sexta-feira, abril 27

Obsessão da despesa


João Semedo: "Entre a qualidade e a poupança, o Governo escolhe a poupança"
1. Acha que é possível manter o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tendencialmente gratuito?
Num contexto de crescimento económico, mesmo mantendo a reduzida percentagem do PIB que é destinada à despesa pública de saúde, o financiamento do SNS por via do Orçamento do Estado seria mais que suficiente. Mas, mesmo no ponto em que se encontram quer a economia quer as contas públicas, não há necessidade de sobrecarregar os cidadãos se o OE afectar mais verbas à saúde e se forem eliminadas despesas supérfluas (PPP, sub-sistemas, outsourcing, falsa inovação, ). Financiamento em função da despesa, contratualização da produção, gestão rigorosa e eliminação da transferência de fundos públicos para os prestadores privados são medidas capazes de garantir nesta conjuntura o equilíbrio das contas do SNS.
2. A liberdade de escolha na Saúde traria vantagens para os cidadãos? E para o Estado?
Já há liberdade de escolha em Portugal, mas apenas para quem tem dinheiro para poder escolher. A liberdade de escolha é uma armadilha da direita. Em abono da verdade, o que motiva a direita não é dar possibilidade de escolha às pessoas mas, sim, conseguir que o Estado pague essa opção, isto é, a pessoa escolhe um médico ou um hospital privado e o Estado paga. Paga o Estado e pagamos todos nós. Este sistema, a impor-se em Portugal, seria um seguro de vida para o sector privado e a ruína financeira do SNS. Portugal não dispõe de recursos financeiros suficientes para alimentar dois sistemas em paralelo: um privado e outro público, ambos financiados pelo Estado. Num prazo muito curto, o SNS seria residual e assistencialista.
3. Como avalia a política que está a ser seguida pelo ministro da Saúde?
A política de Paulo Macedo está completamente dominada pela obsessão da redução da despesa. O encerramento da Alfredo da Costa ilustra particularmente bem as opções do Governo: entre a qualidade e a poupança, o Governo escolhe sempre a poupança, mesmo que signifique piores cuidados.
4. O que vai resultar da aplicação das medidas do memorando da troika?
O resultado já hoje está à vista: um SNS fortemente amputado, de difícil acesso, cuja qualidade está em perda. Vamos assistir ao aumento das listas de espera e à sobrelotação das urgências. Nos centros de saúde a falta de médicos vai continuar a sentir-se, apesar dos truques de magia para criar a ilusão de que se está a dar médico de família a todos. A revisão do regime de comparticipação vai tornar os medicamentos mais caros. As mudanças decididas em certas áreas de excelência – Maternidade Alfredo da Costa, Centro de Genética, IDT – traduzem-se no seu desmantelamento. A promiscuidade entre interesses públicos e privados, que tanto tem prejudicado o SNS, vai aprofundar-se.
5. Está hoje o SNS melhor do que há dez anos?
Apesar dos mau tratos a que tem sido sujeito, o SNS é uma história de sucesso, dispondo hoje de uma excelente e articulada rede de serviços e dos mais modernos equipamentos e tecnologias. O SNS avançou na última década, tal como na anterior: na acessibilidade, proximidade, qualidade, diferenciação e excelência. Mas, também, na humanização e no respeito pelos direitos dos doentes. O SNS melhorou e podia ter melhorado ainda mais se as políticas prosseguidas tivessem eliminado alguns dos seus maiores "pecados": a promiscuidade entre público e privado, a partidarização dos cargos dirigentes, o desrespeito pelas carreiras e a desregulação das relações de trabalho provocada pela empresarialização dos hospitais.

Jornal de Negócios Online 26.04.12

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1 Comments:

Blogger DrFeelGood said...

Entre nós, porém, cada dois meses Vítor Gaspar repete-nos que Portugal está no bom caminho. Está, sim: 1500 novos desempregados todos os dias, falências às dezenas diariamente, receita fiscal a cair descontroladamente, projectos úteis para o futuro do país a serem abandonados às cegas e o regresso a um Portugal de emigração que julgávamos morto para sempre. Sim, estamos no bom caminho, mas para as ideias de Vítor Gaspar e deste Governo. Trata-se de desmantelar, não o Estado Social, mas sim todas as funções essenciais do Estado, aquelas em nome das quais somos chamados a pagar impostos; de sacrificar no altar das privatizações a capacidade do sector público ditar regras de concorrência civilizada, ao menos nos sectores essenciais para a salvaguarda da soberania nacional ou para defesa dos consumidores; de assegurar a desforra e instalar o total arbítrio nas relações laborais (somos o 4º país da zona euro a 27 onde a hora de trabalho é mais barata para as empresas e, mesmo assim, insistem em “baixar os custos laborais para as empresas”, em nome da “produtividade”: porque não experimentam o contrário — pagar melhor para ver se a produtividade aumenta?). A agenda política do ‘técnico’ Vítor Gaspar e do Governo de que faz parte é clara como água: vem nos livros e nos manuais e repete-se ciclicamente, de cada vez que os “Chicago boys” querem ajustar contas com o que eles chamam o “socialismo” — isto é, a existência de um Estado que não se limite a ser um simples facilitador de negócios privados.
No restrito clube de que Vítor Gaspar faz parte ele é, neste momento, um herói e um exemplo. E por isso é que ele gosta tanto de ir lá fora, em especial aos Estados Unidos, pátria dos “Chicago boys”, explicar o nosso “caso de sucesso”. Aí, ele conta a uma audiência embevecida como está à beira de cortar quatro feriados anuais aos portugueses e reduzir a indemnização por despedimento de 30 para 6 dias por ano de trabalho, como dinamitou todas as regras de segurança do emprego, fazendo da “flexi-segurança” uma anedota de socialistas dinamarqueses, como diminuiu os custos do trabalho para índices chineses (a vingança póstuma de Manuel Pinho!), como cortou a eito todas as prestações sociais e como vai tornar Portugal atractivo para o investimento estrangeiro vendendo empresas públicas ao preço de loja de penhores. E como faz tudo isto com uma paz social que é a devida aos justos. Só não lhes conta, porque ficaria mal perante tal audiência, que também tem empenhado dinheiros públicos a sanear as finanças de empresas que depois são privatizadas e que tem subido impostos e taxas como nenhum governo socialista jamais se atreveu a fazer (e, aliás, com uma estranha consequência, qual seja a da receita pública, em lugar de crescer... estar a diminuir!). Levado pelo entusiasmo, Gaspar até se atreveu a declarar ao “New York Times” que tinha chegado à conclusão de que “há alguns limites às intuições de Keynes”. E, ainda os leitores americanos não tinham recuperado da revelação, e já ele garantia também que “as políticas expansionistas keynesianas seguidas em 2008 (nos Estados Unidos e na Europa), falharam e podem ter sido até contraproducentes”. Apenas se esqueceu de explicar que culpa teve Keynes na falência do Lehman Brother’s, do fundo Maddoff, no estoiro da bolha imobiliária americana ou espanhola, nas livres actividades de pirataria financeira consentidas pelo governo Bush e inspiradas pelos colegas do clube de Gaspar, que mergulharam a economia mundial no caos e obrigaram os países avisados a chamar de volta o velho Keynes para evitar o colapso iminente de todo o sistema. Ou seja: queixou-se da quimioterapia mas esqueceu-se do cancro, como se aquela não decorresse deste. Por aqui se pode avaliar o belo sarilho em que estamos metidos.

MST, expresso 28.04.12

12:27 da tarde  

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