A Saúde vista através do Algarve
O discurso do Presidente da República suscitou acusações, parcialmente fundadas, de inconstitucionalidade
O Presidente da República ocupa e irá ocupar espaço nos media por uma incursão na política do quotidiano, quando inaugurou obras de requalificação e ampliação do Hospital da Misericórdia de Loulé. O discurso do Presidente suscitou acusações, parcialmente fundadas, de inconstitucionalidade por parte de António Arnaut e de Jerónimo de Sousa.
Vejamos primeiro a decisão do anterior Governo de apoiar as obras no edifício, notável a vários títulos, da Misericórdia de Loulé, para instalação de uma unidade de cuidados continuados, co-financiada pelo Ministério da Saúde. Tudo correcto e até louvável, representando uma alternativa bem melhor que a gorada tentativa de associação a um grupo privado para a criação de uma unidade totalmente lucrativa. O apoio financeiro do município, um dos mais ricos do País, é de saudar e não será estranho à sensibilidade profissional do seu presidente. O financiamento público das obras para acolher cuidados continuados integrados, prestados por instituições sociais, a partir de programas rigorosos que garantam qualidade na assistência, é complementado pelo pagamento regular dos cuidados através de um sistema complexo, fortemente informatizado, que reflecte a intensidade dos cuidados e previne rendas de privilégio. O contributo das Misericórdias e outros para a criação de quase cinco mil lugares, em menos de cinco anos, foi instrumental e executado através da cooperação entre a diplomacia florentina de Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias, e a alta capacidade de Inês Guerreiro, a responsável pelos CCI. Por aqui, tudo bem.
A Misericórdia de Loulé entendeu aproveitar a capacidade excedentária das suas instalações para outras actividades de saúde, como cirurgia electiva, consultas externas e fisioterapia. Está no seu direito, embora a experiência demonstre que os recursos humanos não costumam ser internos mas sim externos, médicos e enfermeiros do SNS, treinados a expensas públicas, actuando em acumulação de funções. Não é o melhor dos mundos, são conhecidos os efeitos desta contaminação e as perdas de eficiência do SNS nesta “dupla militância” profissional. O sistema existe desde há décadas, sem que as condições políticas tenham permitido a sua clarificação, a qual só agora se está parcialmente a fazer com opções definitivas a meio da carreira e reformas antecipadas dos profissionais. Com este exemplo de complementaridade continuamos no terreno do constitucionalmente aceitável.
Porém, o Presidente foi mais longe. Segundo a Lusa, teria afirmado que “se o Estado não tem capacidade de assegurar a qualidade e eficácia dos serviços de saúde, então deve delegar e partilhar com outras organizações, como é o caso das Misericórdias”, recomendando que se peça às Misericórdias que “prestem esses cuidados se o fizerem com melhor qualidade e eficiência”. Qualidade, eficácia e eficiência, três importantes atributos de um sistema de saúde que no discurso do Presidente são intuídos como claudicantes no Serviço Nacional de Saúde. Trata-se de um pressuposto não demonstrado; bem ao contrário, abunda a evidência de que é o contrário que se passa. O discurso aproximou-se do preconceito.
Não é difícil ver nas palavras do Presidente a defesa da suposta “igualdade de condições na oferta pública ou privada em saúde”, um conceito que conduziria à substituição da universalidade e do carácter público, “ beveridgeano”, do SNS, por um sistema convencionado e abundantemente privado, “ bismarckiano”. Não foi essa a decisão tomada em 1979 e confirmada por um consenso de trinta anos. O que mais se estranha é não se ter pensado nos gastos. Convencionar serviços hospitalares de agudos com o sector privado seria gastar em dobro: no pagamento das convenções e na sustentação da capacidade pública tornada parcialmente ociosa. Para não falar na degradação da qualidade do SNS, um dos seus mais sólidos valores. Nestes termos e exacta medida, as propostas do Presidente, apesar de vagas, não escapam à crítica da inconstitucionalidade.
O que a nosso ver se não aplica à alteração das taxas moderadoras. O Presidente não falou em usá-las para financiamento do SNS, o que seria provavelmente inconstitucional, mas apenas como “diferentes contribuições para a distribuição dos encargos com a Saúde”, o que se enquadra no conceito de racionalização do uso do sistema, permitindo variação das taxas em função do melhor funcionamento do SNS, como de resto foi recomendado pela troika.
Correia de Campos , JP 13.07.11
O Presidente da República ocupa e irá ocupar espaço nos media por uma incursão na política do quotidiano, quando inaugurou obras de requalificação e ampliação do Hospital da Misericórdia de Loulé. O discurso do Presidente suscitou acusações, parcialmente fundadas, de inconstitucionalidade por parte de António Arnaut e de Jerónimo de Sousa.
Vejamos primeiro a decisão do anterior Governo de apoiar as obras no edifício, notável a vários títulos, da Misericórdia de Loulé, para instalação de uma unidade de cuidados continuados, co-financiada pelo Ministério da Saúde. Tudo correcto e até louvável, representando uma alternativa bem melhor que a gorada tentativa de associação a um grupo privado para a criação de uma unidade totalmente lucrativa. O apoio financeiro do município, um dos mais ricos do País, é de saudar e não será estranho à sensibilidade profissional do seu presidente. O financiamento público das obras para acolher cuidados continuados integrados, prestados por instituições sociais, a partir de programas rigorosos que garantam qualidade na assistência, é complementado pelo pagamento regular dos cuidados através de um sistema complexo, fortemente informatizado, que reflecte a intensidade dos cuidados e previne rendas de privilégio. O contributo das Misericórdias e outros para a criação de quase cinco mil lugares, em menos de cinco anos, foi instrumental e executado através da cooperação entre a diplomacia florentina de Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias, e a alta capacidade de Inês Guerreiro, a responsável pelos CCI. Por aqui, tudo bem.
A Misericórdia de Loulé entendeu aproveitar a capacidade excedentária das suas instalações para outras actividades de saúde, como cirurgia electiva, consultas externas e fisioterapia. Está no seu direito, embora a experiência demonstre que os recursos humanos não costumam ser internos mas sim externos, médicos e enfermeiros do SNS, treinados a expensas públicas, actuando em acumulação de funções. Não é o melhor dos mundos, são conhecidos os efeitos desta contaminação e as perdas de eficiência do SNS nesta “dupla militância” profissional. O sistema existe desde há décadas, sem que as condições políticas tenham permitido a sua clarificação, a qual só agora se está parcialmente a fazer com opções definitivas a meio da carreira e reformas antecipadas dos profissionais. Com este exemplo de complementaridade continuamos no terreno do constitucionalmente aceitável.
Porém, o Presidente foi mais longe. Segundo a Lusa, teria afirmado que “se o Estado não tem capacidade de assegurar a qualidade e eficácia dos serviços de saúde, então deve delegar e partilhar com outras organizações, como é o caso das Misericórdias”, recomendando que se peça às Misericórdias que “prestem esses cuidados se o fizerem com melhor qualidade e eficiência”. Qualidade, eficácia e eficiência, três importantes atributos de um sistema de saúde que no discurso do Presidente são intuídos como claudicantes no Serviço Nacional de Saúde. Trata-se de um pressuposto não demonstrado; bem ao contrário, abunda a evidência de que é o contrário que se passa. O discurso aproximou-se do preconceito.
Não é difícil ver nas palavras do Presidente a defesa da suposta “igualdade de condições na oferta pública ou privada em saúde”, um conceito que conduziria à substituição da universalidade e do carácter público, “ beveridgeano”, do SNS, por um sistema convencionado e abundantemente privado, “ bismarckiano”. Não foi essa a decisão tomada em 1979 e confirmada por um consenso de trinta anos. O que mais se estranha é não se ter pensado nos gastos. Convencionar serviços hospitalares de agudos com o sector privado seria gastar em dobro: no pagamento das convenções e na sustentação da capacidade pública tornada parcialmente ociosa. Para não falar na degradação da qualidade do SNS, um dos seus mais sólidos valores. Nestes termos e exacta medida, as propostas do Presidente, apesar de vagas, não escapam à crítica da inconstitucionalidade.
O que a nosso ver se não aplica à alteração das taxas moderadoras. O Presidente não falou em usá-las para financiamento do SNS, o que seria provavelmente inconstitucional, mas apenas como “diferentes contribuições para a distribuição dos encargos com a Saúde”, o que se enquadra no conceito de racionalização do uso do sistema, permitindo variação das taxas em função do melhor funcionamento do SNS, como de resto foi recomendado pela troika.
Correia de Campos , JP 13.07.11
4 Comments:
Numa iniciativa sem precedentes, o cardeal-patriarca veio apoiar o anunciado imposto especial sobre o rendimento, link apesar de ele representar uma manifesta quebra de um compromisso eleitoral e de se tratar de uma imposto manifestamente iníquo, como mostrei aqui.
Mas a hierarquia da Igreja Católica tem toda a razão para fazer todos os "fretes" políticos ao Governo, em retribuição do que este já se comprometeu a dar-lhe e do que espera vir a receber, onde se conta a gestão de hospitais do SNS, o financiamento público das escolas privadas (maioritariamente católicas) e a entrega das tarefas de protecção social. "Negócios" que valem milhões.
E que valem também o insólito apoio político ao Governo, que não está nas tradições da Igreja Católica desde 1974...
vital moreira, causa nossa
O Senhor Presidente da República parece ter descoberto um novo caminho para a saúde em Portugal. Entregar os Hospitais Públicos às Misericórdias.
Provavelmente nunca deu conta, ou já se esqueceu, de como funcionaram muitas delas, antes do Estado construir e gerir os “novos” Hospitais Distritais.
Eu conto-lhe como foi.
Final dos anos 60. Num Hospital da Misericórdia um Cirurgião sutura a coxa duma camponesa que tinha sofrido a cornada dum boi. É auxiliado por uma Irmã de Caridade (não havia Enfermeiros Diplomados no Hospital), que lhe dá um fio de sutura grosseiro. O Cirurgião pede um fio mais fino, para evitar uma cicatriz feia. A cena volta a repetir-se porque a nossa Irmã, muito poupadinha, continua a tentar fornecer fio muito grosso.
A doente está muito nervosa. O Cirurgião tenta tranquilizá-la. A mulher está aflita por causa do filho que está em casa. Mas está sozinho?, pergunta o Médico. Não, senhor, está com o meu homem. Então se está com o pai não há problema. Mas o meu homem não é o pai dele.
Está a ver, contrapõe, a nossa Irmã. Ainda o Senhor Doutor me exigiu fio fino para esta desavergonhada.
Vá lá, sejamos justos. O hospital já não exigia, para tratar os pobres,o bilhete de confissão.
Interessante este texto de CC.
Dois terços de prosa para explicar o apoio do anterior Governo ao desenvolvimento do sector social da Saúde.
Afinal, o que este Governo liberal pacotilha pretende fazer na Saúde.
Depois a abordagem brilhante do professor da ENSP sobre as voltas que o PR parece defender para o nosso sistema de saúde: A conversão num modelo bismarckiano, convencionado e gastador, que nos levará certamente à ruína.
CC, que também não morre de amores por Cavaco, reduz a fanicos a intervenção algarvia do PR, o qual parece apostado nestes últimos tempos em servir de arauto das medidas programáticas deste governo.
As declarações do Presidente da República sobre o SNS -- uma sobre a delegação de tarefas às misericórdias e outra sobre pagamento diferenciado dos cuidados de saúde de acordo com os rendimentos -- não confirmam somente que ele insiste em invadir a esfera governativa, dedendendo propostas e iniciativas que só ao Governo compete fazer. Revelam também o seu total alinhamento com o projecto do Governo para esta área, abandonando qualquer preocupação de distanciamento em relação ao executivo em funções, que qualquer Presidente da República sempre deveria resguardar.
vital moreira
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