segunda-feira, junho 17

Por uma carta dos direitos e deveres

dos cidadãos relativos à saúde 
 A Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida (IAC), que desde a sua fundação em Dezembro de 2011 tem vindo a trabalhar para conhecer e dar a conhecer a dívida pública (ver o Relatório “Conhecer a dívida para sair da armadilha” — link), lançou, em conjunto com outras organizações, a campanha Pobreza não paga a dívida: renegociação já! 
 Responde esta campanha à necessidade sentida pela IAC de complementar o trabalho de estudo e análise da dívida pública, que prosseguirá, com mais debate público sobre as causas e as consequências da dívida e mobilização pela sua renegociação com a participação dos cidadãos. 
 A campanha envolve uma petição dirigida à Assembleia da República, instando-a a pronunciar-se pela abertura urgente de um processo de renegociação da dívida pública, pela criação de uma entidade para acompanhar a auditoria à dívida pública e o seu processo de renegociação e pela garantia de que nestes processos existe isenção de procedimentos, rigor e competência técnicas, participação cidadã qualificada e condições de exercício do direito à informação de todos os cidadãos e cidadãs. 
 Trata-se de fazer ouvir em S. Bento uma opinião e uma vontade que acreditamos ser maioritária na sociedade portuguesa. 
 É certo que quando tudo está a arder uma petição parece pouco. No entanto, com um número pouco usual de assinaturas, a petição terá força. Confrontando os membros da Assembleia da República com as suas responsabilidades, poderá acordá-los para a necessidade de não fazer o que os credores querem. 
 A petição pode ser subscrita online em pobrezanaopagaadivida.info/index.html 
 Pode parecer estranho, numa altura em que os critérios económicos suplantaram os valores humanistas no processo de tomada de decisão, trazer à liça a necessidade de uma “Carta dos Direitos e Deveres dos Cidadãos Relativos à Saúde”, no entanto, creio que é precisamente nestas alturas que é mais necessário ter documentos referenciais claros. Não falo apenas de direitos dos doentes, mas de todos os cidadãos, porque todos nós somos potencialmente doentes e porque esta carta deve abranger também a promoção da saúde e a prevenção da doença. Já existe muita legislação sobre esta matéria, mas parece-me importante condensar esta legislação e reconhecer novos direitos e deveres, que sirvam de filtro a todas as decisões a todos os níveis que interfiram na saúde dos cidadãos. 
 A primeira proposta de uma carta deste género foi elaborada por mim e pela prof .ª Paula Lobato Faria, em 1992, por encomenda do então ministro Arlindo de Carvalho, mas nunca chegou a ser publicada. A Direcção-Geral da Saúde tem no seu sítio uma carta dos direitos e deveres dos doentes, mas não tem existência legal. A responsabilidade e competência para elaborar esta carta está atualmente atribuída à Entidade Reguladora de Saúde (ERS), que elaborou uma proposta em 2011, tendo-a enviada ao Parlamento, mas também nunca chegou a ser publicada. 
 Entre a legislação dispersa que consagra alguns direitos gerais no que concerne à saúde, temos a própria constituição que estabelece os princípios da universalidade, generalidade e gratuitidade tendencial no acesso aos cuidados de saúde, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS), assim como direitos mais específicos que se encontram revertidos na Lei de Bases da Saúde. Em 1985 foi legislado sobre o direito ao acompanhamento da mulher grávida durante o trabalho de parto. A Lei de Bases da Saúde, publicada em 1990, estabeleceu os direitos à proteção na saúde, à promoção da saúde e prevenção das doenças, à educação para a saúde, à igualdade no acesso aos cuidados de saúde, à equidade na distribuição de recursos e utilização de serviços, a medidas especiais relativamente aos grupos de maior risco, à liberdade de escolha no acesso à rede nacional de prestação de cuidados de saúde, a recusar tratamentos, a ser tratado humanamente, com prontidão, correção técnica, privacidade e respeito, à confidencialidade dos dados pessoais, a receber assistência religiosa e ao direito de reclamação. A mesma Lei de Bases da Saúde garantiu a participação dos indivíduos e da comunidade na definição da política de saúde e planeamento e no controlo do funcionamento dos serviços, o direito à defesa dos seus interesses através de entidades que os representem, a reunirem-se em associações para a promoção e defesa da saúde, assim como a possibilidade de intervenção ao mais alto nível através do Conselho Nacional de Saúde, no funcionamento das entidades prestadoras de cuidados de saúde e como órgão de consulta do Governo. Ainda na mesma lei aparecem consignados alguns deveres como sejam o do respeito pelos direitos dos outros utentes, de observação das regras sobre a organização e o funcionamento dos serviços e estabelecimentos, colaboração com os profissionais de saúde em relação à sua própria situação, utilização dos serviços de acordo com as regras estabelecidas e pagamento dos encargos que derivem da prestação dos cuidados de saúde, quando for caso disso. 
 Posteriormente, algumas outras leis definiram novos direitos e deveres: a Lei da Saúde Mental, aprovada em 1998, regulou o internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica, a lei do enquadramento-base das terapêuticas não convencionais, publicada em 2003, estabeleceu os direitos dos utilizadores deste tipo de terapias, a lei sobre informação genética pessoal e informação de saúde, de 2005, definiu o “conceito de informação de saúde e de informação genética, a circulação de informação e a intervenção sobre o genoma humano no sistema de saúde, bem como as regras para a colheita e conservação de produtos biológicos para efeitos de testes genéticos ou de investigação”. Em 2006, uma lei veio prevenir, proibir e punir a discriminação em razão de deficiência e da existência de risco agravado de saúde. 
 Em 2007, pela Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos utentes do SNS, o Ministério da Saúde comprometeu-se a estabelecer, por portaria, os tempos máximos de resposta garantidos para todo o tipo de prestações sem carácter de urgência. Ainda, em 2007, foi regulado o acesso aos documentos administrativos e a sua reutilização. Em 2009 foi publicada a lei que estabeleceu o regime do acompanhamento familiar de crianças, pessoas com deficiência, pessoas em situação de dependência e pessoas com doença incurável em estado avançado e em estado final de vida em hospital ou unidade de saúde. No mesmo ano foi reconhecido o direito de acompanhamento dos utentes dos serviços de urgência do SNS. Em 2012 foram regulados os requisitos de tratamento de dados pessoais para constituição de ficheiros de âmbito nacional, contendo dados de saúde. Também neste ano foi estabelecido o regime das diretivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde. 
 A nível europeu a Carta Social Europeia do Conselho da Europa, de 1996, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em 2000, e a diretiva europeia de 2011 relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços, são os documentos gerais mais relevantes. 
 Parece-nos assim fundamental que a ERS atualize a carta que propôs em 2011 e que o Parlamento a aprove, para que os cidadãos, as organizações e os profissionais tenham um documento síntese de referência que explicite os principais direitos e deveres de todos os cidadãos no que respeita à sua saúde.

Luís Campos , JP 17.06.13

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