quarta-feira, dezembro 19

O calor da caridade


Uma crónica de costumes dos anos 70, especialmente dedicada a quem se interesse pela evolução da assistência hospitalar em Portugal.
Em 1970, um administrador hospitalar, acabado de diplomar, foi designado para integrar a equipa que iria pôr a funcionar o primeiro Hospital Distrital da nova geração: construído, financiado e gerido pelo Estado. O Estado Novo já tinha compreendido que, até por motivos económicos, a fase caritativa da assistência em Portugal estava esgotada e tinha, por isso, lançado um ambicioso plano de construção de novos estabelecimentos. O novo hospital iria suceder ao Hospital da Misericórdia, instalado num edifício com perto de quinhentos anos e mandado construir, de raiz, pelo poder Real. No Hospital da Misericórdia trabalhavam uma dúzia de Médicos, auxiliados pelas Irmãs duma Congregação Religiosa, nenhuma das quais diplomada em Enfermagem, para além do pessoal administrativo e auxiliar. A Urgência estava aberta 24 horas, mas sem presença Médica. Um dia, um cirurgião (foi ele que contou a história ao jovem administrador) é chamado à urgência para suturar uma jovem camponesa a quem uma cornada dum boi, com prosápias de touro, tinha aberto um rasgão numa coxa. Ao iniciar o tratamento recebeu, da Irmã, que o ajudava, um fio muito grosseiro. “Oh Irmã, por favor, dê-me um fio mais fino para ver se faço uma sutura decente”. E lá lhe disse que fio pretendia. De má vontade e cara fechada a Irmã forneceu-lhe o fio e embezerrou. A jovem estava muito nervosa e o Cirurgião, que aliava à excelência clínica uma grande capacidade de empatia com os doentes, ia conversando para a tranquilizar. Os nervos da camponesa não eram, afinal, fruto do medo do tratamento mas da preocupação de ter deixado em casa um filho pequeno. - Mas a criança está sozinha? - Não senhor. Está com o meu homem. - Então, se está com o pai, não há motivo para estar nervosa. - O meu homem não é pai dele. Neste momento, a cara de pau da nossa Irmã de Caridade abriu-se num sorriso irónico, a língua desentaramelou-se-lhe e verberou o Médico com toda a exuberância. “Está ver Sr. Doutor, está a ver! E obrigou-me o Sr. Doutor a ir buscar um fio tão caro para coser esta desavergonhada!

José António Meneses Correia, facebook, 19.12.12

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