O director, o gerente, a mulher deles e as lojas dela
Aquilo que o director de um serviço não faz no seu hospital público, põe a sua empresa privada a fazer
A história conta-se em poucas palavras. O Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde da Guarda (que integra hospital e centros de saúde do distrito) autorizou uma empresa privada de serviços médicos de oftalmologia a realizar, nesses centros de saúde, rastreios à visão para despiste das principais causas de cegueira. A empresa em questão (M.A. Dias dos Santos, Lda) tem como sóciogerente o director do serviço de oftalmologia do hospital da Guarda (M. A. Dias dos Santos, dr).
Em resumo, aquilo que o director de um serviço não faz no seu hospital público põe a sua empresa privada a fazer e a administração do hospital aprova e aplaude. Como deputado, questionei o Governo sobre esta estranha situação link e o PÚBLICO disso deu notícia. Até hoje, nem o Governo respondeu, nem a administração da ULS disse fosse o que fosse.
Apenas o promotor dos rastreios se queixou quer da notícia quer das minhas perguntas. E para que não se tome por igual aquilo que é diferente, diga-se que quem se queixou foi o director da oftalmologia e não o sócio-gerente da empresa. O que tem a sua lógica: que razão levaria uma empresa privada a queixar-se de ser chamada por um hospital público? Em geral, esse é o maior desejo de qualquer privado.
De que se queixa o director da oftalmologia? De ter tido necessidade de recorrer a uma empresa privada para fazer um rastreio que o hospital e os centros de saúde deviam fazer, consumindo, mais uma vez, recursos públicos para pagar a privados? Não, disso o director não se queixa. Aliás nem podia porque, segundo consta, a empresa MADS não cobrou nada ao hospital do director MADS. O próprio confessa ter sido um “serviço cívico”, isto é, uma borla desinteressada, altruísmo em estado puro: o director MADS reconheceu a necessidade, o sócio-gerente MADS comoveu-se e o rastreio fez-se.
O director queixa-se pelo sócio-gerente, chorando as dores deste que é o mesmo que aquele. Porque, apesar das suas boas intenções, acusam malevolamente a empresa de que é sócio-gerente de ser “proprietária, sócia ou de qualquer forma associada de quaisquer ópticas existentes no país”, afirmação que desmente.
Diga-se que aquela empresa não é nem podia ser proprietária ou sócia de lojas de óptica porque, em Portugal, é proibida qualquer relação societária ou equivalente entre quem faz oftalmologia e quem vende óculos e lentes. Mas, claro, não se pode exigir que a lei impeça ou previna simples coincidências.
Primeira coincidência: em cinco localidades – Guarda, Trancoso, Sabugal, Pinhel e Belmonte – há cinco lojas da mesma rede de ópticas, Óptica Lince, SA, passe a publicidade. Nessas mesmas localidades – por vezes na mesma rua – funcionam cinco consultórios da empresa de serviços médicos de oftalmologia MADS. Segunda coincidência: na gerência da Óptica Lince está a esposa de MADS. Sem bigamia: para este efeito, director e sócio-gerente são a mesma pessoa.
Em resumo: quem decide o rastreio e quem o realiza, quem prescreve os óculos e quem os vende é tudo da mesma família. Só não vê quem não quer ver. Não é preciso pôr óculos para ver que isto não está certo e que este cruzamento de interesses colide com os princípios e as boas práticas dos serviços públicos de saúde.
Este caso é um caso mas, infelizmente, não é único. O SNS está poluído por promiscuidades em tudo semelhantes. Degradam a qualidade dos serviços e promovem o despesismo. Eliminá-los favoreceria a sustentabilidade financeira do SNS e evitaria muitos dos cortes que o Governo está a fazer e que afectam a capacidade do SNS e prejudicam os doentes.
No SNS, contas equilibradas e qualidade assistencial são incompatíveis com o amiguismo nas decisões e a promiscuidade com os interesses privados. O Governo exige e promete rigor, seriedade e determinação na gestão da coisa pública. Este caso da Guarda põe à prova a coerência deste discurso.
João Semedo, médico e deputado do BE, JP 30.08.11
A história conta-se em poucas palavras. O Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde da Guarda (que integra hospital e centros de saúde do distrito) autorizou uma empresa privada de serviços médicos de oftalmologia a realizar, nesses centros de saúde, rastreios à visão para despiste das principais causas de cegueira. A empresa em questão (M.A. Dias dos Santos, Lda) tem como sóciogerente o director do serviço de oftalmologia do hospital da Guarda (M. A. Dias dos Santos, dr).
Em resumo, aquilo que o director de um serviço não faz no seu hospital público põe a sua empresa privada a fazer e a administração do hospital aprova e aplaude. Como deputado, questionei o Governo sobre esta estranha situação link e o PÚBLICO disso deu notícia. Até hoje, nem o Governo respondeu, nem a administração da ULS disse fosse o que fosse.
Apenas o promotor dos rastreios se queixou quer da notícia quer das minhas perguntas. E para que não se tome por igual aquilo que é diferente, diga-se que quem se queixou foi o director da oftalmologia e não o sócio-gerente da empresa. O que tem a sua lógica: que razão levaria uma empresa privada a queixar-se de ser chamada por um hospital público? Em geral, esse é o maior desejo de qualquer privado.
De que se queixa o director da oftalmologia? De ter tido necessidade de recorrer a uma empresa privada para fazer um rastreio que o hospital e os centros de saúde deviam fazer, consumindo, mais uma vez, recursos públicos para pagar a privados? Não, disso o director não se queixa. Aliás nem podia porque, segundo consta, a empresa MADS não cobrou nada ao hospital do director MADS. O próprio confessa ter sido um “serviço cívico”, isto é, uma borla desinteressada, altruísmo em estado puro: o director MADS reconheceu a necessidade, o sócio-gerente MADS comoveu-se e o rastreio fez-se.
O director queixa-se pelo sócio-gerente, chorando as dores deste que é o mesmo que aquele. Porque, apesar das suas boas intenções, acusam malevolamente a empresa de que é sócio-gerente de ser “proprietária, sócia ou de qualquer forma associada de quaisquer ópticas existentes no país”, afirmação que desmente.
Diga-se que aquela empresa não é nem podia ser proprietária ou sócia de lojas de óptica porque, em Portugal, é proibida qualquer relação societária ou equivalente entre quem faz oftalmologia e quem vende óculos e lentes. Mas, claro, não se pode exigir que a lei impeça ou previna simples coincidências.
Primeira coincidência: em cinco localidades – Guarda, Trancoso, Sabugal, Pinhel e Belmonte – há cinco lojas da mesma rede de ópticas, Óptica Lince, SA, passe a publicidade. Nessas mesmas localidades – por vezes na mesma rua – funcionam cinco consultórios da empresa de serviços médicos de oftalmologia MADS. Segunda coincidência: na gerência da Óptica Lince está a esposa de MADS. Sem bigamia: para este efeito, director e sócio-gerente são a mesma pessoa.
Em resumo: quem decide o rastreio e quem o realiza, quem prescreve os óculos e quem os vende é tudo da mesma família. Só não vê quem não quer ver. Não é preciso pôr óculos para ver que isto não está certo e que este cruzamento de interesses colide com os princípios e as boas práticas dos serviços públicos de saúde.
Este caso é um caso mas, infelizmente, não é único. O SNS está poluído por promiscuidades em tudo semelhantes. Degradam a qualidade dos serviços e promovem o despesismo. Eliminá-los favoreceria a sustentabilidade financeira do SNS e evitaria muitos dos cortes que o Governo está a fazer e que afectam a capacidade do SNS e prejudicam os doentes.
No SNS, contas equilibradas e qualidade assistencial são incompatíveis com o amiguismo nas decisões e a promiscuidade com os interesses privados. O Governo exige e promete rigor, seriedade e determinação na gestão da coisa pública. Este caso da Guarda põe à prova a coerência deste discurso.
João Semedo, médico e deputado do BE, JP 30.08.11
Etiquetas: s.n.s
2 Comments:
Não sou BE, mas parabéns pela forma como relata os interesses privados alimentados por parcerias que esventram os parco orçamentos. Apesar de ser médico consegue por a nú o que uma classe que se diz reger pelo juramento de Hipocrates "...com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte..." e depois é o que se vê... Parabéns
Excelente... Todos os casos idênticos deviam ser divulgados e investigados. As pessoas em causa para além de terem que terminar esses negócios "obscuros", deviam ainda indemnizar o estado e ficarem impedidos de exercer a profissão ou abrir negócios semelhantes. Assim iriam aprender a lição e talvez fosse lição para os outros...
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