“É preciso inteligência para não penalizar os doentes”
Responsável pelo mais recente estudo sobre a reorganização dos hospitais do SNS, encomendado pelo Governo, o presidente da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) diz que os portugueses só vão continuar a ter assistência gratuita se os serviços hospitalares forem concentrados e os médicos redistribuídos. Jorge Simões sabe que haverá críticas, mas acredita que os “acertos” serão aceites, porque não há alternativa.
Esta proposta de Carta Hospitalar foi concluída com atraso. Porquê?
Não. A ERS, por sua iniciativa, elaborou um primeiro projeto sobre a oferta pública hospitalar, que publicou em julho de 2011, e já com o Governo atual foi solicitado um estudo técnico para a Carta Hospitalar. Foi entregue em dezembro, mas o ministro da Saúde quis um afunilamento das especialidades médicas e áreas geográficas e esse prazo foi rigorosamente cumprido.
O que desagradou ao ministro?
Havia que fazer escolhas. Ou fazíamos um estudo superficial sobre todas as especialidades ou mais aprofundado, sobre algumas; e foi solicitado um enfoque na medicina interna, cirurgia geral, neurologia, pediatria, obstetrícia e infecciologia porque constituíam prioridades para o Ministério da Saúde — portanto, não discuti essas escolhas.
Um dos princípios referidos no estudo é que o “acesso aos cuidados deve ser garantido aos utentes onde quer que vivam”. Isto tem sido assegurado?
A questão do acesso tem sido uma preocupação da ERS e esta proposta toma como pressuposto fundamental que se mantenha, ou reforce, o acesso aos cuidados de saúde e com uma limitação de tempo. Deve existir um limite de 90 minutos no acesso de todos os cidadãos a cuidados hospitalares.
Uma das propostas para essa equidade no acesso é a mobilidade dos profissionais, por exemplo ter clínicos hospitalares nos cuidados primários. Os médicos vão aceitar?
Seria um bom princípio, pois é conhecida a fortíssima assimetria de médicos em Portugal. Temos um número exagerado de infecciologistas nalguns centros e um défice acentuado noutros. E o mesmo acontece na pediatria, obstetrícia, anestesiologia, otorrino... A mobilidade é uma possibilidade para serem redistribuídos com maior racionalidade. Temos quase todos os hospitais integrados em centros hospitalares ou em unidades locais de saúde e esses médicos já podem ter uma certa mobilidade, porém não é o bastante.
É ainda defendido que se continue a desenvolver os cuidados primários e o atendimento em ambulatório.
Deve acentuar-se o carácter ambulatório de muitas das intervenções que atualmente são feitas. O enfoque em hospitais de dia e em cirurgia de ambulatório é fundamental, assim como nas tecnologias de informação e comunicação. Marcamos poucas consultas pela Internet, contactamos pouco com os profissionais de saúde por telemóvel...
O aumento do ambulatório não vai aumentar os custos para o doente? No internamento não há taxas.
De modo nenhum. Aliás, é do interesse do doente, porque nenhum de nós gosta de ser internado quando pode ser tratado em ambulatório; e do SNS, na medida em que as despesas são muito menores. Mas é preciso haver inteligência suficiente para que não se penalizem essas situações muito menos onerosas para os doentes e para o SNS.
É dito no estudo que as redes de referenciação hospitalar estão definidas mas ninguém as cumpre. Há implicações para os doentes?
As redes de referenciação são fundamentais para que cada hospital perceba qual é a sua missão no SNS. Temos alguns diplomas — e na década de 80 houve algo aproximado a uma Carta Hospitalar, quando era ministra da Saúde Leonor Beleza — mas é necessário que sejam cumpridos. Não se entende como é que um hospital em cada lado da rua fornece respostas semelhantes aos doentes. Refiro-me à oncologia, medicina de reabilitação, cardiologia...
E como é que se conciliam essas redes com a liberdade de escolha do doente e do médico, como defende a ERS?
A liberdade de escolha é uma questão meramente programática, visto que os hospitais têm áreas de atracão. É preciso saber qual é a missão de cada um dos estabelecimentos hospitalares no âmbito da sua especialidade e a resposta tem de ser muito concreta.
Ao invés, os hospitais públicos geridos por privados têm a área de influência bem definida e é vinculativa.
Porque o financiamento faz-se com base nos doentes que são provenientes de certas áreas geográficas — portanto, o hospital público gerido por privados não está disponível para receber doentes fora daquilo que é contratado. Isto deveria ser válido para os restantes hospitais, já que há contratos-programas negociados todos os anos.
O estudo identifica redundâncias na assistência, mas diz que não devem ser eliminadas. Porquê?
Este estudo devia ser culto, e como Abel Salazar dizia: “Os médicos que só sabem medicina nem medicina sabem”. Em termos de acessibilidade, há necessidade de haver pequenos hospitais que cubram áreas geográficas excêntricas porque uma população envelhecida não é o mesmo que uma população jovem e com um consumo de cuidados muito inferior. O caso do Alentejo é o mais gritante.
Outro exemplo: 12 dos hospitais que em 2011 tiveram partos não atingiram os 1500 e, portanto, deviam encerrar este serviço, mas a Carta é omissa.
A razão é a mesma: questões de acesso. Não podemos fechar dois blocos com 400 partos cada e deixar essa população sem cuidados de obstetrícia. Por exemplo, como nos casos da Covilhã, Guarda e Castelo Branco.
A ERS diz que as maiores redundâncias estão no Porto, Coimbra e Lisboa, mas os encerramentos propostos só incluem hospitais periféricos.
Esses hospitais estão integrados em centros e as soluções requerem um estudo complementar. Nas unidades mais pequenas estamos a falar do encerramento de serviços a 15 minutos de hospitais maiores e com consequências financeiras diferentes, porque envolvem menos profissionais.
Os peritos consultados pela ERS propõem o fecho de serviços no São Francisco Xavier, Santa Marta e Santa Cruz (Lisboa), por exemplo, mas a proposta final não o refere.
Sim. As propostas da ERS ficam aquém das recomendações dos peritos.
Qual é a mudança que mais destaca?
Nenhuma. Por exemplo, a medicina interna é uma especialidade básica. Onde não existe não faz sentido haver hospital. E a cirurgia geral e a infecciologia só devem existir em certo tipo de unidades. Mas não escondo que a obstetrícia está muito nos focos.
De onde espera maior contestação a este estudo da Carta Hospitalar?
(Risos) A contestação não será ao estudo, porque é técnico e encomendado. Não falei com autarcas, associações profissionais, hospitais... Portanto, esse percurso, se assim for entendido, será percorrido pelo Governo.
Qual foi a apreciação que o ministro fez desta versão final?
Conversámos.
No estudo é salientado que as várias medidas para reorganizar o SNS não têm sido cumpridas. Que garantias tem de que esta não será mais uma tentativa falhada?
Para ser franco, não temos alternativas. Se pretendemos continuar com o SNS — das respostas socialmente mais completas — temos de permitir acertos que vão ao encontro da qualidade e da segurança das populações. Se isto for transmitido, não tenho a mais pequena dúvida de que os portugueses, os profissionais e os autarcas vão perceber.
Vera Lúcia Arreigoso , António Pedro Ferreira, semanário expresso 02.06.12
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