SNS, porta giratória
A escolha do modelo
de SNS para o nosso sistema de saúde foi fixada na Constituição de 1976,
na fase madura de transição para a democracia. Podia ter-se optado por um
sistema de seguro terceiro-pagador, que contrata ou convenciona a prestação de
serviços com fornecedores de estatutos vários, público, particular, ou privado.
Um sistema de saúde convencionado, financiado pela segurança social, através de
quotizações retiradas da produção nacional, indexadas sobre a massa salarial,
quer na parte a cargo do trabalhador, quer na parte a cargo das entidades
patronais. Um sistema do tipo dos vigentes em França, na Alemanha, na Bélgica,
onde persiste o modelo dito “bismarckiano”, caracterizado pela separação nítida
entre quem financia ou paga os cuidados e quem os presta. Um sistema que garantia direitos originários a quem previamente descontou para o sistema
segurador da segurança social, em função da sua situação perante o trabalho e
direitos derivados dos primeiros, para toda a restante população. Um sistema
que crescia mais e mais depressa onde houvesse clientes com capacidade para
pagar, embora o pagamento principal se faça por prémio de seguro, mas onde
resta sempre uma pequena parte a cargo do doente, no ponto de encontro com os
serviços, muitos dos quais não são públicos, mas privados, ou particulares, com
ou sem fim de lucro. Um sistema onde os recursos crescentemente a descoberto
tendiam a ficar cada vez mais a cargo do Estado, à medida que os encargos
cresciam e a cobertura inicialmente limitada aos trabalhadores por contra de
outrem se alargava aos que não têm esse passado laboral. Um sistema que
progressivamente se transformou em universal, pelo financiamento misto que
progressivamente implicou.
Optou-se, entre nós, e bem, pelo modelo SNS que se caracteriza por beneficiar todos os cidadãos e
residentes, independentemente da sua situação de emprego. Por ser pago por
impostos e não por quotizações indexadas sobre o rendimento do trabalho. Um
sistema como os vigentes no Reino Unido, Países Nórdicos, Itália, Espanha e
Grécia, de matriz de “beveridgeana”. Um sistema que visa cobrir todos ou quase
todos os riscos e eventualidades. Um sistema que se alarga a todo o território,
quer haja ou não clientes com capacidade para pagar. Um sistema onde a maioria
das prestações ficam a cargo de serviços públicos, cabendo ao sector privado um
papel complementar, com grande liberdade de prática (e enorme tolerância do
sistema público perante conflitos de interesse entre servidores de dois, ou até
três amos: o público, o privado e combinatórias de ambos, ilustrando o efeito “porta
giratória” entre público e privado.
Esta escolha, com todas as suas qualidades e defeitos, está
feita desde há trinta anos. É por isso que se torna enganador, para não dizer
pueril, admitir-se que um SNS possa funcionar sobre a forma dominante de
medicina e hospitalização convencionadas, como pretendem aqueles que julgam
poder fruir do que melhor tem cada sistema, sem compreenderem as
incompatibilidades a que levaria a adopção cumulativa das suas lógicas internas
mutuamente exclusivas.
Outra escolha desnecessária, por inexistente também desde há
décadas, é o do papel do sector privado prestador. No nosso SNS, desde o seu
início, tal como em outros, a prática pública é claramente dominante, mas
coexiste com muita prática privada. Desde logo, através de prestadores
contratados para serviços que não estão suficientemente desenvolvidos no SNS,
como foi o caso dos MCDTS nas décadas de setenta e oitenta, ou mais
recentemente, das cirurgias electivas praticadas por contrato. Mas que tendem a
diminuir no mercado, à medida que os serviços públicos se desenvolvem e ganham
competência e qualidade servidos pela infraestrutura de actividades
diversificadas de investigação e desenvolvimento. Ou quando se torna evidente
que o predomínio do mercado se aproxima de uma perda de soberania, com
submissão e regras oligopolistas crescentemente intoleráveis, como acontece com
certas áreas de diagnóstico e terapêutica.
O papel do sector privado no SNS está claramente definido na
Constituição: é um papel complementar do sector público, o que significa que
será bem vindo quando ajuda a cobrir lacunas, mas não pode esperar uma
competição com a esfera pública, sob forma convencionada, directa ou
disfarçada, que redundaria sempre em perda para o sector público, por ser
impossível transferir para o concessionário privado as servidões públicas,como
os cuidados de emergência, o ensino e a investigação, os cuidados mais
sofisticados e permanentes como os transplantes, os cuidados intensivos de
longa duração e, claro está, o pessoal excedentário. O que nada tem a ver com o
espaçp aberto aos prestadores privados dentro das áreas exteriores ao SNS,
cobertas por subsistemas e seguros de saúde que, entre nós, abrangem mais de
vinte por cento da população. O que também não obsta a que o SNS possa
contratar por inteiro serviços de gestão ou de construção e gestão de unidades
de saúde, em parceria, desde que devidamente reguladas.
Correia de Campos, Reformas da Saúde, Almedina 2008Etiquetas: s.n.s
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