sábado, setembro 9

Uma vergonha!

...Começando pela estrutura corporativa que legitima e encarniça o protesto, a Ordem dos Enfermeiros. A ninguém parece estranho que seja uma ordem profissional, ou seja, a entidade pública com competência disciplinar e deontológica sobre os enfermeiros, a encabeçar um protesto por aumentos salariais no Serviço Nacional de Saúde? Pode uma ordem profissional, que é legalmente uma associação pública, inventar estratagemas burocráticos para tentar legitimar falhas profissionais e aconselhar os seus membros a não exercerem as suas funções, em detrimento dos seus deveres profissionais e deontológicos? Ninguém acha que há aqui, no mínimo, um claro conflito de interesses?
Como diz a lei, as ordens profissionais são “entidades públicas de estrutura associativa representativas de profissões que devam ser sujeitas (…) ao controlo do respectivo acesso e exercício, à elaboração de normas técnicas e de princípios e regras deontológicas específicas e a um regime disciplinar autónomo, por imperativo de tutela do interesse público prosseguido”. E às ordens profissionais cabe em primeiro lugar a “defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços”, no caso os utilizadores do SNS, e só depois a “representação e a defesa dos interesses gerais da profissão” – mas em caso algum lhes cabe a sua representação na definição de salários ou de outras condições profissionais. Como poderia aliás a mesma estrutura ser responsável pela fiscalização e aplicação de sanções disciplinares aos seus associados e assumir-se em simultâneo na defesa da suas reivindicações laborais?
Aliás, por isso mesmo se proíbe às ordens profissionais substituírem-se aos sindicatos: “as associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou de participar em actividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.”. Ou seja, a Ordem dos Enfermeiros parece agir simplesmente de forma ilegal. Os parceiros negociais de um empregador, seja ele o Estado, seja um privado, são os sindicatos, não as ordens profissionais. Assim o determina a Constituição e a lei.
Mas, para além do que a lei estabeleça, há um dado que é inquestionável. E que me surge como inaceitável e imoral. E o dado é este: um grupo profissional, para fazer vencer o seu argumento, tomou literalmente como reféns alguns daqueles dos que entre nós estão numa situação de maior fragilidade, como as grávidas, as parturientes, as mães e os pais recentes ou as crianças recém-nascidas. E isso é inaceitável.
Há um grupo profissional que conta com o medo dos seus concidadãos para fazer vingar uma posição negocial junto de um governo. E conta também com o temor e a dependência que se sente dos profissionais quando se utiliza um serviço de saúde para garantir o seu silêncio, a sua falta de protesto.
Há um grupo de pessoas e uma ordem profissional que transformaram basicamente os enfermeiros portugueses numa classe de irresponsáveis que não respeitam suficientemente a sua profissão e aqueles a quem supostamente dedicam a sua vida profissional ao ponto de os usar displicentemente como reféns no seu protesto salarial. Não é a primeira vez que isso acontece, mas é a mais grave. E tem razão a senhora bastonária da Ordem dos Enfermeiros, quando diz publicamente que “isto é um problema político” e não jurídico. Tem tanta razão que nem deve aperceber-se da falta de razão que tem.
Miguel Romão, JP 06.09.17 link
Sobre o processo de luta dos enfermeiros especialistas, em poucas palavras: Uma vergonha!

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