Uma vergonha!
...Começando
pela estrutura corporativa que legitima e encarniça o protesto, a Ordem dos
Enfermeiros. A ninguém parece estranho que seja uma ordem profissional, ou
seja, a entidade pública com competência disciplinar e deontológica sobre os
enfermeiros, a encabeçar um protesto por aumentos salariais no Serviço Nacional
de Saúde? Pode uma ordem profissional, que é legalmente uma associação pública,
inventar estratagemas burocráticos para tentar legitimar falhas profissionais e
aconselhar os seus membros a não exercerem as suas funções, em detrimento dos
seus deveres profissionais e deontológicos? Ninguém acha que há aqui, no
mínimo, um claro conflito de interesses?
Como
diz a lei, as ordens profissionais são “entidades públicas de estrutura
associativa representativas de profissões que devam ser sujeitas (…) ao
controlo do respectivo acesso e exercício, à elaboração de normas técnicas e de
princípios e regras deontológicas específicas e a um regime disciplinar
autónomo, por imperativo de tutela do interesse público prosseguido”. E às
ordens profissionais cabe em primeiro lugar a “defesa dos interesses gerais dos
destinatários dos serviços”, no caso os utilizadores do SNS, e só depois a
“representação e a defesa dos interesses gerais da profissão” – mas em caso
algum lhes cabe a sua representação na definição de salários ou de outras
condições profissionais. Como poderia aliás a mesma estrutura ser responsável
pela fiscalização e aplicação de sanções disciplinares aos seus associados e
assumir-se em simultâneo na defesa da suas reivindicações laborais?
Aliás,
por isso mesmo se proíbe às ordens profissionais substituírem-se aos
sindicatos: “as associações públicas profissionais estão impedidas de exercer
ou de participar em actividades de natureza sindical ou que se relacionem com a
regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.”. Ou seja,
a Ordem dos Enfermeiros parece agir simplesmente de forma ilegal. Os parceiros
negociais de um empregador, seja ele o Estado, seja um privado, são os
sindicatos, não as ordens profissionais. Assim o determina a Constituição e a
lei.
Mas, para além do que a lei estabeleça, há
um dado que é inquestionável. E que me surge como inaceitável e imoral. E o
dado é este: um grupo profissional, para fazer vencer o seu argumento, tomou
literalmente como reféns alguns daqueles dos que entre nós estão numa situação
de maior fragilidade, como as grávidas, as parturientes, as mães e os pais
recentes ou as crianças recém-nascidas. E isso é inaceitável.
Há
um grupo profissional que conta com o medo dos seus concidadãos para fazer
vingar uma posição negocial junto de um governo. E conta também com o temor e a
dependência que se sente dos profissionais quando se utiliza um serviço de
saúde para garantir o seu silêncio, a sua falta de protesto.
Há
um grupo de pessoas e uma ordem profissional que transformaram basicamente os
enfermeiros portugueses numa classe de irresponsáveis que não respeitam
suficientemente a sua profissão e aqueles a quem supostamente dedicam a sua
vida profissional ao ponto de os usar displicentemente como reféns no seu
protesto salarial. Não é a primeira vez que isso acontece, mas é a mais grave.
E tem razão a senhora bastonária da Ordem dos Enfermeiros, quando diz
publicamente que “isto é um problema político” e não jurídico. Tem tanta razão
que nem deve aperceber-se da falta de razão que tem.
Miguel
Romão, JP 06.09.17 link
Sobre o processo de luta dos enfermeiros especialistas, em poucas palavras: Uma vergonha!
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