sábado, setembro 26

Paulo Macedo, acordou para a campanha

«Tempo Medicina» («TM») – Em recente artigo de opinião na imprensa regional, iniciou a sua intervenção com o sentimento de que «o tempo é de expectativa». Que expectativas tem neste tempo? 
Carlos Cortes (CC)A expectativa é desanimadora quando nos lembramos de todas as dificuldades que a Saúde está a atravessar e a dificuldade demonstrada pelo Ministério da Saúde [MS] em resolver os problemas do sector, muitos dos quais o próprio criou. Hoje, é mais difícil prestar cuidados de saúde de qualidade pela falta de recursos técnicos e humanos, pela falta de organização da rede hospitalar e dos cuidados de saúde primários [CSP], pela falta de reformas necessárias para modernizar o Serviço Nacional de Saúde [SNS] e pela desvalorização da formação médica. Hoje, a Saúde é menos universal, menos acessível e mais desigual. Mas, e apesar de tudo, a expectativa também é de esperança e ânimo quando olhamos para as conquistas do passado e para a resistência do SNS. Conseguimos acreditar que será resistente o suficiente para aguentar as decisões irresponsáveis que têm sido tomadas. A expectativa também é de esperança, quando percebemos o grau de dedicação dos profissionais (para que todos os problemas sejam ultrapassados) e ainda a sua própria resistência às adversidades. Sublinhe-se que nos profissionais de saúde está a verdadeira sustentabilidade do sistema. 
«TM» – Nesse mesmo artigo, expressou a vontade de não falar «sobre o despertar tardio e pré-eleitoral do Ministério da Saúde para os problemas do sector». Pode concretizar relativamente a esta sua afirmação?
CC O MS decidiu mais nestes últimos quatro meses do que nos últimos quatro anos. Foi decidido mais, legislado mais, propagandeado mais. Mas não significa que se tenha feito mais ou sequer melhor. Foi como se, de repente, o MS tivesse acordado de um sono profundo e decidido pensar nos problemas do sector. Durante quatro anos não pensou nos recursos humanos, não pensou nas formas de incrementar qualidade no sistema, não pensou reestruturar a rede hospitalar nem organizar os CSP, não pensou nas unidades de saúde em áreas mais carenciadas. Só há poucos meses, o MS parece ter saído de uma longa hibernação e despertado para os problemas do sector. Infelizmente, as dificuldades acumuladas são muitas e não se resolvem com uma golpada de propaganda oportunista de fim de mandato.
«TM» – Por que qualifica de «ineficaz e injusto» o sistema de incentivos proposto para responder à que também diz ser a «flagrante desertificação dos profissionais nos hospitais e centros de saúde nas zonas mais carenciadas»? 
CCNão gosto da palavra «incentivos». Os médicos precisam de condições para poderem trabalhar e nunca precisaram de ser incentivados para tal. Estou convencido de que a vontade do Ministério da Saúde em colocar médicos nas zonas mais necessitadas é ilusória.
Pelo contrário, tudo foi feito para não permitir a deslocação de médicos para as zonas mais carenciadas do País.  Por exemplo, enquanto eram abertas vagas de especialidade em hospitais ou centros de saúde do Interior eram também abertas [proporcionalmente] nas zonas do Litoral. Isso diz tudo sobre a real vontade do MS. Por outro lado, os suplementos salariais para motivar profissionais de saúde são irrisórios e nunca constituirão incentivo para ninguém. Além do mais são um factor de profunda injustiça, já que só abrangem os novos contratos. Como se os médicos já colocados nos serviços considerados carenciados não fizessem nenhum esforço para assegurar o trabalho!
«TM» – Pensou em soluções mais justas e eficazes? Quais? 
CCHá que ter a noção concreta dos serviços carenciados e das necessidades actuais e futuras do País. A partir daí, o Ministério da Saúde deveria dotar as unidades de saúde mais carenciadas de condições financeiras, técnicas e organizativas adequadas para atrair mais profissionais de saúde.
«TM» – Enquanto presidente do CRCOM, Carlos Cortes diz não acreditar na «varinha mágica» nem, supostamente, no que conterá a «cartola» do ministro Paulo Macedo. Acha que já não há magia que chegue para iludir no sector da Saúde? Porquê?
CC Os coelhos de peluche que, estrategicamente, o ministro Paulo Macedo faz sair por todo o lado já não iludem ninguém. Já passámos a fase das intenções. Infelizmente, a fase das concretizações continua esquecida.
«TM» – A seu ver, as decisões políticas da tutela não dão resposta às necessidades regionais, prejudicando os cuidados de saúde?
CCÉ uma constatação habitual e evidente. Há uma profunda iniquidade nas capacidades do SNS entre o Interior e o Litoral. Assistimos a um aprofundar desta realidade nos últimos anos. Muitos hospitais, como o da Guarda, entre outros, estão a perder recursos humanos, constituindo um impacto negativo sobre a sua capacidade de fornecer cuidados de saúde.
«TM» – É conhecida a sua posição crítica relativamente à formação médica, que observa «degradar-se». Que sugere para corrigir, por exemplo, «o desvio de médicos em formação para actividades não formativas nos serviços de urgência»? 
CC Cada vez mais os médicos internos são utilizados para suprir a falta de recursos humanos. Para alguns, são um alvo fácil e barato. Muitos conselhos de administração esquecem-se da sua responsabilidade na formação dos jovens médicos. Esquecem-se que existem programas de formação muito específicos para cada especialidade que têm a obrigação de deixar cumprir. A desorganização dos recursos humanos nos hospitais não pode ser resolvida à custa da formação médica!
«TM» – O dia 15 de Setembro é representativo para o SNS, sobretudo quando, há 36 anos, passou a fazer parte do «Património dos Portugueses».Há esperança na sua continuidade, salvaguardando os valores humanísticos e solidários, quando a falta de médicos obriga a encerrar extensões de saúde? 
CCHá esperança, na medida em que o SNS soube ultrapassar dificuldades gigantescas da herança do século passado. O SNS soube colocar Portugal num patamar que poucos teriam ambicionado até então. Apesar de todas as dificuldades criadas, e que continuarão sempre a ser colocadas, acredito que a vontade dos utentes e dos profissionais de saúde ajudará à sustentabilidade do SNS. 
«TM» – A saúde é do que mais se valoriza, dado o seu impacto na vida das pessoas. Enquanto médico com responsabilidades directivas, aceita que outros vejam nela um negócio relevante, especialmente nesta época que o Papa Francisco julga como da «globalização da indiferença»?
CC Nada tenho contra o negócio. Qualquer negócio é legítimo, desde que esse seja benéfico para ambas as partes. O que é preciso preservar é a qualidade da medicina e o acesso justo e igual aos cuidados de saúde. Se os interesses dos doentes e os seus direitos forem preservados – e as suas necessidades respeitadas –, não vejo que isso possa constituir um problema. O que não é aceitável é que a viabilidade de um negócio possa assentar em cuidados de saúde deficientes ou em procedimentos desnecessários. O que devemos sempre ter em conta é a qualidade da medicina praticada e o acesso aos serviços.
«TM» – O que pensa sobre a «fuga» de médicos (jovens e também seniores) para o estrangeiro?
CCEm 2014, a nível nacional, emigraram 397 médicos. Essa é uma tendência que temos vindo a notar e que cada vez se tem tornado mais uma opção para os médicos. Há uma profunda desmotivação dos profissionais, compreensível pelas condições em que trabalham e pela forma desconsiderada como têm sido tratados pela tutela.
«TM» – Que balanço faz do seu mandato de presidente do CRCOM até ao momento?  
CCNão estamos em tempo de balanços. Estamos em tempo de trabalho e de muita acção. 
Tempo Medicina, 22.09.15

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