domingo, setembro 14

SNS, porta giratória

A escolha do modelo  de SNS para o nosso sistema de saúde foi fixada na Constituição de 1976, na fase madura de transição para a democracia. Podia ter-se optado por um sistema de seguro terceiro-pagador, que contrata ou convenciona a prestação de serviços com fornecedores de estatutos vários, público, particular, ou privado. Um sistema de saúde convencionado, financiado pela segurança social, através de quotizações retiradas da produção nacional, indexadas sobre a massa salarial, quer na parte a cargo do trabalhador, quer na parte a cargo das entidades patronais. Um sistema do tipo dos vigentes em França, na Alemanha, na Bélgica, onde persiste o modelo dito “bismarckiano”, caracterizado pela separação nítida entre quem financia ou paga os cuidados e quem os presta. Um sistema que garantia direitos originários a quem previamente descontou para o sistema segurador da segurança social, em função da sua situação perante o trabalho e direitos derivados dos primeiros, para toda a restante população. Um sistema que crescia mais e mais depressa onde houvesse clientes com capacidade para pagar, embora o pagamento principal se faça por prémio de seguro, mas onde resta sempre uma pequena parte a cargo do doente, no ponto de encontro com os serviços, muitos dos quais não são públicos, mas privados, ou particulares, com ou sem fim de lucro. Um sistema onde os recursos crescentemente a descoberto tendiam a ficar cada vez mais a cargo do Estado, à medida que os encargos cresciam e a cobertura inicialmente limitada aos trabalhadores por contra de outrem se alargava aos que não têm esse passado laboral. Um sistema que progressivamente se transformou em universal, pelo financiamento misto que progressivamente implicou.
Optou-se, entre nós, e bem, pelo modelo SNS que  se caracteriza por beneficiar todos os cidadãos e residentes, independentemente da sua situação de emprego. Por ser pago por impostos e não por quotizações indexadas sobre o rendimento do trabalho. Um sistema como os vigentes no Reino Unido, Países Nórdicos, Itália, Espanha e Grécia, de matriz de “beveridgeana”. Um sistema que visa cobrir todos ou quase todos os riscos e eventualidades. Um sistema que se alarga a todo o território, quer haja ou não clientes com capacidade para pagar. Um sistema onde a maioria das prestações ficam a cargo de serviços públicos, cabendo ao sector privado um papel complementar, com grande liberdade de prática (e enorme tolerância do sistema público perante conflitos de interesse entre servidores de dois, ou até três amos: o público, o privado e combinatórias de ambos, ilustrando o efeito “porta giratória” entre público e privado.
Esta escolha, com todas as suas qualidades e defeitos, está feita desde há trinta anos. É por isso que se torna enganador, para não dizer pueril, admitir-se que um SNS possa funcionar sobre a forma dominante de medicina e hospitalização convencionadas, como pretendem aqueles que julgam poder fruir do que melhor tem cada sistema, sem compreenderem as incompatibilidades a que levaria a adopção cumulativa das suas lógicas internas mutuamente exclusivas.
Outra escolha desnecessária, por inexistente também desde há décadas, é o do papel do sector privado prestador. No nosso SNS, desde o seu início, tal como em outros, a prática pública é claramente dominante, mas coexiste com muita prática privada. Desde logo, através de prestadores contratados para serviços que não estão suficientemente desenvolvidos no SNS, como foi o caso dos MCDTS nas décadas de setenta e oitenta, ou mais recentemente, das cirurgias electivas praticadas por contrato. Mas que tendem a diminuir no mercado, à medida que os serviços públicos se desenvolvem e ganham competência e qualidade servidos pela infraestrutura de actividades diversificadas de investigação e desenvolvimento. Ou quando se torna evidente que o predomínio do mercado se aproxima de uma perda de soberania, com submissão e regras oligopolistas crescentemente intoleráveis, como acontece com certas áreas de diagnóstico e terapêutica.
O papel do sector privado no SNS está claramente definido na Constituição: é um papel complementar do sector público, o que significa que será bem vindo quando ajuda a cobrir lacunas, mas não pode esperar uma competição com a esfera pública, sob forma convencionada, directa ou disfarçada, que redundaria sempre em perda para o sector público, por ser impossível transferir para o concessionário privado as servidões públicas,como os cuidados de emergência, o ensino e a investigação, os cuidados mais sofisticados e permanentes como os transplantes, os cuidados intensivos de longa duração e, claro está, o pessoal excedentário. O que nada tem a ver com o espaçp aberto aos prestadores privados dentro das áreas exteriores ao SNS, cobertas por subsistemas e seguros de saúde que, entre nós, abrangem mais de vinte por cento da população. O que também não obsta a que o SNS possa contratar por inteiro serviços de gestão ou de construção e gestão de unidades de saúde, em parceria, desde que devidamente reguladas.
Correia de Campos, Reformas da Saúde, Almedina 2008

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