Abril na Saúde
Coordenador da obra “40 Anos de Abril na Saúde”, que esta sexta-feira ao final da tarde é apresentada
em Lisboa, António
Correia de Campos defende que o
Serviço Nacional de Saúde (SNS) ganhou a batalha da qualidade mas não a da
eficiência e que, apesar da evolução notável das últimas décadas, houve “muito
dinheiro mal gasto”.
Satisfeito com o facto de a visão “claramente
mercadibilista” de Pedro Passos Coelho não ter prevalecido, Correia de Campos
lamenta, porém, que o ministro Paulo Macedo não tenha tido a coragem de fazer a
reforma hospitalar, que seria fulcral para acabar com o problema da dívida. Com
textos de vários especialistas e muitos dados de desempenho do Serviço Nacional
de Saúde (SNS) ao longo das últimas quatro décadas, a obra vai ser apresentada
por Jorge Sampaio.
O que o levou a coordenar este livro, em conjunto com Jorge Simões
(actual presidente da Entidade Reguladora da Saúde)?
Há um factor pessoal. Eu sou uma cada vez mais rara
testemunha viva, um observador participante deste processo porque entrei para o
Ministério da Saúde em 1966. Senti que tinha o dever de dar o meu testemunho.
Portugal é um país de modas: no início dizia-se muito mal do SNS; a certa
altura, passou a dizer-se muito bem, até de uma forma excessiva. O que quisemos
foi documentar os resultados dos 40 anos do 25 de Abril de 1974 , todas as
mudanças estruturais que aconteceram na sociedade portuguesa, o impacto dessas
mudanças de uma forma objectiva, tanto quanto possível quantificada. Quisemos
evitar o panegírico tradicional.
O SNS vai adaptar-se e sobreviver à crise? No livro descrevem uma
evolução notável em quatro décadas, mas nos últimos anos os cortes foram
profundos e há riscos de retrocesso.
Sim, esse é um risco, mas fica para os próximos investigadores
analisar os indicadores. Tenho quase a certeza de que vai haver reflexos
negativos da situação actual, mas é preciso tempo. Por outro lado, não houve
uma ruptura total, não se pode dizer que o SNS tenha sido desmantelado. Teve
cortes substanciais, alguns até podem ter sido saudáveis, como o dos
medicamentos, mas outros são cortes que
vão ter reflexos negativos no futuro. Quanto à evolução [face ao período anterior ao 25 de Abril], essa foi
muito importante, mas gastou-se muito dinheiro mal gasto. Depois de 2005,
procurou-se tornar sustentável o SNS ,
impôr rigor, eficiência, alargar a universalidade, o acesso a cuidados
dentários, a idosos.
Acha que nos últimos anos tem havido um fio condutor, como defendeu que
havia quando esteve à frente do Ministério da Saúde e até usou essa expressão
no título de um livro que escreveu na altura?
Não sei. Acho que
existe um fio sustentador (risos). Mas
penso que o Governo está numa fase de sustentação difícil.
Antes do 25 de Abril, escrevem na obra que vão apresentar, o sistema de
saúde era “dispersão, caridade e individualismo”. Não se corre o risco de um
regresso ao passado, com a anunciada entrega de vários hospitais às
misericórdias?
Acho que as misericórdias não vão querer [ficar com os
hospitais], só aceitarão se o ministério garantir que lhes paga em convenção e,
nesse caso, lá se vai o orçamento…
Mas as misericórdias asseguram que fazem o mesmo que o SNS com custos
inferiores. Não acredita?
Não, não fazem nada. Só se fizerem desnatação, mandando
embora os doentes mais complicados.
O que pensa da entrega do Centro de Reabilitação do Norte à
Misericórdia do Porto?
Isso é uma vergonha. Entregar este centro a uma misericórdia é uma vergonha, é um erro
dramático, feito por razões políticas, para agradar à direita. No passado, as misericórdias tinham regimes
convencionados e o que acontecia [nalguns casos] era que cobravam por fora, sob
o pretexto de que se tratava de uma ajuda voluntária dos utentes.
Concorda com o pagamento de taxas moderadoras nos centros de saúde?
As taxas moderadoras foram criadas para moderar o
acesso. A receita [resultante destas
taxas] representa agora 1,7% do total
da despesa anual. Não é muito, mas no
meu tempo era de 0,5%, portanto mais do que triplicou. No entanto, 55% das pessoas estão isentas. O problema é
que a classe média acumula outras restrições: nas pensões, nos ordenados, no aumento de impostos. Essa
acumulação de restrições é que pode vir a ser grave, é meu principal receio.
Uma das suas bandeiras foram os cuidados de saúde primários, bateu-se
pelo aumento da cobertura de médicos de família, nomeadamente através da
criação de Unidades de Saúde Familiar (USF). Como avalia o que tem sido feito a
este nível, agora?
Está a ser tudo muito lento, mas o que mais me preocupa, na
questão da restruturação financeira, são os hospitais, porque não foram dados
os passos necessários para ganhar eficiência. Não se fez a reforma hospitalar,
não se fez nada. O que se fez foi juntar mais uns hospitais, poupar talvez
algum dinheiro nas administrações, mas o que é essencial é modernizar a gestão
intermédia, conseguir que os directores de serviços tenham orçamentos próprios.
É a grande reforma que está por fazer. É difícil, mas é preciso fazê-la, eu
tinha começado a dar alguns passos nesse sentido.
Mas acabou por se ir embora justamente por causa dessa reforma, porque
isso implicou fechar maternidades e serviços de urgência.
Fui-me embora pela impopularidade que isso provocou e porque
não fui capaz de explicar as vantagens que resultavam para o SNS. Reconheço que
talvez não tenha sido sufi cientemente efi caz para vender a minha reforma e isso
paga-se. Em política, não se pode ter razão antes do tempo.
Recentemente, o Ministério da Saúde publicou uma polémica portaria que
classifi ca os hospitais e que, se for levada à letra, implica o fecho de
dezenas de serviços. Desde então, os protestos têm-se multiplicado, um
sindicato médico já vai marcar uma greve de dois dias. Acha que esta portaria
tem pernas para andar?
Tudo é concretizável, e agora muito mais do que quando
estive no Governo, porque há uma situação de crise e de contracção orçamental.
Mas isso deveria ter sido feito no início dos três anos [deste Governo].
Não lhe parece que a portaria foi publicada agora para que seja o
próximo Governo a concretizá-la?
Com certeza. Este Governo perdeu por completo a capacidade reformista.
Estamos a um ano de eleições e um Governo que está a morrer, como este, não tem
condições para fazer reforma nenhuma.
Como avalia a actuação do ministro Paulo Macedo?
O ministro teve muito sucesso na questão dos medicamentos,
foi ajudado pela conjuntura, pelo facto
de haver lucros e rendas excessivas, manobrou muito bem politicamente, nunca
foi agressivo, vendeu uma imagem de tolerância e de capacidade de recuar nos
momentos mais complicados, mas não fez nenhuma reforma essencial.
Ao contrário de si?
Mas isso é sempre assim. Lembra-se do ministro Maldonado
Gonelha? Não fez rigorosamente nada, mas ficou na história como um ministro
extremamente simpático.
A verdade é que Paulo Macedo tem surgido nas sondagens como um dos
ministros mais populares deste Governo...
Porque conseguiu transmitir uma imagem de competência
profissional e de tolerância. Mas o que eu gostaria era que o dr. Macedo tivesse
aproveitado esse capital que granjeou, por mérito dele, para fazer a reforma hospitalar.
Será que não avançou porque receia a impopularidade que essa reforma
seguramente acarretará?
Sim, mas quem tem medo compra um cão. Ele fez uma parte boa,
mas podia ter feito muito melhor, tinha condições. O país estava tão anestesiado
que era possível ter feito uma cirurgia mais radical.
Como vê a actual guerra dos médicos com o ministro?
Os ministros assustam-se muito com os médicos, eu só me
assustei da primeira vez. Os médicos são
tigres de papel. Há 20 anos, controlavam ferreamente o número de estudantes de
Medicina que entravam nas faculdades, batiam-se pelo pluriemprego, exigiam o
pagamento de horas extraordinárias. Hoje, perderam tudo e não se lhes deu nada
em troca.
O que pensa do código de ética para a saúde, que já é apelidado de “lei
da rolha”?
Para mim, não é mais do que um pretexto. A principal razão
da zanga dos médicos é que estão a ser muito mal pagos. Os médicos têm razões
reais de queixa e isso é o que pode dar algum sentido à greve.
Dar médico de família a todos os portugueses tem sido promessa de todos
os ministros, mas ainda nenhum conseguiu concretizá-la. Acha que Paulo Macedo
vai conseguir?
Vamos-nos aproximando do objectivo, reduzimos consideravelmente
o número de pessoas sem médico de família. No livro, fala-se de uma taxa de cobertura
da ordem dos 95%.
Na obra, defendem que o SNS ganhou a batalha da qualidade mas não a da
efi ciência.
É verdade. A qualidade do serviço público é clarissimamente
superior à do privado, mas não temos os hospitais públicos a funcionar com eficiência.
Quando está doente, vai a um hospital público?
Sempre. Por exemplo, fui operado às cataratas nos Hospitais
da Universidade de Coimbra.
Mas, se calhar, não teve que ir para as listas de espera como os outros
doentes.
Está bem, eu também não sou um exemplo representativo do
cidadão comum, fui ministro da Saúde. O meu exemplo pouco interessa. Mas nunca
irei para um hospital privado.
Na obra, referem-se à visão “claramente mercadibilista” de Pedro Passos
Coelho antes de ser candidato a primeiro ministro. O que aconteceu?
Essa visão não prevaleceu.
Mas pensa que existe o risco de tal acontecer no futuro?
Este Governo já não tem unhas para fazer mais nada. O actual
ministro não faria isso.
Se lá pusessem outro mais mercadibilista era óptimo,
ganhávamos as eleições com uma margem maior
Outra questão central foi a dos
cortes no transporte de doentes, superiores aos reclamados pela troika.
Houve um corte muito grande que pôs os bombeiros de tanga e
as pessoas. Mas os bombeiros viviam do Ministério da Saúde.
Nos cuidados continuados, houve também uma desaceleração do investimento
nos últimos anos.
O problema é que o investimento ficou-se por cerca de um
terço do que estava previsto. Tínhamos calculado 10 mil lugares [de cuidados
continuados para idosos e dependentes] e ficámos com 3.500.
Outro trunfo de Paulo Macedo têm sido os casos de corrupção que têm
sido detectados e investigados. Isto não lhe parece importante?
O argumento da corrupção é óptimo, mas é conjuntural. Não
resolve nenhum problema estrutural, de fundo.
Entrevista de Alexandra Campos, JP 20.06.14
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