OE 2005
O tempo e o modo
Se este
Orçamento foi pensado como um exercício de reabilitação e propaganda, falhou.
Há um erro de princípio que este Governo faz, e persiste em fazer, quando se
trata de política económica. As palavras que usa para descrever a miséria
portuguesa — desemprego, despedimentos, corte nos salários, penhora, falta e
colocação de professores, fome pura e simples — não descrevem a realidade.
Primeiro, são termos técnicos. Segundo, não contam com o tempo. Dantes, as
biografias de autores que tinham vivido a “grande depressão” diziam sempre o
que lhes sucedera nessa época de angústia e de catástrofe. As pessoas percebiam
ainda que, para lá do sofrimento pessoal, a “depressão” lhes roubava o que
nunca lhes poderia voltar a dar: o tempo perdido. Cinco, seis, sete anos da
vida que tinham imaginado para si.
A crise que
nos sufoca desde 2011 também interrompeu, ou suspendeu, a vida de milhões de
portugueses: velhos, novos, na idade da força e na idade da fraqueza. Os mais
novos perderam o entusiasmo e a curiosidade por um futuro independente e
adulto. Os mais velhos perderam a tranquilidade de uma existência relativamente
segura e, às vezes, confortável, tremendo, à espera do próximo desastre. O
grosso do país, mesmo a parte que não sofreu directamente estados de irremediável
carência (e essa é pequena), ficou mutilado; por outras palavras,
permanentemente diminuído. O que talvez tivesse sido sem a crise será a medida
de tudo o que vier —e é uma medida implacável para os sábios que nos trouxeram
aqui, em nome de uma lógica que ninguém percebe e por que ninguém se interessa.
O
ressentimento, o rancor, o puro ódio que se acumularam — e que as cenas dos
políticos dia a dia acirram — não desaparecem com o falso alívio que o
Orçamento pretende trazer. Nada de fundamental mudou e principalmente não mudou
a maneira como a nossa vida se cozinhou em reuniões secretas, de que
simbolicamente não conseguimos saber coisa nenhuma. A cena, de resto, conduzida
e representada por indivíduos que não se distinguem pela inteligência, incluiu
números de pura pornografia: a diatribe do primeiro-ministro contra o
“fanatismo orçamental”; a “fiscalidade verde” para seduzir uma população sem
trabalho e uma juventude sem carreira; e a junção a essa sopa turva de uma
súbita preocupação com a natalidade para sublinhar os pequenos descontos no
IRS, que supostamente exprimem o amor do Governo pela Pátria e pela família. O
Orçamento não chegou a tempo, nem veio num modo susceptível de amansar o
putativo eleitorado de 2015. A julgar por ele já não está em causa a
sobrevivência da maioria, está em causa a sobrevivência do PSD e do CDS.
JP 18.10.2014, Vasco Pulido Valente
Etiquetas: Deus não dorme
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