Dedicação exclusiva no SNS
Na altura em que tanto se discutem matérias que pouco dizem ao Povo, parece-me indispensável centrar a discussão num tema central, o do modelo de trabalho dos seus profissionais. Reforçar as condições para uma gestão de qualidade, reconduzindo profissionais ao amor à camisola, através da concentração do seu labor nos serviços que os treinaram, onde conheceram pares e são por eles reconhecidos, numa hierarquia de competência e dedicação. O que escrevo centra-se nos médicos, mas pode ser adaptado aos restantes membros das equipas de saúde.
Longe vai o tempo em que muitos eram contra: figuras tutelares com clínica firmada, jovens que a ambicionavam e esgravatavam em múltiplos lugares, voando de mini-cooper entre urgências e consultas periurbanas; uma Ordem receosa do socialismo do SNS, arvorando as respeitáveis bandeiras da autonomia, do colóquio singular, do liberalismo. Os tempos foram mudando à medida que os hospitais se modernizaram, os centros de saúde desabrocharam em unidades familiares e os profissionais ganhavam respeito ao SNS pela formação e pela hierarquia que garante ajuda e qualidade.
O setor privado não dormiu, cresceu, absorvendo a clínica privada independente, através de eficientes ambulatórios de mais de uma centena de consultórios, excelente tecnologia e acolhedor tratamento, captando bons profissionais na força da vida, com retribuição líquida dobrando a do SNS. Aos poucos, porém, vai-se sentindo a pervasiva coação das metas, dos incentivos à eficiência, sem paralelo numa cultura de qualidade que não a orientada para alargar mercado. A proletarização vem a caminho.
A dedicação exclusiva do passado recente, inexplicavelmente extinta no final da primeira década, tinha fragilidades: com as exceções de sempre, atraía os que estavam próximo da reforma, os mais orientados para soluções coletivistas, ampliava os quadros dos hospitais centrais desfalcando os do interior, desincentivava a mobilidade, mas garantia estabilidade. Mal gerida e nem sempre bem-amada exceto no fim da vida ativa, a exclusividade garantiu, no SNS, a qualidade, o brio, o sentido de pertença, as carreiras. Razão para que ela seja revigorada. Surge agora a oportunidade.
Parece haver candidatos interessados, alguns até a prefeririam à emigração. Os hospitais, todos, anseiam por elas. As Ordens têm-se multiplicado em declarações favoráveis. Os administradores apoiariam sem reservas. Os programas políticos, da esquerda à direita, confirmam a sua necessidade, os ministros consideram-na uma aspiração, louvável para uns, indispensáveis para outros. Os pais fundadores do SNS e os seus herdeiros presuntivos não poderiam ser mais explícitos, as leis de bases propostas louvam-na como pedra filosofal. Quem se opõe, então? Dizem que as Finanças, sempre receosas de despesa pública incontrolada, se oporiam com firmeza e sanha. Será verdade?
Não o creio, as Finanças são resilientes, tendem a lutar contra a deriva e a regressar ao padrão controlador, têm serviços mais restritivos que ministros. Sim, tudo isso pode ser verdade, mas parte dessa verdade reconstrói o País depois das crises. Não o esquecemos. Resistência ao risco não é sinónimo de perda de inteligência. Há que explicar, que demonstrar os ganhos de eficiência, que convencer.
Há muito trabalho de casa nos escassos meses até às eleições. Novos governos carecem de novas ideias e chegam com a força que falece no fim do ciclo. Haverá que reunir um grupo de peritos com experiência, conhecimento, pragmatismo, vivência externa e legitimidade. O seu papel seria desenhar a nova dedicação exclusiva no SNS de forma a convencer os que a venham a abraçar, de que ela amplia eficácia, eficiência, equidade e qualidade no SNS. Sobretudo usar de realismo no faseamento, para garantir adesão e sustentabilidade crescentes. Nada é impossível. Está na altura.
JP 17.06.19
Numa altura em que o debate sobre a Lei de Bases da Saúde (LBS) prossegue aceso, o pai das PPP, Correia de Campos, vem propor em artigo publicado no JP, o recentrar da discussão na exclusividade dos profissionais do SNS.
Curiosamente, o bastonário OM na sessão de encerramento da “Convenção da Saúde” referiu que propôs aos “ministros da saúde" a possibilidade de os médicos poderem optar por trabalhar em dedicação exclusiva no serviço público.
“Grande parte dos médicos iria actualmente optar” pela exclusividade no sector público. O bastonário e a Ordem dos Médicos consideram que esta possibilidade pode trazer melhores condições remuneratórias aos profissionais, além de permitir reduzir uma hora de trabalho semanal a partir dos 55 anos, anualmente, mantendo a mesma remuneração. São benefícios que funcionariam como um atractivo para fixar médicos no SNS e que ao mesmo tempo recuperariam o que está definido no diploma das carreiras médicas de 1990 (para o bastonário da OM, a medida só é “positiva” se for de carácter “opcional e com a remuneração adequada”). link
Os Sindicatos médicos têm defendido a reposição do regime de trabalho em dedicação exclusiva com «caráter opcional, voluntário e reversível, com a devida compensação em termos remuneratórios e outros, de forma a permitir a fixação e dedicação plena dos médicos às suas instituições. link
A nova Lei de Bases, embora eliminando o apoio do Estado "à facilitação da mobilidade" de profissionais entre o setor público e o setor privado", prevê apenas a evolução progressiva para a criação de "mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas".
Os “jovens que ambicionavam e esgravatavam em múltiplos lugares, voando de mini-cooper entre urgências e consultas periurbanas”, sob a ameaça da proletarização, segundo Correia de Campos, estão hoje disponíveis para abraçar a exclusividade do serviço público.
A nova Lei de Bases Saúde deve ir mais além e estabelecer a clara separação dos setores público, privado e social, fixando a dedicação exclusiva, dos profissionais do SNS, o seu maior investimento e recurso mais importante.
Só assim a dedicação exclusiva dos profissionais do SNS faz sentido.
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