segunda-feira, agosto 12

Dedicação exclusiva


O debate acerca da exclusividade dos médicos no SNS tem vindo a ganhar peso na comunicação social, muito por culpa da discussão à volta da lei de bases da saúde e de algum agravamento no acesso aos serviços de saúde. 
Os argumentos de quem entende a necessidade da exclusividade são sobretudo de três tipos: maior produtividade; promiscuidade dos médicos com o sector privado; e garantia de uma maior presença nos serviços de ação médica. Foram, aliás, estes mesmos argumentos que levaram a ministra da saúde da altura, Leonor Beleza, a implementar a exclusividade dos médicos de uma forma voluntária com consequente aumento salarial e dois tipos de horário, 35 e 42 h semanais. Esta decisão provou ser absolutamente inconsequente, já que quem optou maioritariamente pela exclusividade foram os médicos em final de carreira, com pouca ou nenhuma clínica privada, e sem grande estímulo que não fosse poderem ter um vencimento maior e uma reforma mais substancial. O aumento do número de médicos nos serviços em regime de exclusividade, muitos deles sem conseguirem sequer gastar o número de horas semanais do seu horário de trabalho, sobretudo, os que estavam em 42 h e dispensados do serviço de de urgência por terem mais de 55 anos, produziu um efeito perverso em que esses médicos ganhavam mais fazendo exatamente o mesmo do que quando não estavam em exclusividade. Não há registo que esta decisão tivesse tido qualquer benefício na produtividade dos médicos, nomeadamente, que tenha contribuído para a resolução das listas de espera já na ocasião um problema sério. 
Os argumentos invocados a favor da exclusividade dos médicos, sem que haja a acompanhar uma verdadeira politica salarial e de cumprimento de objetivos, fazem pouco sentido e não irão produzir qualquer efeito prático. A falta de produtividade que possa haver, a alegada promiscuidade e a assiduidade resolvem-se de outro modo: 
1 — Em relação à produtividade, ela resolve-se de duas maneiras
— O primeiro, pagando aos médicos um salário com componente variável ligada à produção e à qualidade assistencial através dos indicadores de qualidade já em uso nalguns hospitais públicos e nas parcerias público-privadas. Este modelo, aliás, já existe nas unidades de saúde familiar (USF) com bons resultados. É claro que os médicos ganham mais que nas outras unidades sem esse modelo, mas é isso mesmo que todos deveríamos querer; melhor remuneração ligada a uma melhor qualidade assistencial e a uma maior produtividade; 
— O segundo tem que ver com a reorganização do trabalho médico, nas diversas valências médicas e cirúrgicas. Não é admissível que nalguns blocos cirúrgicos o número de cirurgias que se fazem seja inferior ao que tecnicamente é possível fazer, apenas devido à desorganização do trabalho de alguns médicos, mas também de algumas enfermeiras. A organização do trabalho médico passa necessariamente por uma correta distribuição das cargas horárias pelas diversas valências do serviço e pela monitorização dos objetivos contratualizados internamente entre os conselhos de administração e os serviços médicos. O controlo do trabalho efetuado ligado aos indicadores de produção e de qualidade assistencial é determinante para o cumprimentos dos objetivos; 
2 — Em relação à questão da eventual promiscuidade com o sector privado, trata-se, hoje em dia, em termos de dimensão, não mais que um mito. Apesar de altamente reprovável, não quer dizer que não possa acontecer pontualmente, mas a expressão é seguramente mínima e não interfere, no essencial, com o acesso dos utentes ao SNS, face ao volume de atos médicos efetuados. 
3 — No que se refere à assiduidade, esse problema foi já resolvido com a questão do registo digital, eletrónico e diário que obriga os médicos a cumprirem os horários, já que há muito deixou de haver registo manual e esse sim passível de poder ser manipulado. Lamentavelmente, parece haver ainda alguns casos esporádicos de não cumprimento da lei nesta matéria com a complacência dos conselhos de administração. Na verdade, só há uma situação em que a exclusividade poderia funcionar e produzir bons resultados: obrigatória e bem paga para quem quisesse trabalhar no Estado, com um modelo salarial de base fixa e componente variável por objetivos de produção e de qualidade assistencial, naturalmente apenas para os jovens médicos recém-especialistas. Dentro de duas gerações, à medida que os mais velhos se aposentassem, o modelo ficaria consolidado. Tudo o resto são manobras de cosmética, por vezes com carácter ideológico, que não resolvem o essencial. 
JMB, expresso 10.08.19 
«Leonor Beleza, a implementar a exclusividade dos médicos de uma forma voluntária com consequente aumento salarial e dois tipos de horário, 35 e 42 h semanais.» 
Tratou-se, apesar de tudo, de uma boa medida, responsável pela existência, ainda hoje, após o abandono da medida em 2009, justificada por dificuldades orçamentais, de 5.587 especialistas em regime de exclusividade dos 19 mil do SNS. Nos hospitais o número de especialistas em exclusividade baixa para 2.504 médicos, representando apenas 20% do setor (12.448). link Ou seja, a maioria dos médicos (80%) do sector público hospitalar trabalha em simultâneo no setor privado. 
A reposição da exclusividade parece consensual dependendo do modelo e condições a adoptar. Acertadamente, o Ministério da Saúde já começou a estudar a opção da dedicação exclusiva dos profissionais de saúde ao serviço público .link 
JMB, também parece estar de acordo (neste sentido o título do artigo é enganador). «Na verdade, só há uma situação em que a exclusividade poderia funcionar e produzir bons resultados: obrigatória e bem paga para quem quisesse trabalhar no Estado, com um modelo salarial de base fixa e componente variável por objetivos de produção e de qualidade assistencial, naturalmente apenas para os jovens médicos recém-especialistas.» 
“Bem paga”, tendo em conta os condicionalismos orçamentais do país, entenda-se. 
Ponto fundamental: A necessidade de «reorganização do trabalho médico, nas diversas valências médicas e cirúrgicas. A organização do trabalho médico passa necessariamente por uma correta distribuição das cargas horárias pelas diversas valências do serviço e pela monitorização dos objetivos contratualizados internamente entre os conselhos de administração e os serviços médicos. O controlo do trabalho efetuado ligado aos indicadores de produção e de qualidade assistencial é determinante para o cumprimentos dos objetivos.» 
Organização do trabalho, verdadeiro calcanhar de Aquiles da rede hospitalar (PPP incluídas, que nada trouxeram de novo).

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