Sistema de Saúde no tempo da troika
• Os resultados sugerem um processo de reconfiguração
do mercado privado em Portugal: a diminuição da atividade dos consultórios e,
em parte das clínicas, contrasta com o aumento da atividade dos hospitais
privados.
• Apesar da expectativa quanto aos imperativos
financeiros terem permitido ganhos de eficiência e eficácia sem afetar a
qualidade da prática clínica alguns dados merecem atenção: 38% dos médicos
apontaram faltas recorrentes de material nas instituições. A situação é
particularmente visível no SNS, chegando a 60% dos médicos nos cuidados de
saúde primários e cuidados continuados e a 44% dos médicos hospitalares, mas igualmente
presente no setor privado: 29% dos médicos em consultórios e clínicas e 33% nos
hospitais privados. Medicina geral e familiar (54%) e anestesiologia (53%) estão
entre as especialidades em que mais se apontou esta situação; 14% dos médicos referiram sentir maior pressão
para gastar menos com os doentes. Entre os motivos apontados destacam-se
dificuldades no acesso a meios complementares de diagnóstico e terapêutica e a
exames laboratoriais. A situação é particularmente visível nos cuidados de saúde
primários e nos cuidados continuados (24%) e referido sobretudo nas
especialidades de medicina geral e familiar (23%), oncologia (23%) e medicina física
e de reabilitação (22%); 11% dos médicos referiram sentir maior pressão para
não prescrever medicamentos. As especialidades que mais indicaram esta pressão
são a oncologia (24%) e a medicina geral e familiar (21%). Estão em causa
situações de constrangimentos à livre decisão médica e não necessariamente de
incentivo à prescrição de genéricos. Os casos apontados relacionam-se com antibióticos,
antidiabéticos e antihipertensores. No SNS as respostas obtidas foram 22% entre
os médicos nos cuidados de saúde primários e nos cuidados continuados e 10% nos
hospitais. O valor nos hospitais privados é semelhante: 12%; 10% dos médicos
afirmaram ter havido um aumento na recusa de tratamentos inovadores. O valor é
mais elevado nos hospitais públicos (17%) e entre as especialidades de urologia
(53%) e oncologia (47%); A falta de recursos no setor hospitalar público é um
traço marcante: cerca de 40% dos médicos hospitalares afirmaram já ter sido
confrontados com a falta de medicamentos no tratamento adequado dos doentes,
30% estiveram envolvidos em cirurgias adiadas e 23% já deixaram de realizar
técnicas invasivas por falta de material disponível.
• Um dos aspetos mais ignorados na reflexão sobre as
implicações da reforma no setor da saúde diz respeito à formação dos
profissionais. Praticamente 80% dos internos e 50% dos médicos especialistas
com atividades de formação (tutores) inquiridos consideram que a qualidade de formação
no internato médico diminuiu desde 2011.
• Entre os médicos no SNS, praticamente 60% referiram que
o abandono das terapêuticas aumentou nos últimos anos e 80% que os doentes têm
pedido mais vezes a prescrição de medicamentos mais baratos. Entre os médicos
no setor privado, 1/3 considerou ter havido um aumento do abandono das
terapêuticas por motivos económicos dos doentes e mais de 50% que os doentes
têm pedido mais vezes a prescrição de medicamentos mais baratos. Mais do que hierarquizar
as especialidades em que esta tendência pode ser mais preocupante, os dados revelam
a consistência com que o abandono de terapêuticas tem ocorrido (por exemplo, o abandono
em psiquiatria e em pneumologia rondam os 70%; em medicina geral e familiar os
60% e em oncologia os 50%).
• Segundo 58% dos médicos inquiridos os doentes têm
faltado mais às consultas ou manifestado impossibilidade de ir às consultas. A
análise por especialidades revela respostas consistentemente elevadas, com
maior destaque entre a medicina física e de reabilitação, pneumologia, estomatologia,
gastroenterologia, medicina interna, cardiologia e dermato-venerologia. Os
dados merecem reflexão: pense-se nas implicações de 40% dos oncologistas
inquiridos afirmarem que o absentismo dos doentes aumentou.
• Encontraram-se discrepâncias no interior da
profissão médica em relação à situação dos médicos: A sensação de esgotamento
entre os médicos do setor público cresce à medida do tempo de trabalho (dos 60%
aos 70%), situação apenas invertida já no final da vida profissional. Entre os
médicos no setor privado a tendência é sempre decrescente (65% entre os mais
novos e 40% entre os mais velhos); Tanto a motivação como a realização no trabalho
sofrem quebras ao longo do percurso profissional entre os médicos do SNS (51%
dos médicos mais novos estão motivados valor que baixa até aos 38% no decorrer
da vida profissional; 62% iniciam a sua vida profissional realizados, valor que
desce até aos 58%). A situação dos médicos no setor privado é oposta: a
motivação e realização aumentam à medida do tempo de trabalho (42% iniciam a
vida profissional motivados e 66% chegam ao final da vida profissional
motivados; 59% iniciam realizados e 80% terminam a vida profissional realizados);
Os médicos com trabalho exclusivo no
setor privado são os que mais denunciam sentir o aumento das dificuldades
financeiras desde 2011 (21%). Contudo, a análise discriminada por prestador
revela situações mais gravosas entre os médicos nos hospitais SPA (33%), nas
UCSP (os designados “centros de saúde”) (26%) e nos consultórios (24%); Os
estomatologistas são os especialistas inquiridos que mais manifestam dificuldades
económicas face a 2011 (35%) seguidos dos especialistas em medicina geral e
familiar (25%) e psiquiatras (22%); Os fatores que mais explicam a
possibilidade de emigração dos médicos prendem-se com dificuldades económicas e
com a realização profissional: em caso de aumento da dificuldade económica a possibilidade
de emigração aumenta em cerca de 50%; em caso de aumento da realização
profissional a possibilidade de emigração diminui em torno dos 60%. Logo, não é
apenas a situação de desemprego que ajuda a perceber a saída de médicos do
país.
• Alerta-se para a necessidade de uma leitura ampla
sobre os efeitos das reformas prosseguidas no tempo da Troika no sistema de
saúde português, isto é, indo para além do setor público. Contudo, tornou-se
inequívoco o peso e a consistência das respostas dos médicos do SNS inquiridos:
80% consideram que as reformas no setor público já afetaram a qualidade dos
cuidados prestados; cerca de 85% que o SNS não pode acomodar mais cortes de
financiamento sem comprometer a qualidade dos cuidados; e 28% que as condições
disponíveis não permitem tratar de acordo com as leges artis.
Etiquetas: cortes a eito, Crise e politica de saúde
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