De doentes cada vez mais idosos, com mais doenças crónicas, com multimorbilidades, com mais incapacidade, mais problemas sociais, que vêm morrer aos hospitais, mas também doentes cada vez mais informados, mais exigentes e com expectativas que excedem a real capacidade de resposta da Medicina, expectativas formatadas pelas séries de televisão passadas nos hospitais. Mas a procura de cuidados também é determinada pela oferta. E como têm evoluído os cuidados hospitalares? O crescimento vertiginoso do conhecimento médico e a evidência da relação entre volume e qualidade têm induzido uma especialização crescente e a fragmentação inexorável das especialidades, transformando o paradigma do exercício da Medicina numa actividade essencialmente baseada em equipas. A resposta adaptativa da estrutura hospitalar tem sido o aumento da escala dos hospitais e a sua concentração. Em Portugal isso tem acontecido de forma acelerada: em 2008 tínhamos 73 hospitais de agudos e actualmente são 40, número que me parece perto do ideal. Esta evolução foi determinada pela reforma das urgências.
E como se diferenciam estes hospitais em termos de capacidade de resposta? A reforma das urgências definiu os hospitais de agudos e separou-os em dois níveis: os que tinham urgência polivalente os que tinham urgência médico-cirúrgica, mas isso não substituiu a necessidade de uma carta hospitalar, enquanto documento estruturante e de referência do Serviço Nacional de Saúde. Eu próprio reivindiquei durante muitos anos a sua publicação, tendo mesmo sido coautor de uma proposta, a pedido da DGS em 2008. Finalmente a portaria 82/2014 definiu uma espécie de carta hospitalar, mas a sua incoerência levou a uma contestação generalizada que logo conduziu à sua renegação pelo próprio ministério. A redefinição da carta hospitalar terá necessariamente que acontecer a breve prazo. A reforma das urgências acelerou também a criação de centros hospitalares. Não está bem avaliado o impacto da criação destes centros. No entanto vejo com preocupação o modelo que alguns centros hospitalares adoptaram, que é dispersar os serviços por vários hospitais. Esta opção cria dificuldades na comunicação e no aproveitamento de sinergias, colocando barreiras geográficas para o acesso dos doentes a cuidados hospitalares. Penso que seria preferível centralizar o internamento e descentralizar o ambulatório e, quando houvesse necessidade de manter o internamento, que isto acontecesse apenas nas especialidades básicas. A criação de grandes clínicas ambulatórias com cuidados integrados tem sido uma das estratégias de sucesso dos grupos privados.
Ainda em relação à rede hospitalar, tem sido defendido que a abertura de mais camas de cuidados de longo termo permite o encerramento de camas hospitalares, o que justificou o encerramento de mais de 400 camas nos últimos três anos. Na realidade a ausência dessas camas de longo termo é o nosso maior desequilíbrio estrutural em termos de capacidade de internamento, mas para além disso temos também um défice de camas de agudos em relação à média dos países europeus e esta necessidade vai aumentar, particularmente em relação a camas médicas, previsão que é consensual nos vários sistemas de saúde. Este défice acontece apesar do crescimento da capacidade de internamento que tem estado a acontecer no sector privado e que, e ao que tudo indica, se irá acentuar.
A invasão dos hospitais pelos doentes idosos e com multimorbilidades, aquilo que os anglo-saxónicos chamam o "silver tsunami", é um problema prioritário para todos os sistemas de saúde nos países ocidentais. Na Medicare os cerca de 14% dos doentes com seis ou mais condições crónicas representam quase 50% das despesas. Assim, quanto mais caminharmos na direcção da hiperespecialização mais precisamos de uma especialidade generalista, dentro do hospital essa especialidade é a Medicina Interna. Não só nos serviços de Medicina mas no apoio a todos os outros serviços hospitalares, particularmente os cirúrgicos. A importância da Medicina Interna fica bem demonstrada nestas alturas de inverno em que os internistas são sujeitos a uma sobrecarga extrema, tratando destes doentes nas urgências, nos serviços de Medicina e em muitas outras camas espalhadas por todo o hospital, e isto sem que haja qualquer remuneração extra como acontece com a produção cirúrgica adicional, porque é esta que traz financiamento para o hospital. A necessidade desta especialidade generalista nos hospitais tem sido traduzida no crescimento exponencial dos hospitalistas nos EUA ou da Acute Medicine, no Reino Unido.
Estes doentes, que são doentes complexos e são os grandes utilizadores das nossas enfermarias e das nossas consultas, beneficiam da nossa experiência, mas não podem ser abordados através de programas de gestão de doença crónica centrados em doenças mas através de uma resposta dirigida às necessidades específicas de cada um. Esta resposta deve estar centrada em equipas multidisciplinares lideradas por internistas. Para que estes programas apareçam é preciso que o financiamento não esteja só centrado na produção hospitalar mas também nestes programas de responsabilidade partilhada entre diferentes níveis de cuidados.
No internamento a criação de departamentos geridos pela Medicina Interna, que articulasse a intervenção das outras especialidades, tal como está implementado no Hospital Beatriz Ângelo e no de Matosinhos, seria, quanto a mim, a forma mais eficaz de dar resposta a estes doentes. O nosso país teve a clarividência de, ao longo dos anos, decidir o número anual de vagas nas especialidades em função das necessidades das pessoas e não em função das preferências dos licenciados em Medicina, como acontece em muitos países europeus. Desta forma conseguiu manter o melhor ratio europeu entre as especialidades generalistas e as outras, estando em boas condições para poder ser um case study neste campo.
Uma palavra para os centros de referência em fase de implementação e que emanam de uma directiva europeia. Sendo, à partida, uma boa ideia, é fundamental evitar o risco de poderem aumentar a iniquidade no acesso a cuidados de qualidade, oferecendo excelência a alguns doentes e deteriorando a qualidade dos cuidados aos restantes, por falta de acesso. Finalmente não prevejo que iremos passar de tempos de graves restrições para tempos de fartura, pelo que a necessidade de identificar ineficiências e aumentar a produtividade vai continuar a ser um desafio para gestores e profissionais.
GH: O Hospital da próxima década como é que vai ser?
LC: Não lhe vou responder como vai ser mas como eu gostaria que fosse: gostaria que o hospital do futuro prestasse uma assistência clínica que se distinguisse pela excelência na sua qualidade, que os profissionais trabalhassem verdadeiramente em equipas e as equipas comunicassem de forma eficaz, que os doentes, para além de serem bem tratados se sentissem bem tratados, com humanidade e no respeito escrupuloso pelos seus direitos, que a sua segurança fosse uma prioridade para todos, que houvesse uma preocupação por todas as questões do ambiente que favorecem a recuperação dos doentes, que o modelo organizacional fosse informado pela melhor evidência e que o interesse dos doentes fosse o critério de decisão para todas as mudanças, que o hospital fosse um espaço onde os profissionais se sentissem felizes, realizados, tivessem oportunidades de desenvolvimento pessoal, condições remuneratórias condignas e reconhecimento pelo mérito, que o sistema de informação fosse fácil de usar e permitisse acesso à informação dos doentes em todos os locais e a toda hora, assim como acesso a bases de dados do conhecimento onde e sempre que os profissionais precisassem, que as inovações tecnológicas fossem introduzidas de forma atempada, que o hospital fosse também uma escola e a investigação uma prioridade, havendo a possibilidade de juntar a investigação básica e clínica, que o hospital saísse das suas fronteiras e levasse a sua expertise aos centos de saúde e a casa dos doentes e cooperasse com outras estruturas para garantir cuidados integrados a cada doente de acordo com as suas necessidades. É isto que eu gostava que fosse o hospital da próxima década.
Luís Campos, entrevista GH link

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quinta-feira, julho 2

Jorge Simões

...O ministro Paulo Macedo disse que avançou com esta reforma, porque, por exemplo, criou centros hospitalares. Não concorda?
Não temos evidência de que os centros hospitalares tenham produzido resultados mais eficientes. E, atenção, isso não é uma reforma hospitalar.
Fazer essa reforma vai ser muito complicado porque será sempre profundamente impopular…
Claro, mas depende do processo. De qualquer forma, é inadiável. Se vamos ter um crescimento dos gastos com a saúde, nomeadamente por força do descongelamento dos salários que representam cerca de 60% dos encargos do SNS, temos que começar a pensar, de uma maneira aprofundada e séria, quais são os remédios que, sem pôr em causa princípios constitucionais, permitirão alguma contenção de gastos.
Quais são estes remédios? Aumentar os impostos?
Isso é um susto! De modo nenhum. Continuar um trabalho já feito no passado, reunir muito conhecimento, ter a habilidade política de tomar decisões. Há custos de burocracia que podem ser aligeirados. Não faz sentido falar em aumento de impostos quando ainda temos tanto trabalho de desburocratização e [de combate] a ineficiências que custam caro.
Então estes anos não representaram um desperdício da oportunidade de que falava?
Na área do medicamento conseguiram-se ganhos significativos, em tudo o resto foi uma gestão corrente.
Fizeram vários estudos e muitas recomendações, mas a maior parte não foram seguidas. Porquê?
São opções políticas. A ERS não é um Ministério da Saúde bis. Não faz decisão política. Compete aos cidadãos fazer uma avaliação dos resultados das decisões políticas.
O caos vivido nas urgências no Inverno passado foi um sinal do estado em que se encontra o SNS?
Aqui o que falhou foi a antecipação de um problema que devia ser conhecido dos decisores. [Voltando à reforma da rede hospitalar], temos que começar por conhecer bem o país e as regiões, para depois tomar decisões. Não deve haver um pronto-a-vestir no sentido de diminuir de Norte a Sul o que quer que seja. Temos défices e situações superavitárias que estão identificados.
Jornal Público 02.07.15  link
Administrador Hospitalar, currículo invejável  link  e conhecimento impar para suceder a Paulo Macedo. Não vejo ninguém mais apto para levar a cabo a reforma da rede hospitalar e CSP, enfrentar os múltiplos desafios  do nosso sistema de saúde:  novas tecnologias, dificuldades de financiamento, cooperação intersectorial e defesa do serviço público. 
Deus nos livre dos candidatos casseteiros.

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sexta-feira, outubro 4

José Ponte, entrevista

José Ponte: "É imoral um médico custar meio milhão a formar e no fim ir para o privado"
Os médicos ficariam vinculados ao SNS?
Porque não? Formar um médico custa 100 mil euros. Depois a formação pós-graduada são mais 300 mil a 400 mil euros. Ao fim dos dez anos de formação dá quase meio milhão. Se quando se acaba uma especialidade em oftalmologia ou dermatologia e a pessoa vai para o privado ou está a meio gás, para que foi o investimento? O contribuinte pagou meio milhão e eu faço, perdoe a expressão, um manguito ao contribuinte e vou para o privado. Acho isto profundamente imoral.
Mas como é que vinculava os médicos?
Hoje já temos pessoas que vão fazer a especialidade através da Marinha, mas têm de lá ficar pelo menos seis anos. Façam-se as contas e chega-se a um cálculo de quanto tempo é preciso para retribuir o investimento avultado que o Estado fez. Mas vê isso debatido? Não.
Ser contracorrente tem-lhe custado alguma coisa?
Disse a um jornal que as cirurgias no Algarve estavam a piorar. Chamaram-me a atenção, mas porque é que eu vou esconder aquilo que vejo? Se vejo coisas mal, digo. Se vejo uma mortalidade acima do que é concebível, denuncio. Precisamos de auditorias sérias. Não sabemos no nosso país a mortalidade em cirurgia por serviço ou especificamente em anestesia. Os próprios colégios da especialidade deviam pensar a formação de modo a responder a essas necessidades ou lacunas concretas.
Isso acontece em Inglaterra?
Se hoje morrer um doente no Norte de Inglaterra por causa da anestesia, vou ter um email do colégio a dizer que este instrumento ou este pormenor da formação falhou. Cá, além de falta de informação, não existe um mecanismo para impedir as pessoas de praticar enquanto não se esclarece o que se passou. Lá há uma queixa e há uma suspensão preventiva. O médico vai para casa com salário mas previne--se que repita o erro.
Há ideia que temos um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Concorda?
Isso é baseado em dois ou três indicadores, como a mortalidade infantil e a longevidade. Costumo dar o exemplo de um amigo que vive na Nigéria e me diz que Lagos é a cidade mais segura para andar de carro, não há acidentes. Não há acidentes porque não se registam. Eu não digo que é mau, Espanha não está mais avançado e Itália é pior.
Mas não vemos diariamente doentes a queixarem-se ou mortes por negligência.
Não se vê mais porque não é mediático e as pessoas não estão sensibilizadas. No Hospital de Faro três doentes receberam transfusões de sangue erradas. Em vez de se avaliar o circuito e identificar lacunas, abriu-se um inquérito. As pessoas perante o inquérito escondem, não se apura nada. É um estado de coisas orwelliano, a realidade não é aquilo que aconteceu, é aquilo que fica escrito. Enquanto isto não mudar não melhoramos. Estou convencido que a mortalidade hospitalar é acima do esperado no Algarve. Muitos dos nossos alunos são enfermeiros, andaram pelo país e todos têm exemplos. É uma enfermidade do sistema na globalidade. Penso que enquanto os colégios da especialidade também estiverem debaixo do chapéu do conselho nacional da Ordem não será possível um maior escrutínio.
Jornal I, Marta F. Reis publicado em 3 Out 2013 link 

Extratos de uma entrevista, que merece leitura na íntegra, ao responsável cessante do curso de Medicina na Universidade do Algarve.
Tavisto

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quinta-feira, agosto 1

Constantino Sakellarides

"Governo vai ter muita dificuldade em fazer a reorganização hospitalar"
Constantino Sakellarides considera que fazem falta na saúde medidas "transformativas" que assegurem a manutenção do Serviço Nacional de Saúde. O futuro do Serviço Nacional de Saúde está em xeque e a sua continuidade depende mais de "medidas transformativas" do que de "cortes transversais". Quem o diz é o presidente da Fundação para a Saúde e ex-director-geral da Saúde, Constantino Sakellarides, que critica a falta de preparação do Governo.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem futuro? Há condições para mantê-lo?
Todas as instituições portuguesas estão em risco. Ou a situação portuguesa e europeia se modifica ou seremos a curto prazo um País de consumidores que consomem mais ou menos aquilo que lhes oferecem, mas que não determinam o que lhes oferecem. Aqueles que não podem pagar aceitam a assistência do Estado de terceira qualidade. 
A sustentabilidade do SNS passa por mais cortes de despesa?

Os cortes não são sinónimo de ganhos de eficiência e muitos deles são até sinónimo de perda de eficiência a prazo. O que precisamos é de maior eficiência com transformação. Por exemplo, o nosso sistema de saúde é montado para agudos. A tendência universal é dar importância ao trajecto dos doentes. Ou seja, é importante gerir o trajecto das pessoas. O que interessa é que o trajecto seja de tal forma desenhado que no fim do trajecto haja bons resultados com menor preço.
A questão é que o Governo precisa de dar respostas rápidas. Tem metas e prazos a cumprir.
A principal razão não é essa. A principal razão é que não estão preparados. A qualidade do programa deste Governo é tremendamente má. Os partidos preocupam-se em adquirir o poder, mas não se preocupam em preparar para governar. Com uma boa preparação conciliariam respostas imediatas e começariam a preparar as outras medidas. Por exemplo, a reforma dos cuidados de saúde primários precisa de ser revisitada, passados 10 anos, e todas as áreas precisam de medidas de curto prazo e de medidas transformativas, mas não feitas por amadores. Paulo Macedo é uma pessoa inteligente, mas enquanto não aprende comete erros que depois não reconhece. 
O ministro é amador?
É injusto dizer que o ministro é amador, mas a preparação foi amadora. A pessoa ou vai para o Governo e tem isto preparado, e consegue conciliar medidas a curto prazo com outra visão mais a prazo, ou não consegue fazê-lo em cima da guerra. 
Isso é visível na questão da reorganização hospitalar, a medida mais estrutural do memorando para a saúde. Anda a marcar passo...
Pois. E não pode ser. Isso não pode estar preparado agora. Um Governo que entra tem de ter ideias sobre isso, pois precisa de uma análise cuidadosa, precisa de saber quais os comportamentos previsíveis dos actores sociais e como se ultrapassam. 
Mas acha que este governo a vai conseguir levar a cabo?
Vai ter muita dificuldade.
Porquê?
Primeiro, hoje em dia não faz sentido fazer uma reforma hospitalar sem simultaneamente redesenhar o trajecto dos doentes. Há aqui um erro de concepção logo a começar. Mas há também uma coisa chamada de ciclo político: no primeiro ano consegue-se fazer, no segundo também, no terceiro com dificuldade, no quarto não se faz nada porque o Governo está muito desgastado. Daí a necessidade de preparação de um Governo. As coisas fundamentais para transformar têm de ser feitas nos dois primeiros anos. Se não consigo fazer nos dois primeiros anos, não consigo avançar.
E se lhe pedisse para elencar uma ou duas medidas positivas?
O conjunto da política do medicamento, apesar de ter deformações e os efeitos terem começado antes deste Governo, tem de ser seguido com bastante determinação e é um campo difícil. Outro aspecto importante foi o ministro da Saúde ter conseguido junto das Finanças dinheiro para amortizar dívida e isso não é fácil. 
E qual a medida mais negativa?
Os cortes transversais em serviços são sempre problemáticos se não há tempo para adaptação. 
A grande maioria dessas medidas está inscrita no memorando. É possível continuar a cumprir com ele?
É possível cumprir assim. Se é preciso cortar a gente corta, sem olhar para as consequências. A primeira coisa a fazer logo em 2011 era ter avaliado o impacto das medidas na saúde. Não se fez.
A qualidade do SNS baixou desde a chegada da troika?
Temos relatos que nos obrigam a pôr a questão… 
Mas o ministério continua a ver isso como relatos apenas…
A resistência para o insucesso é muito grande quando há um processo de intervenção destes. Ninguém admite insucessos. 
Na semana passada saíram dois estudos que mostram que o aumento das taxas não criou bloqueios ao acesso.
Mas não provam. O facto de não se conseguir comprovar o efeito não quer dizer que ele não exista. Nós sabemos que o efeito não é universal. A hipótese de partida é se há grupos da população portuguesa que são afectados.
O ministro da Saúde é um dos mais populares do Governo. A que se deve?
De uma forma geral os ministros da saúde não têm sido muito impopulares, pelo menos nos dois primeiros anos [risos]. Paulo Macedo é uma pessoa inteligente e tem boa imagem pública. As pessoas pensam que é uma pessoa interessada, inteligente, competente e com espírito de missão, portanto um ministro de qualidade. E as pessoas respeitam um ministro de qualidade mesmo que não concordem com ele. Além disso tem a fama e o proveito de ser ouvido no Governo e isso conta muito. 
A sua forma de estar também ajuda?
Sim. Não está sempre a falar e quando fala dá boas notícias. Há uma estratégia de comunicação no Ministério, facilitada pelo facto de Paulo Macedo ter conseguido ir buscar dinheiro para as dívidas e ter conseguido que os cortes na saúde praticamente não se verificassem em termos reais este ano. Isto permitiu-lhe dizer que protege a saúde, o que é objectivamente verdade. 
Então e defeitos? 
Peca por uma certa auto-suficiência. Enche-se de convicção e as pessoas com muita convicção tornam-se menos receptivas a ouvirem. Ouve pouco aquilo que não está na caixinha e tem o inconveniente de um ministro independente. Sabe qual é? Os partidos metem-lhe a máquina à volta e ele é menos livre do que parece.
Mas isso nota-se na sua acção?
Não tenho dúvidas. Há coisas que não consegue fazer porque não tem máquina para o fazer, mas claro que não reconhece. Pode ser um ministro inteligente, mas acaba por ser puxado pela pouca inteligência do sistema que o rodeia. Os efeitos reais das suas intenções são muito menores do que ele gostaria.
Macedo está a ser o melhor ministro da Saúde dos últimos anos?
É muito difícil fazer comparações. Depende muito do contexto. Não temos tido maus ministros, o que eles não têm é uma máquina que lhes permita tomar decisões rapidamente. As transformações de fundo que precisamos para sustentar o SNS exigem um aprofundamento de decisões que não são feitas em cima do campo de batalha.

JN 11 Julho 2013

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sábado, junho 22

Impacto da crise na Saúde


Aumento da depressão, falta de aposta nos cuidados primários, desigualdade no acesso à Saúde
O Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) publicou esta semana um relatório sobre a evolução dos cuidados de saúde e a análise da governação no último ano. A coordenadora, Ana Escoval, deixa o alerta: a crise está a deixar os portugueses mais doentes e com menos cuidados. E quem não tem dinheiro tem menos acesso à Saúde. O ministro faltou à apresentação do documento na terça-feira, não ouviu o aviso, mas já prometeu estudar o assunto.
O Observatório afirma que a crise está a ter um impacto na Saúde. De que forma?
Há uma dificuldade expressa pelas pessoas na sua deslocação a tratamentos. Não têm recursos para pagar o transporte até às unidades de saúde e as taxas moderadoras. A conjugação destes dois custos, acrescidos das despesas que têm com os medicamentos, e numa situação de empobrecimento geral, faz com que tenham cada vez mais dificuldade em fazer os tratamentos.
O custo das taxas moderadoras é demasiado elevado?
É. Estamos a assistir a situações de pessoas que vão aos serviços de saúde só em último caso porque o dinheiro não é suficiente. Quando chegam à urgência estão mais doentes.
A taxa deve baixar?
Penso que as taxas moderadoras não devem existir. Na altura em que foram criadas, não tínhamos sistemas de informação tão desenvolvidos que nos permitissem perceber com rigor as situações em que as pessoas estavam a procurar os serviços sem necessidade. Hoje já temos forma de perceber isso. Se uma pessoa se deslocar às urgências dez vezes num mês é preciso saber se isso aconteceu porque a sua situação não ficou resolvida, e nesse caso a culpa é dos cuidados prestados, ou se aconteceu porque gosta de ir ao hospital, e aí a pessoa deve pagar. De resto, não. As taxas estão a ser um obstáculo real no acesso aos cuidados.
A crise pode aumentar a mortalidade?
Os estudos mostram que as crises arrastam consigo um aumento do suicídio e um agravamento de algumas doenças. Nós detetámos indícios de que isto está também a acontecer em Portugal. Fizemos um questionário a idosos que têm de tomar pelo menos um medicamento por dia e verificámos que muitos estão a espaçar a toma, o que significa que a sua doença vai agudizar-se. Muitos clínicos Segundo um inquérito feito pelo Observatório, um terço dos idosos reduziu os cuidados de saúde e a toma da medicação por falta de dinheiro É preciso avaliar o impacto da crise na saúde mental e publica dados alarmantes de uma unidade de saúde no Alto Minho: de 2011 para 2012 os casos de depressão aumentaram 30% e as tentativas de suicídio subiram 35% entre os homens e 47% entre as mulheres O relatório critica “ausência de efetiva prioridade política a este nível”, nomeadamente o atraso na abertura de novas USF Hospitais privados discriminam doentes da ADSE, que esperam mais tempo por uma consulta e pagam mais pelos exames dizem-nos que de facto já está a haver um agravamento. É fundamental monitorizar o que está a acontecer para podermos antecipar as respostas necessárias. Até porque a crise veio modificar as necessidades de cuidados e o sistema tem de se adequar.
O que mudou?
Se o nível de vida das pessoas se agrava é natural que haja mais dificuldade no acesso aos cuidados e, por outro lado, uma transferência para o Serviço Nacional de Saúde de pessoas que antes recorriam ao privado.
O SNS está preparado para esse aumento da procura?
Ao nível dos cuidados de saúde primários, está a ser feita uma aposta menor na abertura de novas Unidades de Saúde Familiar (USF), o que não nos parece que esteja a ajudar. Há um conjunto de USF que aguardam autorização para entrar em funcionamento e essas autorizações tardam.
O relatório alerta para o impacto da crise ao nível da saúde mental. O que pode acontecer?
É natural que a crise tenha um impacto significativo no aumento dos casos de depressão. Isso também está estudado internacionalmente. As pessoas veem-se a empobrecer, perdem o trabalho, sentem-se desmotivadas e tristes. As Unidades de Saúde Familiares e de cuidados na comunidade têm de apoiar estes doentes nos seus domicílios e tem de haver recurso a outros profissionais, como psicólogos, para evitar uma escalada no consumo de antidepressivos e um aumento do suicídio.
Segundo o relatório, os cortes na Saúde foram além do previsto no memorando da troika. Foi-se longe de mais?
O próprio FMI reconhece que os cortes têm impactos significativos que não são bons para as populações. Se ainda fomos além dos cortes previstos pela troika, é preciso perguntar se era necessário. A nós parece-nos que não. E era necessário ir tão depressa? Também não. Um corte progressivo na despesa, ao mesmo tempo em que iam acontecendo alterações que melhorassem a eficiência, traria de certeza menos dor e respostas mais adequadas. O país cortou nas áreas sociais a uma velocidade que excedeu o que seria desejável. Fomos muito bons alunos da troika, mas não sei se os resultados daqui a alguns anos não vão mostrar que estes cortes tão abruptos provocaram um impacto muito penoso na população.
Ainda há margem para cortar mais na Saúde?
Não. Em termos de despesa, estamos ao nível de 2006. Temos hoje uma população mais pobre, mais envelhecida, com mais doenças crónicas e com maior necessidade de cuidados. Não há margem para cortar mais. Portugal gasta per capita menos em saúde do que a média da OCDE. Se gastamos menos e temos bons resultados em Saúde, significa que até somos eficientes e temos estado a gastar bem o nosso dinheiro...
O relatório denuncia desigualdades no acesso à Saúde, nomeadamente entre os doentes que têm dinheiro para pagar tratamentos e exames no privado e os que não têm. O dinheiro condiciona os tratamentos?
Não temos dúvidas de que quem tem dinheiro tem acesso prioritário à Saúde. Se uma pessoa não tiver dinheiro para pagar num privado um exame fundamental para o diagnóstico como uma colonoscopia, é quase impossível conseguir marcá-lo num tempo clinicamente aceitável. Não é razoável que a pessoa não tenha a sua doença devidamente diagnosticada e tratada só porque não tem dinheiro. Mas isso está a acontecer. Nós fomos testar isso e a verdade é que não conseguimos, enquanto doentes do SNS, marcar uma colonoscopia em nenhum convencionado da região de Lisboa. Quando tentámos marcar no privado, percebemos que se fôssemos através da ADSE só tínhamos vaga daí a 100 dias. Quando perguntámos “então e se eu pagar do meu bolso?” “Se pagar, pode fazer já”, responderam.
Isso também acontece no caso das cirurgias?
Nos últimos anos o país foi-se apetrechando com sistemas de informação que melhoraram significativamente a resposta à população porque permitem gerir as listas de espera de acordo com a prioridade clínica. Esse critério também foi introduzido para as consultas. É preciso criar o mesmo sistema para os meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Mas apesar das melhorias ao nível das cirurgias e das consultas, também verificamos que está a haver a esse nível um aumento das listas de espera, provavelmente devido à maior procura dos hospitais públicos.
Como interpreta o facto de a apresentação do relatório não ter contado com a presença do ministro ou de um secretário de Estado da Saúde?
Lamento profundamente.
Acha que o Governo está a descurar o impacto da crise?
Fiquei muito contente ao ouvir o ministro dizer ontem (quarta-feira) que vai avançar com um estudo aprofundado para avaliar o impacto da crise. É isso que nós temos vindo a pedir. É isso que outros países estão a fazer, que a Organização Mundial de Saúde recomenda e que está a tardar em Portugal.
texto Joana Pereira Bastos, foto Jorge Simão, expresso 22.06.13


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quinta-feira, junho 20

Sakellarides lamenta "autosuficiência do governo"

Ex-coordenador do Observatório do Sistema de Saúde, que amanhã faz um balanço da situação do país, lamenta "autosuficiência do governo"
Faz um ano que o Observatório Português dos Sistemas de Saúde avisou que a austeridade estava a fazer mal à saúde e que havia sinais de racionamento implícito no SNS, não por ordem da tutela mas por pressões financeiras que não permitiam manter as boas práticas. Amanhã o observatório apresenta um novo relatório. Constantino Sakellarides dirigiu o projecto até ao ano passado e saiu para dar vez a outras lideranças. Mas acredita que há um alerta por escutar: um governo não pode ser alérgico a críticas e negá-las sem contraditório.
Continua a haver racionamento implícito no SNS?
A queixa no ano passado era haver indícios e as autoridades não os investigarem. Este ano presumo que o relatório possa repetir a crítica, o natural é que persistam esses sinais: estão subjacente à lógica de pressão financeira. O essencial é que não parece ter havido investigação. Não existe um relatório a reconhecer as queixas e a dizer que umas são verdade e outras não.
O que impede essa investigação?
Os poderes não estão habituados ao contraditório. Geralmente as criticas vêm da oposição, o que faz com que confrontados com reparos fundamentados usem a resposta política de que os outros estão contra ou a dizer mal. Contribui também para isso uma certa inércia das forças políticas. A crítica da oposição politica por exemplo em relação a saúde é um deserto.
O título do relatório do ano passado era "Um país em sofrimento". Acha que contaminou a leitura da tutela?
O Secretário de Estado não gostou nada mas o título corresponde à realidade. Só quem anda noutro mundo é que não compreende que um país com 18% de desempregados, sucessiva austeridade, aumentos de impostos, jovens a sair em carruagem, está em sofrimento. Os sinais de sofrimento social são intensíssimos.
Mas o relatório era sobre saúde.
As ameaças de saúde vêm do sofrimento social. Desemprego e o empobrecimento são determinantes de saúde e do acesso.
Ficou desiludido com o seguimento dado ao relatório?
O que me confrange é o esforço e o cuidado que tivemos em classificar o que encontrámos, evitando críticas infundadas. Dizemos que há coisas a acontecer e, noutros casos, que há indícios. O relatório merecia ter sido colocado em cima da mesa pelo governo, que até nos poderia ter chamado. O governo tem de estar aberto a visões externas.
Este governo é menos aberto?
Não noto muitas diferenças, há é um contexto nacional e europeu bloqueado que faz com que os traços de auto-suficiência se acentuem. Existe uma história oficial que anda à volta das dificuldades dos programas de ajustamento, que vê os seus méritos e tem dificuldade em aceitar os fracassos. Esta história vem-se afastando cada vez mais do que as pessoas sentem, da história real.
Como vê a postura de Paulo Macedo?
É, como dizem as sondagens, o melhor ministro do governo. É inteligente e bom gestor, mas gostaria que estas qualidades se transmitissem ao governo e que o ministério da Saúde não importasse as coisas más do governo, auto-suficiência, e reacções epidérmicas a críticas.
Vê margem para uma atitude diferente?
Esta postura de negação tem sido do conjunto do governo e nenhum ministro pode sair dessa sombra. Percebo que o ministro tenha dificuldades mas devia fazê-lo. Só assumindo que austeridade tem efeitos negativos é que melhoramos.
Está mais preocupado?
Julgo que pouco se alterou. Mas há aspectos positivos. Já no ano passado o relatório destacava avanços na área do medicamento, racionalização de recursos, redução de dívida. O que nenhum governo pode presumir é que é tão bom que só faz as coisas bem e nem estar disponível para ouvir críticas. Foi isso que aconteceu no ano passado.
O SNS está pior nestes dois anos de troika?

O problema não são os cortes que o SNS sofreu nos últimos anos, mas terem sido abruptos. Uma coisa era cortar-se com calma para dar tempo a reorganização. Cortar como se cortou deixa marcas e é preciso avaliá-las e defender o SNS de mais cortes. O ministro protegeu o orçamento deste ano, é verdade, mas o aumento das taxas não protege o acesso. Não há preto e branco, como o governo e oposição gostam de descrever as coisas. Há coisas boas e más e pessoas razoáveis têm de o admitir.
I, 17.06.13

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sexta-feira, janeiro 18

John Yfantopoulos, entrevista

Mas a informação que chega é que o acesso aos serviços de saúde está cada vez mais comprometido e que, à semelhança de Portugal, o aumento das taxas moderadoras estão a gerar grandes dificuldades.link
As admissões nos hospitais públicos cresceram cerca de 20%, porque houve uma grande redução no que é prestado no sector privado. Até agora a nossa despesa pública em saúde correspondia a cerca de 55% e a privada a 45%. As taxas moderadoras e os co-pagamentos estão certamente a gerar problemas e penso que precisamos de trabalhar num pacote de serviços mínimos para garantir que os mais pobres têm acesso ao essencial. É preciso garantir uma espécie de seguro mínimo. Isto porque há obstáculos que muitas vezes não são visíveis e que privam as pessoas dos serviços. Os doentes entram no sistema, mas a partir do momento em que entram têm de pagar quantias avultadas e a qualidade do serviço é questionável...
Está novamente a referir-se à corrupção? É preciso subornar para se ser atendido?
Sim. Os gestores hospitalares na Grécia são políticos falhados e membros de partidos políticos sem qualquer tipo de conhecimento de como devem gerir grandes hospitais. Precisamos de profissionais e não de políticos para combater a corrupção e a economia paralela. Os casos de corrupção acontecem mais em cirurgias. Se não pagarmos por baixo da mesa ou se não pusermos um envelope nas mãos do médico, vemos que a cirurgia não é propriamente recusada mas é sucessivamente adiada. E os mais velhos e os mais jovens são os que estão a pagar mais, pois são os que já não têm ou os que ainda não têm uma posição social confortável. Chamamos-lhe uma inversão da teoria do Robin Hood, em que não me pedem dinheiro a mim que sou professor universitário e que já tenho a minha posição social, mas pedem, por exemplo, a agricultores que não têm uma rede de conhecimentos.
JP 17.01.13

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segunda-feira, julho 23

Doentes com cancro

Estão a ser punidos em Portugal
Vítor Veloso é muito crítico em relação ao modo como está a ser feita em Portugal a luta contra o cancro: link

Antes de começarmos esta entrevista dizia que estava muito preocupado. Com quê?
Uma das questões que mais me preocupa está relacionada com os sobreviventes do cancro que não estão a ser devidamente tratados. Estas pessoas têm de ter, indiscutivelmente, uma vigilância contínua mesmo depois dos cinco anos livres de cancro e, para a Liga, é muito preocupante que estes doentes não sejam defendidos.

Mas estas pessoas não estão isentas de taxas moderadoras, como diz o ministro da Saúde?
O senhor ministro anunciou publicamente, há cerca de dois meses, que os sobreviventes de cancro, após cinco anos livres da doença, não pagariam taxas moderadoras dos exames e consultas relacionadas com a sua patologia. Mas, de qualquer modo, isso ainda não saiu em sítio nenhum. Estes doentes continuam a pagar e sem qualquer apoio.

Existem cerca de 250 mil pessoas nesta situação, é isso?
Mais. Na minha opinião serão entre os 300 e 400 mil doentes. É preciso que haja uma portaria, directriz, circular, qualquer coisa oficial que diga que estes doentes estão efectivamente isentos. Nessa altura, estes que estão a pagar deviam ser reembolsados. Os doentes reclamam que estão isentos e a parte administrativa diz que não sabe de nada e, por isso, acabam por pagar. Só houve a palavra do ministro e mais nada. Isto não pode ser.

Relativamente aos doentes com cancro, a LPCC também está preocupada ?
Também. A nível da acessibilidade há muitos problemas. As pessoas não têm dinheiro para pagar os transportes. Uma senhora contavame que gastava todo o dinheiro que o Estado dá só no táxi de sua casa até ao transporte público que precisava de apanhar até ao Porto. Isso é dramático. O Governo fixa a isenção na base do ordenado mínimo mas, para as pessoas que têm rendimentos um pouco acima disso e que não estão isentas, é muito difícil aguentar. São muitas consultas e tratamentos.

Há doentes a faltar às consultas?
Houve muitos doentes que faltaram a consultas e tratamentos de radioterapia e quimioterapia e que continuam a faltar. Repare que isso faz a diferença entre uma cura ou a sobrevivência com qualidade e uma morte desnecessária.

Tem ideia de quantas pessoas estão nessa situação?
Não. É difícil ter dados sobre isso até porque os doentes têm medo de se queixar, seja do que for.

Medo?
Pode acreditar que sim. Têm medo de represálias dos serviços onde são tratados. É uma realidade e uma tolice. Aliás, quando um doente faz queixa, provavelmente, vai ser mais bem tratado.

Entrevista Andrea Cunha Freitas, JP 23.07.12

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sexta-feira, julho 20

Alguns encerramentos são insensatos


JP - Como membro da anterior comissão que reorganizou a rede de urgências o que pensa deste relatório de reavaliação?
Luís Campos - Em primeiro lugar a ideia de avaliar a reforma das urgências, como aliás qualquer reforma implementada, é fundamental. A nossa comissão já tinha, de resto, proposto um grupo de trabalho que monitorizasse a reforma de 2008 e fosse fazendo os ajustamentos necessários. Esta comissão avalia o grau de implementação da rede de 2008, mas falta-nos conhecer o real impacte ao nível da qualidade dos cuidados prestados aos doentes urgentes. Não sabemos, [por exemplo], se permitiu poupar vidas dos doentes politraumatizados. Por outro lado a proposta desta comissão é muito mais lata do que a definida em 2008, na medida em que inclui propostas sobre rede de referenciação, sistema de helicópteros, informatização dos serviços de urgência, indicadores de qualidade, entre outros.

JP - Concorda com as propostas?
Luís Campos - O grande critério estabelecido pela anterior comissão — haver um ponto de rede de urgência a menos de 30 minutos para, pelo menos, 90% da população — é cumprido pela proposta desta comissão, na medida em que isso é conseguido para 94,9% da população. Agora, nós entramos em linha de conta com outros critérios que não estão incluídos nesta proposta, como seja sinistralidade, risco industrial, variação sazonal e outros. Em relação à proposta concreta de encerramentos ou despromoção de nível de urgência, há situações que correspondem apenas à implementação do despacho de 2008. É o caso de algumas situações que permaneciam apenas até à integração em centros hospitalares ou melhoria das acessibilidades. Como exemplos temos Chaves, Mirandela, Fafe, Santo Tirso, Montijo e Peniche. As questões mais complicadas estão relacionadas com os SUB. A diminuição proposta de 45 para 34 é muito expressiva. Há casos em que, como disse, se trata apenas de implementar a proposta anterior. Existem outros em que a proposta é discutível mas aceitável. No entanto há situações em que me parece insensato o encerramento proposto, como são os casos de Lagos e Loulé, que são urgências caracterizadas por um movimento significativo, acima das 100 admissões por dia, com grande variação sazonal e em que o encerramento iria provocar uma sobrecarga intolerável paras urgências mais próximas. Fechar Lagos, por exemplo, signifi ca que poríamos a população de Sagres a 50 quilómetros de Portimão. O mesmo acontece em relação a Tomar, que é um núcleo populacional muito expressivo. Outro exemplo é o de Agualva- Cacém (que no relatório aparece como não SUB, mas que está a atender casos urgentes), porque serve a população de Sintra superior a 400 mil pessoas e serve de tampão ao Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra) cuja urgência que funciona nos limites. Outro caso de diferente natureza é o de Idanha-a-Nova, que propusemos em 2008 e não está a funcionar. Se pensarmos na vastidão daquela região inóspita, é fácil perceber que aquela população beneficiaria muito com um SUB na Idanha ou mesmo em Penamacor.

JP - Portugal tem demasiados pontos de urgência, quando comparado com outros países?
Luís Campos - Eu acho que não tem demasiados pontos de urgência, se comparamos o número de urgências médico-cirurgicas ou polivalentes. Temos um número comparável ou mesmo inferior a outros países europeus. No entanto é preciso ver que temos um nível, o Serviço de Urgência Básica, que não existe em muitos outros países. Definir uma rede de urgências tem que ser em função das características do país. É preciso ver que em 2005 havia 73 serviços de urgência médicocirúrgicos ou polivalentes, dos quais 55% em hospitais com menos de 200 camas, o mínimo para que um hospital funcione para doentes agudos, e nós propusemos a redução para 44. Já é uma concentração muito substancial que nos parece trazer mais qualidade à rede urgências.

JP - E o que pensa da passagem de algumas urgências polivalentes para médico-cirúrgicas?
Luís Campos - Em relação à região do Porto, acho perfeitamente admissível que haja apenas duas urgências polivalentes, atendendo à população. Quanto aos Covões, isso decorre da criação do Centro Hospitalar de Coimbra.

JP - Mas a urgência dos Covões até foi fechada durante o período nocturno, o que penso ser inédito...
Luís Campos - Sim, não há urgências que fechem à noite. Se fecham à noite não são urgências. Essa é a definição que está consignada na lei portuguesa.

JP - O que preconiza para a região de Lisboa? Concorda com as sugestões deste grupo?
Luís Campos - Lisboa provavelmente não precisa de quatro SUP durante a noite. Bastaria um ou dois à noite, período em que passariam a funcionar como urgências médicocirúrgicas. Relativamente ao Garcia de Orta (Almada) e Évora, são hospitais que de facto não se equiparam e não evoluíram para SUP. Mas estas são situações que devem ser vistas ao nível das Administrações Regionais de Saúde e da decisão política. Se a decisão for de manter, o facto de não ter capacidade de responder num determinado nível, quer apenas dizer que tem que se investir nesses hospitais. Por outro lado, a rede de urgências está ligada à definição da rede hospitalar e essa coerência tem que ser decidida de forma integrada.

JP - A verdade é que, depois da vossa proposta, houve hospitais que investiram na remodelação e reequipamento dos seus serviços de urgência e que agora se vêem confrontados com a hipótese de fecho, como é o caso de Santo Tirso.
Luís Campos - Acho que as ARS deviam impedir investimentos que não se enquadram nas redes definidas. São investimentos que visam impor situações de facto mas que representam sinais de desperdício, intoleráveis nestes tempos.

entrevista de Alexandra Campos, JP 19.07.12

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domingo, junho 3

Jorge Simões, entrevista

“É preciso inteligência para não penalizar os doentes”
Responsável pelo mais recente estudo sobre a reorganização dos hospitais do SNS, encomendado pelo Governo, o presidente da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) diz que os portugueses só vão continuar a ter assistência gratuita se os serviços hospitalares forem concentrados e os médicos redistribuídos. Jorge Simões sabe que haverá críticas, mas acredita que os “acertos” serão aceites, porque não há alternativa.
Esta proposta de Carta Hospitalar foi concluída com atraso. Porquê?
Não. A ERS, por sua iniciativa, elaborou um primeiro projeto sobre a oferta pública hospitalar, que publicou em julho de 2011, e já com o Governo atual foi solicitado um estudo técnico para a Carta Hospitalar. Foi entregue em dezembro, mas o ministro da Saúde quis um afunilamento das especialidades médicas e áreas geográficas e esse prazo foi rigorosamente cumprido.
O que desagradou ao ministro?
Havia que fazer escolhas. Ou fazíamos um estudo superficial sobre todas as especialidades ou mais aprofundado, sobre algumas; e foi solicitado um enfoque na medicina interna, cirurgia geral, neurologia, pediatria, obstetrícia e infecciologia porque constituíam prioridades para o Ministério da Saúde — portanto, não discuti essas escolhas.
Um dos princípios referidos no estudo é que o “acesso aos cuidados deve ser garantido aos utentes onde quer que vivam”. Isto tem sido assegurado?
A questão do acesso tem sido uma preocupação da ERS e esta proposta toma como pressuposto fundamental que se mantenha, ou reforce, o acesso aos cuidados de saúde e com uma limitação de tempo. Deve existir um limite de 90 minutos no acesso de todos os cidadãos a cuidados hospitalares.
Uma das propostas para essa equidade no acesso é a mobilidade dos profissionais, por exemplo ter clínicos hospitalares nos cuidados primários. Os médicos vão aceitar?
Seria um bom princípio, pois é conhecida a fortíssima assimetria de médicos em Portugal. Temos um número exagerado de infecciologistas nalguns centros e um défice acentuado noutros. E o mesmo acontece na pediatria, obstetrícia, anestesiologia, otorrino... A mobilidade é uma possibilidade para serem redistribuídos com maior racionalidade. Temos quase todos os hospitais integrados em centros hospitalares ou em unidades locais de saúde e esses médicos já podem ter uma certa mobilidade, porém não é o bastante.
É ainda defendido que se continue a desenvolver os cuidados primários e o atendimento em ambulatório.
Deve acentuar-se o carácter ambulatório de muitas das intervenções que atualmente são feitas. O enfoque em hospitais de dia e em cirurgia de ambulatório é fundamental, assim como nas tecnologias de informação e comunicação. Marcamos poucas consultas pela Internet, contactamos pouco com os profissionais de saúde por telemóvel...
O aumento do ambulatório não vai aumentar os custos para o doente? No internamento não há taxas.
De modo nenhum. Aliás, é do interesse do doente, porque nenhum de nós gosta de ser internado quando pode ser tratado em ambulatório; e do SNS, na medida em que as despesas são muito menores. Mas é preciso haver inteligência suficiente para que não se penalizem essas situações muito menos onerosas para os doentes e para o SNS.
É dito no estudo que as redes de referenciação hospitalar estão definidas mas ninguém as cumpre. Há implicações para os doentes?
As redes de referenciação são fundamentais para que cada hospital perceba qual é a sua missão no SNS. Temos alguns diplomas — e na década de 80 houve algo aproximado a uma Carta Hospitalar, quando era ministra da Saúde Leonor Beleza — mas é necessário que sejam cumpridos. Não se entende como é que um hospital em cada lado da rua fornece respostas semelhantes aos doentes. Refiro-me à oncologia, medicina de reabilitação, cardiologia...
E como é que se conciliam essas redes com a liberdade de escolha do doente e do médico, como defende a ERS?
A liberdade de escolha é uma questão meramente programática, visto que os hospitais têm áreas de atracão. É preciso saber qual é a missão de cada um dos estabelecimentos hospitalares no âmbito da sua especialidade e a resposta tem de ser muito concreta.
Ao invés, os hospitais públicos geridos por privados têm a área de influência bem definida e é vinculativa.
Porque o financiamento faz-se com base nos doentes que são provenientes de certas áreas geográficas — portanto, o hospital público gerido por privados não está disponível para receber doentes fora daquilo que é contratado. Isto deveria ser válido para os restantes hospitais, já que há contratos-programas negociados todos os anos.
O estudo identifica redundâncias na assistência, mas diz que não devem ser eliminadas. Porquê?
Este estudo devia ser culto, e como Abel Salazar dizia: “Os médicos que só sabem medicina nem medicina sabem”. Em termos de acessibilidade, há necessidade de haver pequenos hospitais que cubram áreas geográficas excêntricas porque uma população envelhecida não é o mesmo que uma população jovem e com um consumo de cuidados muito inferior. O caso do Alentejo é o mais gritante.
Outro exemplo: 12 dos hospitais que em 2011 tiveram partos não atingiram os 1500 e, portanto, deviam encerrar este serviço, mas a Carta é omissa.
A razão é a mesma: questões de acesso. Não podemos fechar dois blocos com 400 partos cada e deixar essa população sem cuidados de obstetrícia. Por exemplo, como nos casos da Covilhã, Guarda e Castelo Branco.
A ERS diz que as maiores redundâncias estão no Porto, Coimbra e Lisboa, mas os encerramentos propostos só incluem hospitais periféricos.
Esses hospitais estão integrados em centros e as soluções requerem um estudo complementar. Nas unidades mais pequenas estamos a falar do encerramento de serviços a 15 minutos de hospitais maiores e com consequências financeiras diferentes, porque envolvem menos profissionais.
Os peritos consultados pela ERS propõem o fecho de serviços no São Francisco Xavier, Santa Marta e Santa Cruz (Lisboa), por exemplo, mas a proposta final não o refere.
Sim. As propostas da ERS ficam aquém das recomendações dos peritos.
Qual é a mudança que mais destaca?
Nenhuma. Por exemplo, a medicina interna é uma especialidade básica. Onde não existe não faz sentido haver hospital. E a cirurgia geral e a infecciologia só devem existir em certo tipo de unidades. Mas não escondo que a obstetrícia está muito nos focos.
De onde espera maior contestação a este estudo da Carta Hospitalar?
(Risos) A contestação não será ao estudo, porque é técnico e encomendado. Não falei com autarcas, associações profissionais, hospitais... Portanto, esse percurso, se assim for entendido, será percorrido pelo Governo.
Qual foi a apreciação que o ministro fez desta versão final?
Conversámos.
No estudo é salientado que as várias medidas para reorganizar o SNS não têm sido cumpridas. Que garantias tem de que esta não será mais uma tentativa falhada?
Para ser franco, não temos alternativas. Se pretendemos continuar com o SNS — das respostas socialmente mais completas — temos de permitir acertos que vão ao encontro da qualidade e da segurança das populações. Se isto for transmitido, não tenho a mais pequena dúvida de que os portugueses, os profissionais e os autarcas vão perceber.
Vera Lúcia Arreigoso , António Pedro Ferreira, semanário expresso 02.06.12

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quinta-feira, maio 24

SNS, perigo de vida

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) não corre perigo de vida pelas "dificuldades orçamentais" que hoje marcam a vivência nacional... Mas por outras malfeitorias. "É a agiotagem, o compadrio, o nepotismo, a submissão aos grandes grupos económicos e a falta de sensibilidade social que põem em causa a sustentabilidade do SNS e demais conquistas de Abril". Quem o diz é António Arnaut, o "Pai" do SNS, que em entrevista exclusiva ao nosso jornal antecipa cenários: "Este mal só acabará quando, como dizia o Torga, «o povo vier à tona da história», ou seja, quando o povo empunhar uma grande vassoura para, com o cabo, dar umas vergastadas nos carreiristas, e depois varrer o lixo para a vala comum dos medíocres"... E deixa uma alerta: "As medidas de austeridade já atingiram a fronteira do suportável. Se vierem novas medidas, a aparente resignação dará lugar à indignação, de consequências imprevisíveis. Espero que o governo não corra o risco de pôr em risco o SNS. Se o fizer o povo salvará o SNS, mas o governo não se salvará.

E o compadrio? Como pensa ser possível acabar com uma cultura que, poder-se-ia afirmar sem receio de falácia, integra o ideal a que pomposamente se apodou de "Alma Lusa", e que encontra o seu apogeu na máxima "A família está primeiro" e se verte, na oralidade, entre tantas outras formas, na singela: "vê lá se arranjas alguma coisita para o Manelinho, que o coitado anda a precisar de ganhar algum..."

O compadrio e o nepotismo são uma instituição nacional. Por isso há tanto incompetente nos lugares cimeiros. Este mal só acabará quando, como dizia o Torga, "o povo vier à tona da história", ou seja, quando o povo empunhar uma grande vassoura para, com o cabo, dar umas vergastadas nos carreiristas, e depois varrer o lixo para a vala comum dos medíocres.

O que sente quando ouve o Dr. Paulo Macedo referir que não quer ser o coveiro do SNS; que "A redução de custos vai levar a uma maior eficácia"... Para logo apontar: Coveiro será quem não tomar medidas de redução da despesa"...

Ainda dou ao Dr. Paulo Macedo o benefício da dúvida. Disse-lhe há dias que se ele quer, efectivamente, salvar o SNS estarei ao seu lado. Caso contrário, estarei à sua frente. Quero, aliás, aproveitar a oportunidade para referir que o Senhor Presidente da República me enviou uma mensagem por ocasião do almoço que recentemente me foi oferecido em Penela, em que considera o SNS como "pilar" de justiça social. No passado dia 27, na sua visita oficial a Penela, onde o fui cumprimentar, o Professor Cavaco Silva garantiu que o SNS é sustentável.
...
Entrevista de Adelaide Oliveira e Miguel Múrias Mauritti, JMF 07-05-2012. link

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