quarta-feira, junho 4

A propaganda do task-shifting

Nunca, como nos últimos três anos, convivemos com um quadro político tão penalizador para o sector da saúde. O plano de assistência financeira, por um lado, e as opções estratégicas do Governo, por outro, estabelecerem uma via de sentido único em direcção à austeridade, com uma brutal contenção de despesa e nenhuma intenção verdadeiramente reformista. Os “cortes cegos” suprimiram uma visão estrutural e dinâmica do sistema, com reflexos dramáticos na qualidade dos cuidados prestados à população.
A história deste Ministério da Saúde fez-se de constantes indefinições, poucos avanços e muitos recuos, imprecisões técnicas, focos de guerrilha mediática e uma deriva contabilística à imagem do seu líder. A prioridade máxima, apesar de todas as campanhas em sentido contrário, foram os números, os custos, as metas orçamentais. Não há saúde para além do défice.
Exemplo paradigmático deste exercício político do Ministério é a forma como se avança com a possibilidade de outros profissionais de saúde substituírem os médicos em determinadas funções. O chamado task-shifting aparece de forma intermitente na imprensa, seja na versão dura do “enfermeiro de família” ou na versão light do “gestor do doente”, ambas em substituição de um especialista em Medicina Geral e Familiar. O aspecto mais pernicioso destas propostas – espécie de joker, que se aposta quando mais convém – é que não correspondem a nenhum pressuposto técnico-científico, não visam qualquer acréscimo de qualidade, nem sequer tornar o sistema mais ágil e eficiente. A sua finalidade é estritamente quantitativa, orçamental.
A insistência nesta matéria tem sido lamentável. Quase sempre vem associada a uma campanha de forte desinformação e altamente preconceituosa relativamente aos médicos, onde nunca faltam os lugares comuns da fraude, da assiduidade ao trabalho e da acumulação de funções. Uma vez desprestigiada e estigmatizada a classe médica, o caminho para a violação de competências está aberto.
O caso mais recente não surgiu na comunicação social. Surgiu na casa da democracia. A Proposta de Lei 203/XII/GOV, actualmente em discussão na Assembleia da República, enquadra juridicamente a profissão de podologista. Mas apenas em abstracto, porque na prática reconhece a profissão de esteticista/pédicure como uma actividade de elevada diferenciação, que incorpora competências de Medicina, Cirurgia e Anestesiologia. Algo notável, numa área onde existe apenas uma oferta de formação superior em Portugal e cuja duração é de apenas três anos!
A proposta não fica por aqui. Na redacção actual, os podologistas passam a desempenhar as suas funções com total autonomia técnica. Fazem prevenção, diagnóstico e terapêutica, num quadro semelhante a outros profissionais com períodos de formação altamente exigentes e alargados. Apesar de equiparada a profissão paramédica, a podologia vê-lhe ser conferida um estatuto que mais nenhuma actividade do género recebeu.
Será oportuno recordar que um médico especialista – entre os quais, aquele que trata doenças dos membros inferiores – cumpre uma formação variável de 11 a 13 anos, com competências que estão ampla e consistentemente definidas do ponto de vista técnico e científico. Será ainda oportuno acrescentar que, ao longo da sua formação pré e pós-graduada, o médico é sujeito a avaliações teórico-práticas regulares e da mais alta exigência. Será, porventura, necessário esclarecer que a legislação, nacional e comunitária, atribui ao médico as funções de coordenação das equipas de saúde, sem prejuízo das responsabilidades atribuídas a cada profissional e do trabalho multidisciplinar.
Na qualidade de dirigente da Ordem dos Médicos, entendo ser absolutamente prioritário retomar o debate da regulamentação do acto médico e definir, de forma clara, transparente e inequívoca os limites da nossa intervenção técnica. É uma clarificação que se impõe, não apenas por motivos internos, ao contribuir para o enquadramento ético-deontológico da profissão; mas fundamentalmente por motivos externos, ao evitar manipulações legislativas que atendem a interesses económico-financeiros mais ou menos obscuros e ao salvaguardar o direito dos doentes a uma Medicina qualificada. Não se trata de corporativismo. Trata-se de competência. Há um mar de diferenças.
Suponho que com este ministro da Saúde, esse debate estaria condenado ao fracasso. Não obstante, uma das melhores propagandas que a equipa de Paulo Macedo poderia fazer em benefício do sector que tutela seria abandonar o caminho da demagogia e focar-se nos verdadeiros e profundos problemas estruturais. Os médicos, mas sobretudo os portugueses, sairiam a ganhar.
P.S.: O artigo foi escrito antes do senhor ministro da Saúde ter afastado qualquer alargamento de competências aos enfermeiros. Decisão sensata, mas tardia, dado que há dois anos, pelo menos, vem manifestando publicamente essa mesma intenção.

Miguel Guimarães, Presidente do Conselho Regional do Norte da OM,  publicado no Jornal Médico de Junho de 2014

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