Dedicação exclusiva
O debate acerca da exclusividade dos médicos no SNS tem vindo a ganhar peso na comunicação social, muito por culpa da discussão à volta da lei de bases da saúde e de algum agravamento no acesso aos serviços de saúde.
Os argumentos de quem entende a necessidade da exclusividade são sobretudo de três tipos: maior produtividade; promiscuidade dos médicos com o sector privado; e garantia de uma maior presença nos serviços de ação médica. Foram, aliás, estes mesmos argumentos que levaram a ministra da saúde da altura, Leonor Beleza, a implementar a exclusividade dos médicos de uma forma voluntária com consequente aumento salarial e dois tipos de horário, 35 e 42 h semanais. Esta decisão provou ser absolutamente inconsequente, já que quem optou maioritariamente pela exclusividade foram os médicos em final de carreira, com pouca ou nenhuma clínica privada, e sem grande estímulo que não fosse poderem ter um vencimento maior e uma reforma mais substancial. O aumento do número de médicos nos serviços em regime de exclusividade, muitos deles sem conseguirem sequer gastar o número de horas semanais do seu horário de trabalho, sobretudo, os que estavam em 42 h e dispensados do serviço de de urgência por terem mais de 55 anos, produziu um efeito perverso em que esses médicos ganhavam mais fazendo exatamente o mesmo do que quando não estavam em exclusividade. Não há registo que esta decisão tivesse tido qualquer benefício na produtividade dos médicos, nomeadamente, que tenha contribuído para a resolução das listas de espera já na ocasião um problema sério.
Os argumentos invocados a favor da exclusividade dos médicos, sem que haja a acompanhar uma verdadeira politica salarial e de cumprimento de objetivos, fazem pouco sentido e não irão produzir qualquer efeito prático. A falta de produtividade que possa haver, a alegada promiscuidade e a assiduidade resolvem-se de outro modo:
1 — Em relação à produtividade, ela resolve-se de duas maneiras:
— O primeiro, pagando aos médicos um salário com componente variável ligada à produção e à qualidade assistencial através dos indicadores de qualidade já em uso nalguns hospitais públicos e nas parcerias público-privadas. Este modelo, aliás, já existe nas unidades de saúde familiar (USF) com bons resultados. É claro que os médicos ganham mais que nas outras unidades sem esse modelo, mas é isso mesmo que todos deveríamos querer; melhor remuneração ligada a uma melhor qualidade assistencial e a uma maior produtividade;
— O segundo tem que ver com a reorganização do trabalho médico, nas diversas valências médicas e cirúrgicas. Não é admissível que nalguns blocos cirúrgicos o número de cirurgias que se fazem seja inferior ao que tecnicamente é possível fazer, apenas devido à desorganização do trabalho de alguns médicos, mas também de algumas enfermeiras. A organização do trabalho médico passa necessariamente por uma correta distribuição das cargas horárias pelas diversas valências do serviço e pela monitorização dos objetivos contratualizados internamente entre os conselhos de administração e os serviços médicos. O controlo do trabalho efetuado ligado aos indicadores de produção e de qualidade assistencial é determinante para o cumprimentos dos objetivos;
2 — Em relação à questão da eventual promiscuidade com o sector privado, trata-se, hoje em dia, em termos de dimensão, não mais que um mito. Apesar de altamente reprovável, não quer dizer que não possa acontecer pontualmente, mas a expressão é seguramente mínima e não interfere, no essencial, com o acesso dos utentes ao SNS, face ao volume de atos médicos efetuados.
3 — No que se refere à assiduidade, esse problema foi já resolvido com a questão do registo digital, eletrónico e diário que obriga os médicos a cumprirem os horários, já que há muito deixou de haver registo manual e esse sim passível de poder ser manipulado. Lamentavelmente, parece haver ainda alguns casos esporádicos de não cumprimento da lei nesta matéria com a complacência dos conselhos de administração.
Na verdade, só há uma situação em que a exclusividade poderia funcionar e produzir bons resultados: obrigatória e bem paga para quem quisesse trabalhar no Estado, com um modelo salarial de base fixa e componente variável por objetivos de produção e de qualidade assistencial, naturalmente apenas para os jovens médicos recém-especialistas. Dentro de duas gerações, à medida que os mais velhos se aposentassem, o modelo ficaria consolidado. Tudo o resto são manobras de cosmética, por vezes com carácter ideológico, que não resolvem o essencial.
JMB, expresso 10.08.19
«Leonor Beleza, a implementar a exclusividade dos médicos de uma forma voluntária com consequente aumento salarial e dois tipos de horário, 35 e 42 h semanais.»
Tratou-se, apesar de tudo, de uma boa medida, responsável pela existência, ainda hoje, após o abandono da medida em 2009, justificada por dificuldades orçamentais, de 5.587 especialistas em regime de exclusividade dos 19 mil do SNS. Nos hospitais o número de especialistas em exclusividade baixa para 2.504 médicos, representando apenas 20% do setor (12.448). link
Ou seja, a maioria dos médicos (80%) do sector público hospitalar trabalha em simultâneo no setor privado.
A reposição da exclusividade parece consensual dependendo do modelo e condições a adoptar. Acertadamente, o Ministério da Saúde já começou a estudar a opção da dedicação exclusiva dos profissionais de saúde ao serviço público .link
JMB, também parece estar de acordo (neste sentido o título do artigo é enganador). «Na verdade, só há uma situação em que a exclusividade poderia funcionar e produzir bons resultados: obrigatória e bem paga para quem quisesse trabalhar no Estado, com um modelo salarial de base fixa e componente variável por objetivos de produção e de qualidade assistencial, naturalmente apenas para os jovens médicos recém-especialistas.»
“Bem paga”, tendo em conta os condicionalismos orçamentais do país, entenda-se.
Ponto fundamental: A necessidade de «reorganização do trabalho médico, nas diversas valências médicas e cirúrgicas. A organização do trabalho médico passa necessariamente por uma correta distribuição das cargas horárias pelas diversas valências do serviço e pela monitorização dos objetivos contratualizados internamente entre os conselhos de administração e os serviços médicos. O controlo do trabalho efetuado ligado aos indicadores de produção e de qualidade assistencial é determinante para o cumprimentos dos objetivos.»
Organização do trabalho, verdadeiro calcanhar de Aquiles da rede hospitalar (PPP incluídas, que nada trouxeram de novo).
Organização do trabalho, verdadeiro calcanhar de Aquiles da rede hospitalar (PPP incluídas, que nada trouxeram de novo).
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