Doi-me Portugal
O poema de
António Machado “Espanolito” é como
muitos poemas seus, intraduzível. Eugénio de Andrade dava os poemas de Antonio
Machado como exemplo da impossibilidade, no caso da poesia, de encontrar noutra
língua, não as palavras certas, o que ainda era possível, mas a “música” do
poema, o modo como fluía o som dessas palavras. Por isso, aqui vai no original:
Ya hay un español que quiere
vivir y a vivir empieza,
entre una España que muere
y otra España que bosteza.
Españolito que vienes
al mundo te guarde Dios.
una de las dos Españas
ha de helarte el corazón.
É um poema
sinistro tanto quanto pode ser um poema. Estamos a caminho da ferocidade da
guerra civil espanhola: “uma das duas Espanhas / há-de gelarte o coração”. Não
é hipotético, é certo. Morrerás em breve por uma ou por outra dessas “duas
Espanhas”. Como Machado, enterrado junto da Espanha mas do lado francês, para
onde fugiu quando a guerra estava perdida para a República.
O tema das
“duas Espanhas” é muito antigo e não é alheio também ao pensamento português
contemporâneo desde o século XIX. A ideia de que há “dois Portugais” também por
cá circulou, mas sem a dramaticidade e a fronteira talhada à faca, com que
existiu em Espanha. Houve sempre por cá mais mistura, mesmo nos momentos em que
“um Portugal” defrontou o “outro”, nas lutas liberais, na República e na longa
ditadura que preencheu metade do século XX português. A essa mistura Salazar
chamava a “brandura dos nossos costumes”, uma enorme mentira em que os
poderosos desejam acreditar e nem ele acreditava. Também ele era capaz de, com
o seu enorme cinismo, agradecer aos portugueses terem sido tão “pacíficos”
durante a crise.
Hoje, “dois Portugais” existem e vão a eleições. Um
está à vista todos os dias, outro tornou-se invisível, mas está cá. Como é que é possível ele ter desaparecido de modo
tão conveniente neste ano eleitoral? É conspiração dos media, é censura
induzida, é habilidade de um dos “Portugais”, é apatia, resignação do outro
“Portugal”, é incapacidade do sistema político representar ambos, ou só um, é o
efeito daquilo que os marxistas chamavam “ideologia dominante”? É, porque já
não há dois, mas apenas um só, e este é o Portugal feliz, redimido dos seus
vícios passados, empreendedor, cheio de esperança no futuro, deixando a “crise”
para trás, virado para o “Portugal para a frente”? É tudo junto, menos a última
razão.
Um dos “Portugais” está de facto invisível nestas
eleições. Quem devia falar por ele, não fala e quem fala não é ouvido. Criou-se uma barreira de silêncio onde apenas se
ouve a propaganda. Vejam-se as miraculosas estatísticas. Começa porque há as
estatísticas de primeira e as de segunda, as que valem tudo e as que não valem
nada. As “económicas” são de primeira, as “sociais” são de segunda. Das
primeiras fala-se, as segundas ocultam-se.
As estatísticas
“da recuperação económica”, escolhidas a dedo e trabalhadas a dedo, são
comparadas com os anos que mais convém, umas vezes 2000, outras 2008, outras
2010, outras 2011, outras 2012, outras 2013, etc.. Todas a subir, pouco mas a
subir, com “tendência” para subir. Os “do contra” ainda dizem que são tão
milimétricas essas subidas e tão condicionadas pelo bater no fundo, tão longe
do que seria necessário, tão dependentes de factores externos, que, ao mais
pequeno abanão, o castelo de cartas ruirá. Como, para não ir mais longe, se vê
com a venda do Novo Banco, o “bom”. (Embora suspeite que mesmo a pior das
vendas vai ser apresentada como um excelente resultado, comparada com qualquer
hipotética operação mais ruinosa, que “poderia ter acontecido”, mas nunca
existiu. É uma das técnicas habituais apresentar sempre o mal como o mal
menor.)
Quem é que
quer saber, destes pequenos incidentes? Até às eleições servem bem, no dia
seguinte, se os seus criativos autores ganharem, voltam a ler com toda a
atenção os relatórios do FMI para justificar a continuação da austeridade.
Ver-se-á como o défice vai subir, vai-se ver como as coisas são piores do que
se apresentou neste ano eleitoral, mas já é passado, não conta.
Há mais de um milhão de desempregados, “desencorajados”,
desempregados de longa duração que desapareceram das estatísticas, falsos
estagiários, e pessoas que só não estão nas listas do desemprego porque
emigraram. Porque queriam? Não. Porque não
tinham alternativa e ainda faziam parte daqueles que podiam emigrar. Se estão
felizes é por mérito da Suíça, da Grã-Bretanha, da Alemanha, da França e das
competências e conhecimentos que ganharam em Portugal, imperfeitos que fossem,
antes de 2008. O Portugal que lhe deu essas competências também já está a
encolher, a acabar. Estamos a falar de várias centenas de milhares de pessoas.
É muito português.
Voltemos aos
desempregados que, ó céus!, também não deixaram de existir. São muitas centenas
de milhares de pessoas, à volta de um milhão se somarmos, como devemos somar,
várias parcelas de pessoas que não tem emprego. Não é sequer emprego sem
direitos, é que não tem emprego. Ponto. Por muita imaginação que se possa ter,
é suposto que não estejam felizes com a sua vida. Nem eles, nem as suas
famílias. É muito português.
Depois, mais um número que se sobrepõe aos outros, uma
em cada cinco pessoas é pobre, dois milhões de portugueses. Onde estão eles que
não se vêem? Depois de
uma overdose pontual de miséria nos anos mais agudos da crise, desapareceram as
pessoas que vivem mal de Portugal. Não são boa televisão a não ser como “casos
humanos” extremos — a idosa sem pleno uso das suas faculdades mentais que vive
imersa na sujidade e na miséria mais extrema numa casa sem vidros, nem água,
nem luz - e não é disso que estou a falar. Estou a falar da pobreza que é
estrutural, da que recuou dez anos para trás, mas que, neste recuo enorme em
termos sociais, perdeu qualquer esperança, aquela que ainda podiam ter no
início da década de 2000.
E aqueles a
quem cortaram a magra pensão na velhice e a reforma com que pensavam viver os
últimos anos, também estão felizes, a aplaudir o PAF? E aqueles que não eram
pobres ou tinham deixado de ser pobres depois do 25 de Abril e que agora estão
a escorregar para esse “estado” de que já não vão sair até morrerem? Estão
felizes e contentes, perdido o emprego, a pequena empresa, o carro, a casa?
Sim, as estatísticas de segunda, as sociais, revelam as penhoras, as
devoluções, as humilhações, o esconder de uma vida sem esperança, ou seja
desesperança. É muito português.
O discurso oficial, o do “outro” Portugal, diz que
tudo isto é “miserabilismo”. Diz-nos que apenas o crescimento da “economia”,
daquilo que eles chamam “economia”, pode resolver as malditas estatísticas
“sociais”. Outra conveniente ilusão, porque, a
não haver mecanismos de distribuição, a não haver equilíbrio nas relações
laborais, a não haver reforço dos mecanismos sociais do estado — tudo
profundamente afectado pela parte do programa da troika que eles cumpriram com
mais vigor e rapidez — o “crescimento” de que falam tem apenas um efeito:
agravar as desigualdades sociais. Como se vê.
No grosso
das notícias, ministros e secretários de estado pavoneiam-se com grupos de
empresários em posição de vénia, por feiras, colóquios dos jornais económicos,
encontros liofilizados para que não haja o mínimo risco e, quando abrem a boca,
é apenas para fazer propaganda eleitoral, a mais enganadora da qual se faz
falando do “estado” redentor do país que agora já “pode mudar”. Eles falam do lado do poder, do poder que
aparece nas listas dos jornais económicos, os novos “donos disto tudo”,
chineses, angolanos, profissionais das “jotas” alcandorados a governantes,
advogados de negócios e facilitadores, gestores, empresários de sucesso, a nova
elite que deve envergonhar a mais velha gente do dinheiro, que o fez de outra
maneira. O “outro” Portugal, o que é tão visível que até cega, com todas as
cores, luzes a laser, aplausos de casting, feérico e feliz.
Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros.
Conheço-os bem de mais. Não gostam dos de “baixo”. Acham que eles são feios,
porcos e maus. Querem receber sem trabalhar. Querem viver á custa dos outros,
deles. Se estão pobres é porque a culpa é sua. Se estão desempregados é porque não
sabem trabalhar. Se se lamentam da sua sorte, são piegas. Deviam amochar
disciplinadamente para serem bons portugueses. Não. “Há-de gelar-te o coração”.
Direi pois,
como o velho Unamuno, “me duele España”, dói-me Portugal.
José Pacheco Pereira, JP 05.09.15
Um texto
notável de JPP.
A crise foi
pretexto. Para a criação deste Portugal
sem esperança. Invisível. Onde «Quem devia falar por ele, não fala e quem
fala não é ouvido.
Este estado
de coisas não deixará de ter fortes implicações no resultado das próximas eleições.
A tragédia do desemprego, jovens sem
emprego, jovens licenciados obrigados a emigrar, estado social em risco, não constituirão, certamente, temas centrais da próxima
campanha. Nem haverá gente com a capacidade e energia necessária para falar deste Portugal invisível.
Basta ver a
confragedora pré campanha do PS e António Costa.
Etiquetas: bater no fundo
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