Vamos ter menos "Saúde" na campanha
Nem pensar, já fiz o serviço militar. Em três
anos [foi ministro da Saúde no Governo de José Sócrates], perdi fisicamente o
correspondente a dez anos de vida. É muitíssimo duro. E há gente nova, o
Adalberto Campos Fernandes, o Alexandre Abrantes, o Manuel Pizarro, a Marta
Temido.
O Governo diz que salvou o SNS da bancarrota,
que herdou uma dívida de 3 mil milhões de euros na saúde. Acredita nisso?
Isso
é uma completa efabulação. Isso é salvar de bancarrota alguma coisa? Três mil
milhões de euros são 600 milhões de contos. No passado, houve muitos anos ainda
com orçamentos muito mais reduzidos, em que transitavam de um ano para outro
dívidas até de 800 milhões de contos (4 mil milhões de euros). Com o PS e com o
PSD.
O programa do PS prevê um aumento de despesa na
saúde?
Sim, isso está assumido no cenário
macroeconómico, até porque vamos herdar uma situação de passivo [na saúde] pelo
menos de 1,5 a 1,6 mil milhões.
Como chegou a esse número?
Pelas queixas da indústria farmacêutica, da de
dispositivos médicos e as dívidas dos hospitais.
Há quem o designe como o
ministro das finanças da Saúde. Concorda? Acho que essa designação é ajustada.
Mas, no início, fartou-se de o elogiar...
O que disse, para quem achava que ele não tinha
preocupações sociais, foi que isso não era exacto. E tiro o meu chapéu à
contracção da despesa dos medicamentos [que Paulo Macedo conseguiu].
Porque é que não fez o mesmo quando foi
ministro?
Por causa dos 18 anos da patente dos
medicamentos. Ele apanhou em cheio a perda da patente dos blockbusters
[fármacos no topo das vendas].
Agora há embalagens de medicamentos que custam
tanto como uma caixa de chicletes. Não
acha que se caiu noutro extremo?
Não sou
especialista em medicamentos. O doutor Macedo também imprimiu limitações à
indústria. Teve coragem para o fazer, mas também contou com uma indústria
permissiva, com complexos de culpa.
E o combate à fraude?
Isso é uma
cantiga. A fraude sempre se combateu. Se o meu Governo não tivesse montado um
sistema de conferência de facturas de medicamentos...
O que ficou por fazer? A
reforma hospitalar?
Aí, [Paulo Macedo] não
fez nada. Não fez a carta hospitalar e agora os privados estão a instalar-se em
toda a parte, com as inevitáveis redundâncias. Por exemplo, o Hospital de Viseu
vai ser com certeza despencado de profissionais para a clínica que um grande
grupo privado está ali a instalar. [Nos hospitais,] não fez um acto de gestão
capaz. Centralizou pesadamente, aceitou aquelas obrigações pesadíssimas de não
poderem ultrapassar a lei dos cabimentos [compromissos].
Mas isso foi imposto pela
troika, não foi?
Não foi nada. [Além
disso,] com a suborçamentação, as pessoas gastam mais do que aquilo que podiam
gastar se tivessem desde o início um orçamento honesto.
O programa do PS para a
saúde, que ajudou a redigir, não é pouco ambicioso?
Não. Falamos, por
exemplo, na abertura de 100 USF (Unidades de Saúde Familiar), em quatro anos, o
que dará cobertura [médico de família] a 535 mil pessoas. Para isso são
necessários 800 médicos. Mas fizemos as contas cuidadosamente.
Quanto acha que um médico
deve ganhar?
Os médicos têm um
pagamento miserável, tem sido sempre muito baixo, mas antes era disfarçado
pelas horas extraordinárias. Os médicos devem ter prémios pelo desempenho, como
se fez para as USF.
No seu último livro (
Saúde & Preconceito), defende que é um mito dizer que o sector privado é
melhor do que o público. É o principal mito na saúde?
É o principal mito. A
competição só se estabelece com produtos iguais. Os hospitais públicos não
podem mandar embora um doente, o que os privados muitas vezes fazem, ficam com
o filet mignon e deixam o resto.
O SNS está em risco, como
tem sido apregoado?
Não. O SNS está muito
ancorado no imaginário dos portugueses.
No seu livro fala também
na liberdade de escolha...
Já existe liberdade de
escolha no SNS. Vou dar-lhe um exemplo: nas maternidades. Outro: nas urgências.
Agora, todos os sistemas têm limitações técnicas, pela disponibilidade de
meios, pela acessibilidade.
Mas se as pessoas
quiserem recorrer a determinado hospital não podem, têm que ir ao seu hospital
de referência.
Defendem-se, dão outra
morada.
Isso é um estratagema...
Usem e dêem outra morada.
No último Inverno, o caos
das urgências tornou evidente que muita coisa está a falhar no SNS. O que
motivou este caos?
Quando não são
substituídos médicos nas urgências, quando são recrutados médicos vindos de uma
pool, quase mercenários vindos em rodízio...
Mas não foi o grande
responsável pela multiplicação das empresas de “tarefeiros” quando era
ministro?
Recorríamos [a
tarefeiros] só em casos-limite, nalguns casos era essencial. [De resto,] não
tive nada a ver com isso.
Tomamos medicamentos a
mais?
Há um
consumo excessivo de medicamentos. Deseducou-se a população, levando-a a pensar que médico que não prescreve é um mau
médico, quando o contrário pode ser um sinal de que é um excelente
profissional. Este é o resultado de longas décadas de estratégia da indústria
[farmacêutica].
Afinal,
precisamos ou não de mais médicos?
Precisamos
é de não perder médicos, de evitar esta sangria de médicos acabados de formar
que vão para o estrangeiro, de minimizar os conflitos de interesse, de investir
na exclusividade. Por isso é que é importante o pagamento por desempenho, que é
o que inibe o médico de ir para o sector privado. Houve uma ocasião soberana
para fazer esta reforma, que foi a vinda da troika, mas perdeu-se esta
oportunidade.
Diz
ainda no seu último livro que há pessoas interessadas em derrubar o SNS que, ao
mesmo tempo, aparecem a defendê-lo? Quem são?
Há
pessoas que têm sempre o credo na boca, o SNS na boca, e, no fundo, acabam por
destruir qualquer hipótese de reforma. A minha vivência no SNS foi prova
directa disso. Mas não vou falar em nomes.
Quando
está doente, vai sempre ao SNS?
Sim,
sempre. Mas há uma excepção. Vou a um especialista de Dermatologia privado do Porto,
pago através do meu seguro de saúde de reformado do Parlamento Europeu.
O que
pensa da aplicação de taxas moderadoras no aborto?
É uma
insensatez enorme. É uma penalização de má consciência, fundamentalista.
Mas
chegou a considerar fazer isso no seu tempo. Não foi?
Cheguei
a considerar essa possibilidade, mas depois a DGS chamou-me a atenção dizendo
que fazia parte de um pacote global de assistência à saúde reprodutiva da
mulher. Não é igual a aborto, mas sim a luta contra aborto clandestino.
O que pensa
do recente acordo através do qual o Governo deu a oito misericórdias 125
milhões de euros nos próximo cinco anos para fazer consultas e cirurgias?
Feito
sem concurso, é complicado. Aliás, se o sector privado for a Bruxelas
queixar-se, ganha. Se as misericórdias intervêm nessa área fazem-no como actor
do mercado, têm que se submeter às regras públicas.
O que
está a fazer agora na política?
Não
tenho nenhuma ligação orgânica ao PS. Não estou a pensar em cargos no futuro.
Estou muito bem com a minha vida. Dou conferências e criei uma pequena empresa
de consultoria, mas até à data quase não tive clientes. Já vou tarde para me
meter no mundo dos negócios.
Escreveu, no início do ano, que o PS tinha que acordar? Acordou?
Acordar, acordou (risos), mas entretanto houve outros acontecimentos. A
maioria conseguiu capitalizar nas décimas. Quando se bate no fundo, para se
voltar à superfície, começa-se por ganhar uma décimas, só que eles
transformaram as décimas em unidades. A partir daí, tem sido a propaganda bem
organizada, uma tentativa de omissão do passado, um simplismo condenatório do
PS. [Do outro lado,] há todos os problemas ligados a uma liderança nova, uma
necessidade de substituir pessoas e ainda o caso José Sócrates. Mas é a
primeira vez que se apresenta um programa económico quantificado.
Disse que na Comissão Europeia não fomos capazes de bater o pé. Até
escreveu que os nossos governantes se portaram em Bruxelas como panhonhas.
Exactamente. Durão Barroso já passou à história e não ficou
provavelmente na história. Fiquei várias vezes envergonhado com ele, com as
suas mudanças de posição, quando a senhora Merkel dizia outra coisa... [De
resto,] os nossos governantes calaram-se. Nunca exigiram prolongamento [da
dívida] nem prazos mais confortáveis, nem juros mais baixos. O que se passa
agora é que, de acordo com as projecções do Governo, vamos chegar ao fim deste
ano ainda com um maior aumento da dívida pública e depois o Governo argumenta
que os juros vão baixar para menos de metade. Ninguém acredita.
O futuro ainda vai ser mais complicado?
A governação não vai ser fácil, porque estes sintomas de melhoria que
estão a ser fortemente amplificados pelo Governo podem não se concretizar.
Vamos ter muito provavelmente a sorte de o euro e o petróleo se manterem
baixos, mas ninguém sabe o que vem do cataclismo da China.
Não está preocupado com as últimas sondagens para as legislativas?
O PS está a lutar contra dois acumulados, mas fica muitos pontos acima
do PSD e muitíssimos pontos acima do CDS. Sendo o partido mais votado, a
coligação desfaz-se e o PS ficará uma espécie de king maker, sempre na situação
de controlar o jogo.
Caso o PS ganhe, acha possível um regresso ao bloco central?
Em teoria, o bloco central é sempre possível. Mas no passado isso foi
mais fácil do que será agora, porque neste momento os dois programas são muito
diferentes, o do PSD não é social-democrata, é da direita liberal, houve uma
deriva direitista do PSD, até mais para além do CDS, que tornou qualquer acordo
posterior mais difícil. O bloco central foi possível em 1983 porque havia duas
pessoas que se estimavam muito, tinham respeito mútuo, Mota Pinto e Mário
Soares.
O que pensa da candidatura de Maria de Belém à Presidência?
A doutora Maria Belém escolheu uma trajectória de colisão com o PS.
Escolheu o dia em que António Costa dava uma entrevista importante, sabendo que
iria retirar protagonismo a essa entrevista. E quem é que a apoia? São os
seguristas, os excluídos das listas parlamentares, depois mais uma ou outra
pessoa, o Manuel Alegre. Repare no regozijo da direita pelo seu aparecimento,
ficou tudo excitadíssimo. Mas não haja ilusões. Ela sabe bem que um grande
resultado eleitoral do PS representa a sua retirada e que um mau resultado do
PS representa mais um pouco de esperança para se manter até ao fim.
É possível que haja um partido que junte toda a esquerda?
António Costa tem grande qualidades de negociador, agora não sei se
consegue fazer isso. Não tenho uma bola de cristal.
Quantas vezes visitou Sócrates na prisão?
Três vezes. Da última, encontrei-o muito bem. Fisicamente melhor, antes
estava mais magro, mais nervoso. Desta vez, estava preocupado, emocionando-se
quando falava da família, lamentando, por exemplo, não ter podido acompanhar o
filho mais velho, que vai estudar para uma universidade no estrangeiro.
JP 23.08.15, Alexandra Campos
Lemos sempre com interesse as entrevistas de CC. Apesar deste trabalho menos conseguido (e das inúmeras gralhas do texto).
CC, arrisca um naipe alargado de ministeriáveis da Saúde (PS). Toda a gente sabe que, hoje em dia, qualquer palrador que regularmente apareça nos meios de comunicação social, é candidato a qualquer coisa.
Dívida da Saúde, 1,5 a 1,6 mil milhões de euros, contas feitas. Fora o resto.
Não percebemos a resposta sobre a livre escolha (certamente uma gralha do texto).
Ponto mais fraco: resposta de CC à acusação de ter sido o «grande responsável pela multiplicação das empresas de “tarefeiroso» (recurso a empresas de trabalho temporário para contratação de trabalho médico).
Mais perguntas incomodas (?): Se utiliza sempre o SNS e as visitas a Sócrates.
Governo, vaca leiteira: 125 milhões de euros dados às Misericórdias nos próximos cinco anos para fazer consultas e cirurgias. «Se o sector privado for a Bruxelas queixar-se, ganha.» Os privados, coitados, também têm direito.
Governo, vaca leiteira: 125 milhões de euros dados às Misericórdias nos próximos cinco anos para fazer consultas e cirurgias. «Se o sector privado for a Bruxelas queixar-se, ganha.» Os privados, coitados, também têm direito.
Maria de Belém, candidata a Belém: Muito bem. Só nos faltava agora, depois da Maria Cavaco Silva, uma presidenta "chá e bolos". Já nos bastou a Ana Jorge.
Etiquetas: CC, Crise e politica de saúde
1 Comments:
Afinal, precisamos ou não de mais médicos?
Precisamos é de não perder médicos, de evitar esta sangria de médicos acabados de formar que vão para o estrangeiro, de minimizar os conflitos de interesse, de investir na exclusividade. Por isso é que é importante o pagamento por desempenho, que é o que inibe o médico de ir para o sector privado. Houve uma ocasião soberana para fazer esta reforma, que foi a vinda da troika, mas perdeu-se esta oportunidade.
Muito haveria a comentar, pela positiva e negativa, da entrevista dada por Correia de Campos. Por razões que sempre me inquietaram, a da aparente vontade mas total incapacidade de separar sectores investindo, nomeadamente, no trabalho em exclusividade no SNS, destaco este ponto.
Em boa verdade CC pouco fez por isso, o que fez foi precisamente o oposto ao dar o pontapé de saída para as parcerias público-privadas. Pelos vistos faltou-lhe a mão pesada da troika para pôr ordem nos conflitos de interesses.
Mas, admitindo que águas passadas não movem moinhos, passemos em revista o que de mais específico dizem os programas dos quatro principais partidos em matéria do trabalho em exclusividade no SNS.
Coligação PSD/CDS
O compromisso de garantir um SNS plenamente regulado, assegurando uma total transparência entre setores prestadores, sejam eles públicos, privados ou do setor social.
PS
Evolução progressiva para a separação dos setores através da criação de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas no SNS;
PCP
Reforço da capacidade do SNS através da alocação dos recursos humanos, técnicos e financeiros adequados, para alcançar objectivos concretos de redução do tempo de espera no acesso aos cuidados de saúde, assim como para exames e tratamentos, de forma a assegurar cuidados de saúde de qualidade, com segurança e em tempo útil.
Contratação dos profissionais de saúde em falta através de vínculo público de nomeação em lugar do quadro para os serviços de saúde, combatendo todas as formas de precariedade.
Integração de todos os profissionais com contratos individuais de trabalho em contactos de funções públicas, inseridos numa carreira com vínculo público.
BE
Novo estatuto do profissional do SNS centrado na revalorização salarial, no regime de exclusividade, na estabilidade profissional, no respeito pela carreira, na diferenciação técnica e na revisão das condições para a reforma antecipada e do regime de trabalho nas urgências.
Nota final: As minhas desculpas aos Partidos se pequei por omissão.
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