quinta-feira, março 6

ADSE : a intenção, a consequência e a falácia

Às vezes pergunto-me se o que alguns escrevem ou dizem sobre factos de um passado recente é distorcido de forma deliberada ou devido a pura perda de memória.
Um dos pontos que constavam no memorando da troika era a redução progressiva das contribuições para todos os subsistemas de saúde e o seu desaparecimento a curto prazo, com a integração de todos beneficiários no Sistema Nacional de Saúde. Chegados a 2014, vemos que o Governo aumenta para 3,5% o contributo dos beneficiários da ADSE e quer alargar o leque dos “felizardos” abrangidos pelo sistema a “todos os que trabalham para o Estado”, aos funcionários dos correios e talvez aos trabalhadores da Justiça e aos militares.
A intenção — Ao contrário do que pensavam os grandes investidores da área da saúde (a maioria bancos), não foram os seguros os maiores fornecedores de clientes/ doentes. A ADSE corresponde hoje a mais de 70% da faturação de todos os hospitais privados e o seu desaparecimento iria conduzir à insolvência de todos eles. O Estado paga ao hospital do SNS um valor muito inferior ao que o mesmo Estado, através da ADSE, paga ao hospital privado pelo mesmo episódio. Portanto, a verdadeira intenção das medidas anunciadas é a proteção descarada dos grupos privados de saúde, através do reforço da ADSE, travestida de “seguro solidário”. Para quem conhece o sector da saúde, é risível o argumento da cândida proteção à população, para evitar o aumento das listas de espera no atendimento do SNS.
A consequência — O alargamento inusitado dos beneficiários da ADSE vai reduzir a prazo o número de utentes do SNS e tenderá a vir-lhe a reduzir o investimento. Recorrerão aos hospitais públicos apenas os que não têm subsistemas e aqueles, como sempre, que têm doenças muito graves e complexas, que não são “rentáveis” para o hospital privado. A falácia — Dizem-nos que a subida da contribuição para a ADSE tornará o “sistema autosustentável”. Aquilo que sabemos é que até agora sempre foi deficitário, que sempre recorreu ao Orçamento do Estado para tapar um “buraco” anual que nunca foi tornado público. Por isso lhe chamei em tempos “um seguro de saúde para alguns pago por todos”. Mesmo que a ADSE se pague a si própria com a subida da contribuição, tal não se vai manter por muito tempo. Primeiro, porque haverá um número significativo de beneficiários com contribuições mais altas que saem da ADSE e adquirem com vantagem um verdadeiro seguro de saúde. Por outro lado, ainda mais importante, é a falta de controlo da ADSE nas decisões terapêuticas e nos exames realizados. Os doentes do foro oncológico ou reumatológico, muitas vezes com necessidade de uso de terapêuticas muito caras, têm tratamento diferenciado no hospital público ou privado. No primeiro, o doente é apresentado em consultas de grupo específicas e ponderado caso a caso o custo-benefício da opção terapêutica. No hospital privado o especialista prescreve e, sem mais delongas, o doente acede à terapêutica.
Sou médico, especialista de Medicina Interna, trabalhador em regime de exclusividade no Serviço Nacional de Saúde, que tem indicadores de qualidade e eficiência, que a todos devem orgulhar. Os serviços, as equipas e as práticas médicas de excelência são muito mais importantes do que os edifícios de mármore reluzente. Não sejamos ingénuos, para que não venhamos a perder aquilo que já conseguimos.
João Araújo Correia, JP 05.03.14

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