Universalidade dos cuidados
A Constituição da República Portuguesa consagra a harmonia entre universalidade, generalidade e gratuitidade tendencial dos cuidados de saúde e o papel do Serviço Nacional de Saúde (SNS) como seu garante. Ou seja: o SNS é acessível a todos os cidadãos sem excepção, dispensa todos os cuidados de saúde e o pagamento efectuado pelos seus
utentes é tão reduzido quanto possível.
Ainda que o SNS alcance muito bons resultados para o nível de despesa, o seu funcionamento apresenta importantes limitações Isto traduz-se, por exemplo, na impossibilidade de acesso ao médico de família no próprio dia; atrasos em cirurgias eletivas e meios complementares de diagnóstico e terapêutica; resultados nem sempre satisfatórios
no acompanhamento de doenças coronárias, vasculares e oncológicas; elevados índices de
infeções hospitalares; e insuficiente prevenção do tabagismo e consumo de álcool. Traduz-se
ainda em necessidades não satisfeitas na saúde oral e saúde mental entre grupos populacionais mais desfavorecidos, elevada carga de doença entre a população mais velha e desequilíbrios na disponibilidade de recursos humanos por serviços e pelo território.
Ou seja: o SNS tem sentido dificuldade em cumprir o ambicioso papel que lhe foi atribuído.
Estes problemas não são específicos de um tempo governativo concreto dado que acompanham as quatro décadas de construção do SNS. Este facto não é surpreendente já que, salvo raríssimas exceções, ainda assim momentâneas, nenhum país tem conseguido articular a universalidade, generalidade e gratuitidade dos cuidados. Este problema deve-se ao facto de que se pede a recursos finitos (técnicos, humanos, financeiros, entre outros) que respondam a necessidades e custos crescentes, o que obriga a encontrar uma solução para
o financiamento da saúde.
Em Portugal, duas posições têm marcado este debate: aqueles que preferem omitir a necessidade de fazer a discussão com o argumento de que o financiamento e a prestação do SNS permitem só por si assegurar a universalidade, generalidade e gratuitidade; e aqueles para quem a solução do financiamento público passa por limitar a universalidade e/ou a generalidade dos cuidados, quer pela alteração jurídica do SNS quer pela indução das preferências dos profissionais de saúde (onde desejam trabalhar) e dos utilizadores (onde desejam ser tratados) em contexto concorrencial de mercado. Importa perceber que esta discussão não se deve apenas ao atual debate em torno da Lei de Bases da Saúde.
Ela traduz uma indefinição crónica que retira consistência às políticas públicas entre os sucessivos governos e a devida avaliação de resultados.
O que tem faltado é a clarificação sobre que sistema de saúde se pretende em Portugal. Por outras palavras, falta definir qual a melhor forma de financiamento e a melhor organização dos prestadores, tendo em conta as forças e fraquezas do SNS, os padrões epidemiológicos da população e os factores determinantes de saúde, o lugar das corporações profissionais e o papel do setor social e dos investidores privados. Importa não ignorar que muitos dos problemas identificados persistem perante o reforço dos orçamentos do SNS, a redução
do preço dos medicamentos, a isenção de taxas moderadoras, o aumento de vagas de internato médico, os incentivos à fixação de profissionais em áreas carenciadas, a contratação de profissionais estrangeiros, a estabilização das carreiras profissionais, a reforma dos cuidados de saúde primários e a expansão da rede de cuidados integrados continuados. Tais medidas – entre muitas outras – parecem, no entanto, seja pela sua natureza ou pelo seu grau de realização, não produzir as mudanças necessárias.
Os diagnósticos estão feitos.
Sabemos o que o SNS faz bem e o que precisa melhorar e conhecemos do ponto de vista técnico as consequências positivas e negativas associadas a cada agente financiador (o Estado, os subsistemas de saúde, as famílias e o mercado). Mas falta evoluir nos argumentos.
Nas palavras de Correia de Campos, “seria desastroso deixar tudo como está pela força da inércia”. Mas também não é verosímil pensar em cuidados universais, gerais e tendencialmente gratuitos financiados apenas pelo Estado e prestados pelo SNS - veja-se o indicador abaixo. Além disso, as relações público-privadas na saúde podem não ser
concorrenciais, ou seja é possível organizar a prestação e financiamento público e privado de forma a evitar redundâncias e atropelos.
Por trás das opções políticas concretas, o financiamento da saúde deve ter como ponto de ancoragem o princípio da igualdade.
Igualdade dos cidadãos perante o Estado, igualdade no exercício do seu direito a viver mais e melhor e a ver os seus problemas resolvidos de forma célere e transparente.
Este princípio tem sido substituído pelo da equidade, segundo o qual o Estado – o SNS – deve concentrar-se na população mais desprotegida, compensando assim o seu menor acesso ao mercado de bens e serviços de saúde. Contudo, é a igualdade – mais do que a equidade
– que promove a coesão social e a estabilidade política, pelo que se deve colocar como imperativo máximo do Estado a garantia da universalidade de cuidados. A generalidade é alcançável remetendo certas valências para o financiamento de outras fontes, idealmente
públicas, que atuem de forma suplementar ao SNS.
Uma possibilidade é um seguro universal obrigatório que permita afetar o orçamento do SNS
exclusivamente à sua atividade, organizar o financiamento público da prestação privada evitando concorrência e falta de transparência na relação público-privada, reforçar a regulação do Estado sobre a prestação privada coberta pelo seguro e fazer uso das valências privadas
já instaladas no país. A atual configuração da ADSE prova o conceito de cedência de parte do vencimento para acesso a uma cobertura ampla de serviços e do agregado familiar e com custos pouco significativos no ato de consumo. Os desafios estão em assegurar a regulação
pública das práticas e preços do mercado e a participação da segurança social no financiamento da população desempregada e de baixo rendimento.
Tiago Correia, “SNS ainda não encontrou forma de garantir a universalidade e a generalidade de cuidados” link link
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