sábado, dezembro 26

Crime sem perdão


Não há outra maneira de classificar o que se passou na madrugada de 14 de dezembro no Hospital de São José: a morte de um homem de 29 anos após três dias de espera por uma cirurgia urgente é um crime. Podemos dar as voltas que quisermos, imputar aos cortes cegos que certamente existiram nos anos da crise e debilitaram o Serviço Nacional de Saúde o que aconteceu, que não há desculpa que nos possa aliviar a revolta.
Diz o bastonário da Ordem dos Médicos, num intolerável exercício de autojustificação da classe, que “há muitos mais casos" como o de David Duarte, como se a vida de um doente pudesse ser negligenciada por mais legítimas que sejam as reivindicações sindicais.
É verdade, os médicos foram fortemente penalizados pela política de austeridade orçamental e, com eles, os cuidados públicos de saúde degradaram-se. Mas, perante situações de emergência em que o que se joga é a vida de um ser humano, exige-se a um hospital que ponha de lado a política e aja em conformidade com aquilo que é a sua função.
É por isso incompreensível que em São José, sabendo-se que não existe escala de neurocirugia ao fim de semana, não tenha ocorrido a ninguém um pedido de ajuda a outro hospital ou mesmo a mobilização de uma equipa especializada que, certamente, não se recusaria a cumprir aquilo que são dois dos mandamentos impostos pelo juramento de Hipócrates: "A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação" e "Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade". A conclusão que tiramos das reações nas corporações da saúde, por injustas que sejam as generalizações, é a de que neste como noutros rasos os doentes não são a prioridade e, pior, o respeito pelo valor supremo está refém de questões de natureza laboral. Não, isto não é moralismo nem demagogia, é a constatação da trágica realidade. E sim, as opções políticas têm consequências. O país em que hoje vivemos é seguramente diferente e mais desigual.
A ideologia que defende a privatização da saúde como de outros serviços essenciais tem naturalmente como efeito a fragilização do SNS. Mas não há maior serviço prestado aos que o querem desmantelar do que a introdução de um clima de falta de confiança nos hospitais públicos. E foi isso que aconteceu no Hospital de São José. Além da morte criminosa de um doente, houve um crime de lesa-SNS.
Nuno Saraiva, JN 24.12.2015

Muito foi já dito e comentado sobre a funesta morte dum jovem que uma intervenção cirúrgica atempada poderia ter evitado. Sendo este um editorial entre muitos, é, em meu entender, o que melhor nos questiona sobre o modelo da Saúde que estamos a construir.
Teria o tratamento sido outro, fosse este jovem beneficiário de um seguro público ou privado?
Teria este caso as repercussões que teve, com vários responsáveis demissionários a apontar o dedo à política de cortes financeiros que só agora vislumbram, se tivesse ocorrido tempos atrás?
Precisamos, urgentemente, de decisões políticas que credibilizem o SNS conduzidas por administrações que se identifiquem com os seus valores.

Boas Festas 

Tavisto

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7 Comments:

Blogger e-pá! said...

Quando o bastonário da OM revela que 'há muitos mais casos' não pode essa atitude ser interpretada como um 'intolerável exercício de auto-justificação'. Nem tudo o que chega à praça pública é uma manifestação de corporativismo. Existem posições de são efectivamente denúncias e não devem ser distorcidas. A denúncia de 'cortes cegos' foi repetidamente feita e divulgada ao longo de todo o exercício ministerial do Paulo Macedo e sempre negada ou escamoteada. Não são novas ou eivadas de oportunismo.
Para os que têm memória vale a pena recordar que a reorganização das urgências noturnas da área metropolitana de Lisboa, ocorrida em 2013, foi duramente criticada pela Ordem dos Médicos. Na altura o presidente da ARSLVT considerou face as criticas da OM que a reorganização era um 'ato de gestão de dinheiros públicos'(sic). O resultado está à vista!

Por outro lado, a evocação do 'juramento de Hipócrates' para culpabilizar aprioristicamente os médicos não passa de argumento piedoso e lateral.
Na verdade, o nefasto acontecimento ocorrido no H. S. José não deverá ficar pela análise de responsabilização das 'corporações de saúde' mas, em primeira linha, pelo evidenciar e o aprofundamento das responsabilidades políticas. Passar apressadamente por cima dos 'cortes cegos' sistematicamente impostos pelo MS e lançar-se abespinhadamente sobre os profissionais de saúde é de uma ligeireza assustadora para não dizer um despudor. Porque o SNS não é uma emanação dos profissionais de saúde (seja quais forem) mas um pilar do Estado Social.
Trata-se de atribuir a César o que é de César (de acordo com esta quadra de inspiração cristã).

Os trabalhadores do sector público da Saúde estão - para além do brio profissional - totalmente condicionados por decisões políticas, orçamentais e administrativas e foram durante a última legislatura duramente fustigados pela execução dessas opções que efetivamente debilitaram o SNS (como muitas vezes foi anunciado que estaria a ocorrer).
Os ex-governantes, por seu lado, sempre garantiram que as suas políticas restritivas (austeritárias) não afetariam a qualidade dos serviços e a capacidade de resposta dos mesmos.
Agora verificamos que uma criminosa prestigiação política (insisto neste terreno), afinal, atingiu (mortalmente) tanto o SNS, como os utentes.

Não vamos entreter-nos com cenários e paisagens acessórias embora seja justo, esclarecedor e pedagógico que todo o tipo de responsabilidades sejam apuradas.

12:48 da manhã  
Blogger DrFeelGood said...

A morte de David Duarte e a prova de que há dois países
23.12.2015 às 15h11 João Garcia
Neste país que não nos serve é sempre necessário que a casa seja roubada antes de chamar o homem das trancas
Já toda a gente o sabe: um jovem de 29 que sofreu um derrame cerebral acabou por morrer depois de ter estado três dias à espera de poder ser operado no Hospital de S. José.
Sobre o assunto, disse o bastonário da Ordem dos Médicos, durante o programa de debate das manhã na TSF, que o resultado dramático se ficou a dever aos cortes cegos e pesados que sofreu o Serviço Nacional de Saúde durante os últimos anos. Médicos e outros profissionais da especialidades de neurocirurgia vascular deixaram de ser pagos e, com todo o direito que lhes assiste enquanto funcionários, passaram a estar indisponíveis para trabalhar ao fim de semana.
O ouvinte seguinte fez outra leitura. Sem contrariar ao bastonário, acrescentou que se o enfermo fosse um médico sempre se teria encontrado uma equipa capaz de se reunir de emergência e fazer a intervenção ao fim de semana.
O mais certo é terem ambos razão. O mais certo é estarem os dois a retratar os dois países que temos, sendo que nenhum nos serve.
Temos de recusar este segundo país, porque isto de o Estado e do que lhe está anunciado funcionar a favores é insuportável. O jeitinho nacional está mais do que descrito, debatido, condenado… e permitido.
O primeiro país também não é aceitável. Não são admissíveis cortes cegos nem complacências que permitam que as situações cheguem a casos extremos. As medidas tomam-se preventivamente. Se os três responsáveis pelo funcionamento dos hospitais que se demitiram depois de conhecido o caso de David Duarte o tivessem feito em abril de 2014 (14, não é gralha) quando foram confrontados com uma situação que os obrigava a não ter piquetes daquela especialidade, talvez o assunto tivesse sido logo resolvido, como o foi agora. Neste país que não nos serve é sempre necessário que a casa seja roubada antes de chamar o homem das trancas.

4:23 da tarde  
Blogger Clara said...

ACF, considerou a situação no Hospital de São José “incompreensível”, sublinhando que não se pode resumir a uma questão financeira”. “A restrição financeira da Saúde, em alguns casos, foi longe demais”, admitiu. Mas houve “claramente um problema de organização dos meios”, afirmou. Até porque este serviço de assistência especializada funciona sem problemas no Norte e no Centro.
Para o bastonário da Ordem dos Médicos, Manuel Silva, a história de David Duarte não é mais uma consequência dos “cortes cegos, insensatos e absurdos” feitos na Saúde nos últimos anos.
Para lá de consequência dos cortes a eito do anterior ministro não podemos deixar de considerar que em relação a este triste caso houve deleixo de organização dos cuidados.
ACF já ordenou ao CHLC e à Inspeção da Saúde a abertura de inquéritos e o próprio Ministério Público vai investigar.
É necessário esclarecer com rigor as circunstâncias em que tudo ocorreu apurar e punir exemplarmente eventuais culpados.
Fica-nos em primeira linha, a excessiva frieza dos profissionais de saúde na recusa da prevenção (24 horas) pagas abaixo de 130 euros para enfermeiros e 250 euros para médicos. O preço, afinal, da vida dos utentes que sucumbiram a este triste falhanço do SNS.
ACF, vai ter de suar as estopilhas para recolocar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) no seu patamar de diferenciação e de pólo integrador e aglutinador da coesão social.
Tarefa a meu ver impossível de realizar.
A troupe anterior de liberais de pacotilha com destaque para o sonso Paulo Macedo, encarregaram-se de acelerar o trajecto sem retorno de liquidação do SNS: Criação de um serviço privado para quem pode adquirir seguros de saúde; serviço público de saúde para a maioria pobre dos portugueses.

4:58 da tarde  
Blogger xavier said...

Como é possível que alguém jure "solenemente consagrar a sua vida ao serviço da Humanidade", garantir que "a saúde do seu doente será a sua primeira preocupação" e que guardará "respeito pela vida humana" e venha depois para os jornais denunciar que houve várias mortes num hospital por falta de cuidados médicos, sem que nada tenha sido dito de lá até cá? É um desrespeito pela família de David Duarte a forma como se transformou a morte numa luta política e corporativa com um claro ajuste de contas em relação ao anterior ministro da Saúde. Não digo que não haja responsabilidades políticas no que aconteceu. Se os médicos não queriam ir, porque lhes reduziram a compensação financeira em 50%, era preciso garantir uma melhor organização, enquanto não fosse possível estabelecer um acordo entre empregadores e empregados. Essa será a responsabilidade máxima de Paulo Macedo, tudo o resto tem muito mais que ver com as administrações hospitalares, os médicos e os enfermeiros.

A defesa do bem comum não se faz com políticos que resolvem tudo, tenha os custos que tiver para os contribuintes ou com médicos e enfermeiros que só encontram tempo onde há dinheiro. Olhando para a notícia do Expresso de quinta-feira e pondo-me a jeito de corporações que gostam pouco de ser postas em causa, não posso deixar de fazer perguntas para as quais tenho grande dificuldade em encontrar respostas que não me pareçam absurdas:

1 - Fontes hospitalares garantem que a morte de David Duarte foi a quinta, desde que deixou de haver equipa ao fim-de-semana. O que levou médicos e enfermeiros a não denunciarem cada uma destas mortes, procurando assim evitar as que se seguiram?

2 - Tendo já havido quatro mortes por não resistirem à espera do fim-de-semana e sabendo a gravidade do estado de saúde de David Duarte, por que razão não foi chamada de urgência uma equipa para o operar?

3 - Já depois dos cortes correspondentes a cerca de 50%, por cada dia de piquete, um enfermeiro recebia 130 euros e um médico 250, mesmo que não tivessem de ir ao hospital se não houvesse cirurgias para fazer. Morreram cinco pessoas "em consequência dos cortes cegos, insensatos e absurdos" como acusa o bastonário dos médicos, José Manuel Silva?

Lamento, absurdo mesmo é querer reduzir o que se passou no Hospital de São José a uma questão político-financeira. Mesmo o actual ministro, Adalberto Campos Fernandes, reconheceu que não se tratou apenas de uma questão financeira, salientando que faltou organização naquele hospital. Não posso deixar de olhar para a defesa corporativa que foi feita neste caso, sem pensar que é com grande hipocrisia que muita gente faz o juramento para exercer a profissão.
Paulo Baldaia, JN 27.12.15

5:34 da tarde  
Blogger xavier said...

MARCELO, A OPORTUNIDADE E O OPORTUNISTA
Abro o jornal, olho para a foto e vejo o prof. Marcelo no hospital de São José acompanhado pela presidente do CA - a tal que se demitiu em conferência de imprensa - e outros membros da administração que julgava estarem, também, demitidos. Pelos vistos, a demissão foi só conversa.
Leio que o prof. Marcelo, muito preocupado com a saúde de todos nós, foi a correr ao hospital de São José pedir explicações sobre a morte de um jovem, ali ocorrida no passado dia 14. E para se esclarecer, não encontrou melhor do que ir perguntar precisamente aos que foram os grandes responsáveis por aquela morte - e outras entretanto conhecidas - em virtude dos cortes que fizeram nas equipas do hospital, tudo para poupar uns euros, indiferentes à degradação da assistência. Cortes que nunca mereceram uma crítica de Marcelo, sempre compreensivo e elogioso das virtudes de Paulo Macedo.
Não é difícil perceber que não são aqueles os interlocutores para explicarem o que se passou no São José (e em muitos outros hospitais do SNS). E Marcelo sabe isso muito bem. Como nós sabemos, igualmente bem, que não foi a preocupação com o direito à saúde ou com o estado do SNS que levou Marcelo ao hospital de São José. Foi a campanha eleitoral. É o que se chama instrumentalizar uma tragédia em benefício da sua propaganda política e eleitoral.
Imagino o que terão pensado Passos Coelho, Paulo Portas ou Paulo Macedo - sempre tão prontos a apontar o dedo à oposição quando confrontados com as consequências desumanas da sua política de saúde - sobre esta visita de Marcelo e o que ela revela sobre a forma de estar e fazer política do seu candidato presidencial. Para Marcelo, um problema é, antes de mais, uma oportunidade para aparecer e quanto mais dramática melhor. Depois logo se vê. Chama-se a isto oportunismo. Não é sentido de oportunidade, é oportunismo. Não se recomenda a um presidente e, muito menos, se recomenda um presidente assim.
João semedo, 28.12.15

2:51 da tarde  
Blogger geraldes said...



Quod erat expectandum o professor Marcelo foi à fonte recolher informações para melhor reescrever a História procurando com isso fazer nos esquecer o bem que disse do "comissaire aux comptes" Paulo Macedo. Só que neste caso a realidade é inocultável e de facto o aforismo you pay peanuts you get monkeys cumpriu-se. Se a qualidade dos médicos do SNS estivesse ao nível dos intocáveis banqueiros e economistas deste País estaríamos todos mortos...

10:07 da tarde  
Blogger Die Afrikaner said...

Meus caros tudo isto se deve resumir ao apuramento célere de responsabilidades.onde está a IGAS? Sempre tão zelosa de saber da responsabilidade dos administradores hospitalares?neste caso a responsabilidade vai fundo no Ministério da saúde. Por favor por uma vez apurem-se responsabilidades.morreram pessoas.certo?

5:07 da tarde  

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