A propaganda do task-shifting
Nunca, como nos últimos três anos, convivemos com um quadro
político tão penalizador para o sector da saúde. O plano de assistência
financeira, por um lado, e as opções estratégicas do Governo, por outro,
estabelecerem uma via de sentido único em direcção à austeridade, com uma
brutal contenção de despesa e nenhuma intenção verdadeiramente reformista. Os
“cortes cegos” suprimiram uma visão estrutural e dinâmica do sistema, com
reflexos dramáticos na qualidade dos cuidados prestados à população.
A história deste Ministério da Saúde fez-se de constantes
indefinições, poucos avanços e muitos recuos, imprecisões técnicas, focos de
guerrilha mediática e uma deriva contabilística à imagem do seu líder. A
prioridade máxima, apesar de todas as campanhas em sentido contrário, foram os
números, os custos, as metas orçamentais. Não há saúde para além do défice.
Exemplo paradigmático deste exercício político do Ministério
é a forma como se avança com a possibilidade de outros profissionais de saúde
substituírem os médicos em determinadas funções. O chamado task-shifting
aparece de forma intermitente na imprensa, seja na versão dura do “enfermeiro
de família” ou na versão light do “gestor do doente”, ambas em substituição de
um especialista em Medicina Geral e Familiar. O aspecto mais pernicioso destas
propostas – espécie de joker, que se aposta quando mais convém – é que não
correspondem a nenhum pressuposto técnico-científico, não visam qualquer
acréscimo de qualidade, nem sequer tornar o sistema mais ágil e eficiente. A
sua finalidade é estritamente quantitativa, orçamental.
A insistência nesta matéria tem sido lamentável. Quase sempre
vem associada a uma campanha de forte desinformação e altamente preconceituosa
relativamente aos médicos, onde nunca faltam os lugares comuns da fraude, da
assiduidade ao trabalho e da acumulação de funções. Uma vez desprestigiada e
estigmatizada a classe médica, o caminho para a violação de competências está
aberto.
O caso mais recente não surgiu na comunicação social. Surgiu
na casa da democracia. A Proposta de Lei 203/XII/GOV, actualmente em discussão
na Assembleia da República, enquadra juridicamente a profissão de podologista.
Mas apenas em abstracto, porque na prática reconhece a profissão de
esteticista/pédicure como uma actividade de elevada diferenciação, que
incorpora competências de Medicina, Cirurgia e Anestesiologia. Algo notável,
numa área onde existe apenas uma oferta de formação superior em Portugal e cuja
duração é de apenas três anos!
A proposta não fica por aqui. Na redacção actual, os
podologistas passam a desempenhar as suas funções com total autonomia técnica.
Fazem prevenção, diagnóstico e terapêutica, num quadro semelhante a outros
profissionais com períodos de formação altamente exigentes e alargados. Apesar
de equiparada a profissão paramédica, a podologia vê-lhe ser conferida um
estatuto que mais nenhuma actividade do género recebeu.
Será oportuno recordar que um médico especialista – entre os
quais, aquele que trata doenças dos membros inferiores – cumpre uma formação
variável de 11 a 13 anos, com competências que estão ampla e consistentemente
definidas do ponto de vista técnico e científico. Será ainda oportuno
acrescentar que, ao longo da sua formação pré e pós-graduada, o médico é
sujeito a avaliações teórico-práticas regulares e da mais alta exigência. Será,
porventura, necessário esclarecer que a legislação, nacional e comunitária,
atribui ao médico as funções de coordenação das equipas de saúde, sem prejuízo
das responsabilidades atribuídas a cada profissional e do trabalho
multidisciplinar.
Na qualidade de dirigente da Ordem dos Médicos, entendo ser
absolutamente prioritário retomar o debate da regulamentação do acto médico e
definir, de forma clara, transparente e inequívoca os limites da nossa
intervenção técnica. É uma clarificação que se impõe, não apenas por motivos
internos, ao contribuir para o enquadramento ético-deontológico da profissão;
mas fundamentalmente por motivos externos, ao evitar manipulações legislativas
que atendem a interesses económico-financeiros mais ou menos obscuros e ao
salvaguardar o direito dos doentes a uma Medicina qualificada. Não se trata de
corporativismo. Trata-se de competência. Há um mar de diferenças.
Suponho que com este ministro da Saúde, esse debate estaria
condenado ao fracasso. Não obstante, uma das melhores propagandas que a equipa
de Paulo Macedo poderia fazer em benefício do sector que tutela seria abandonar
o caminho da demagogia e focar-se nos verdadeiros e profundos problemas
estruturais. Os médicos, mas sobretudo os portugueses, sairiam a ganhar.
P.S.: O artigo foi escrito antes do senhor ministro da Saúde
ter afastado qualquer alargamento de competências aos enfermeiros. Decisão
sensata, mas tardia, dado que há dois anos, pelo menos, vem manifestando
publicamente essa mesma intenção.
Miguel Guimarães, Presidente do Conselho Regional do Norte
da OM, publicado no Jornal Médico de
Junho de 2014
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