SA´s em avaliação
1. - Quando está em curso a avaliação dos Hospitais SA, efectuada por uma Comissão especial nomeada pelo ministro Correia de Campos, achamos oportuno trazer de novo ao SaudeSA o excelente artigo do enorme jornalista Edgar Correia, publicado no Jornal de Notícias de 14 Janeiro 2004.
As medidas de gestão propostas pela Administração do Centro Hospitalar do Alto Minho,SA, ilustrativas do fervor reformista que se vivia na altura, não ocorreram há muito. Luís Filipe Pereira já é passado e os portugueses esqueceram, entretanto, as angústias por que passaram naquele período de governação.
2. - A iniciativa de um hospital público - o Centro Hospitalar do Alto Minho - de contratualizar a prestação de "um atendimento mais atempado, célere e personalizado" aos clientes das companhias de seguros, criando para eles uma área autónoma, a "consulta de seguros", que evite que sejam "atirados para as listas de espera", como afirmou o presidente da sua Administração, Dr. Fernando Marques, constitui um verdadeiro escândalo nacional.
Na realidade, isto significa a criação, em serviços públicos de saúde construídos, equipados e financiados através dos impostos pagos por todos os portugueses, de um atendimento de 1ª classe, destinado aos clientes das seguradoras, com a consequente discriminação para o atendimento geral, para a 2ª classe, da generalidade dos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Questionado pela comunicação social sobre esta ocorrência, o ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, afirmou não ver qualquer inconveniente no estabelecimento de acordos com as seguradoras por parte dos hospitais públicos, procurando lançar a confusão relativamente a duas situações inteiramente distintas: a celebração de acordos para cobrança de serviços hospitalares prestados às seguradoras; e a prestação, aos clientes dessas seguradoras, de melhores cuidados de saúde do que à generalidade dos utentes, o tal "atendimento mais atempado, célere e personalizado" a que se referiu o responsável pelo Centro Hospitalar do Alto Minho.
A situação de um hospital público começar a fazer negócio com a prestação de cuidados de saúde, ocupando-se melhor e com mais celeridade de um doente pelo facto de ele estar coberto por uma seguradora ou, no futuro e dentro da mesma lógica, de ele pagar directamente essa melhoria de atendimento, constitui uma consequência directa da política de saúde que tem vindo a ser seguida pelo actual Governo. E ilustra de forma esclarecedora que a adopção por hospitais públicos da forma de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, mais do que visar uma gestão racional dos recursos e das despesas, o que pretende de facto é incentivar, em ambiente de crescente subfinanciamento público, a mercantilização da prestação de cuidados de saúde.
Estabelece a Constituição da República, no seu artigo 64º, nomeadamente, que "todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover", que "o direito à protecção da saúde é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral" e que para o assegurar "incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação".
Não podendo o Governo e quem por ele é nomeado desconhecer a lei fundamental do país e muito menos agir contra princípios por ela estabelecidos, os cidadãos vêem-se assim confrontados com a necessidade de exprimir a sua indignação e de impor o respeito pelos seus direitos.
Numa altura em que se acentua a desfiguração dos serviços públicos de saúde através de diversas modalidades privatizadoras, mas em que os portugueses vão também celebrar o 25º aniversário do Serviço Nacional de Saúde, instrumento de notáveis progressos no domínio social e uma das suas mais importantes conquistas de cidadania, há todas as razões - e todas as condições - para travar e ganhar uma batalha cívica e política fundamental em torno da efectiva garantia do direito à protecção da saúde. É isso que os cidadãos vêm também exprimindo quando manifestam a necessidade de serem retomados e aprofundados os propósitos democratizadores do 25 de Abril.
Por EDGAR CORREIA
in JN, 12 de Janeiro de 2004 .
Na realidade, isto significa a criação, em serviços públicos de saúde construídos, equipados e financiados através dos impostos pagos por todos os portugueses, de um atendimento de 1ª classe, destinado aos clientes das seguradoras, com a consequente discriminação para o atendimento geral, para a 2ª classe, da generalidade dos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Questionado pela comunicação social sobre esta ocorrência, o ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, afirmou não ver qualquer inconveniente no estabelecimento de acordos com as seguradoras por parte dos hospitais públicos, procurando lançar a confusão relativamente a duas situações inteiramente distintas: a celebração de acordos para cobrança de serviços hospitalares prestados às seguradoras; e a prestação, aos clientes dessas seguradoras, de melhores cuidados de saúde do que à generalidade dos utentes, o tal "atendimento mais atempado, célere e personalizado" a que se referiu o responsável pelo Centro Hospitalar do Alto Minho.
A situação de um hospital público começar a fazer negócio com a prestação de cuidados de saúde, ocupando-se melhor e com mais celeridade de um doente pelo facto de ele estar coberto por uma seguradora ou, no futuro e dentro da mesma lógica, de ele pagar directamente essa melhoria de atendimento, constitui uma consequência directa da política de saúde que tem vindo a ser seguida pelo actual Governo. E ilustra de forma esclarecedora que a adopção por hospitais públicos da forma de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, mais do que visar uma gestão racional dos recursos e das despesas, o que pretende de facto é incentivar, em ambiente de crescente subfinanciamento público, a mercantilização da prestação de cuidados de saúde.
Estabelece a Constituição da República, no seu artigo 64º, nomeadamente, que "todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover", que "o direito à protecção da saúde é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral" e que para o assegurar "incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação".
Não podendo o Governo e quem por ele é nomeado desconhecer a lei fundamental do país e muito menos agir contra princípios por ela estabelecidos, os cidadãos vêem-se assim confrontados com a necessidade de exprimir a sua indignação e de impor o respeito pelos seus direitos.
Numa altura em que se acentua a desfiguração dos serviços públicos de saúde através de diversas modalidades privatizadoras, mas em que os portugueses vão também celebrar o 25º aniversário do Serviço Nacional de Saúde, instrumento de notáveis progressos no domínio social e uma das suas mais importantes conquistas de cidadania, há todas as razões - e todas as condições - para travar e ganhar uma batalha cívica e política fundamental em torno da efectiva garantia do direito à protecção da saúde. É isso que os cidadãos vêm também exprimindo quando manifestam a necessidade de serem retomados e aprofundados os propósitos democratizadores do 25 de Abril.
Por EDGAR CORREIA
in JN, 12 de Janeiro de 2004 .
5 Comments:
A ideia chegou a ser concretizada?
Recordo-me de várias interpretações, na altura, sobre o tema, desde voluntarismo inconsequente da administração em causa até ser "balão de ensaio", para testar a reacção pública. Independentemente de qual interpretação se queira atribuir, há duas questões interessantes nesse episódio.
A primeira, qual o tipo de diferenças no acesso que se está disposto a admitir, e se depende da instituição que pratica essas diferenças. Se tivesse sido um hospital privado a tomar essa medida de gestão, provavelmente passaria sem ser notícia. Aliás, temos já essa diferença quando um cidadão se dirige ao Hospital do SAMS: só é atendido se for bancário ou se tiver um sistema de seguro (para além do SNS) que tenha acordo com o SAMS. Porquê então a reacção? Há um efeito psicológico/ideológico - acha-se que tal diferenciação não deve existir num prestador financiado quase exclusivamente por fundos públicos. Só que então se deveria também questionar em igual terreno a prática de medicina privada nos hospitais públicos. Há também um efeito de funcionamento, de eficiência - se houver capacidade e recursos disponíveis, então a medida não afecta o atendimento de quem só vai pelo SNS, não haveria razão para impedir excepto por razões ideológicas. Mas se houver listas de espera ou qualquer outra manifestação de restrição de capacidade (demora no atendimento para urgência, por exemplo), então o atendimento mais célere a uns tem que ser feito à custa de outros, o que implica um julgamento de valor sobre quem deve ter prioridade no atendimento que está ao arrepio do admitido em serviço público.
A segunda questão, menos debatida, é saber quais os limites da liberdade de gestão para as administrações dos hospitais. Podem, ou devem, as administrações de diferentes hospitais terem diferentes medidas e soluções nos processos de admissão dos doentes, por exemplo (era este o aspecto em causa no artigo que motivou o post)? Desta forma genérica, é fácil dar uma resposta positiva - sim, porque permite uma melhor adaptação do hospital às características da população local. Mas é igualmente fácil dar uma resposta negativa - não, porque cria desigualdades entre zonas do país. E se a resposta for positiva, onde termina essa liberdade de actuação? Não sendo claros os limites, de vez em quando haverá situações que os excedem, quase como que um teste involuntário à sua presença (bem, não será de excluir que por vezes também seja voluntário, claro). Com a liberdade de gestão virá também a ocorrência, de tempos a tempos, de situações que serão consideradas "excessivas". Haverá que ter o cuidado de as corrigir sem que com isso se deite fora todas as outras situações em que se essa liberdade de gestão se revelou frutuosa. Creio que não ouvi ninguém defender a criação de um manual de procedimentos elaborado no Ministério para definir de forma idêntica para todos os hospitais as regras a seguir.
Se o objectivo da imposição de regras comerciais à gestão dos hospitais for a responsabilização pelas derrapagens financeiras, organizativas e qualitativas, a necessidade de mudança parece cada vez mais unânime. Seja para sociedades anónimas, entidades públicas empresariais ou público-privadas
As denúncias de selecção adversas são o maior risco da implementação da competitividade na gestão de unidades públicas. As patologias mais complicadas, isto é, mais caras, são pouco apetecíveis. Os doentes trazidos pelas seguradoras, que pagam mais prontamente do que o Estado, podem ser bem mais atraentes...
EC
Agradecemos os excelentes comentários do Avelino e do colega anónimo.
1. -O aBelino entende que o problema fundamental reside no sistema de financiamento. A desmotivação da criação de linhas de acesso privilegiadas a determinados doentes resultaria naturalmente da mudança do actual sistema de financiamento, por passar a não haver motivação para a sua criação (fazer mais receita).
O subfinanciamento constitui um dos mais graves problema da gestão dos hospitais. Os preços contratualizados não são muitas vezes suficientes para cobrir os custos das prestações realizadas por unidades a funcionar com razoável nível de eficência.
A apresentação da factura discriminada por episódio de internamento seria uma boa medida para os hospitais mas contribuiria, por certo, para a elevação dos gastos do SNS por motivar o consumo excessivo de recursos.
2. – O segundo comentário é muito interessante.
Penso que o problema do atendimento de doentes nos Hospitais do SNS deverá ser analisado sempre segundo o pressuposto de uma situação de constrangimento permanente de recursos e que priorizar doentes (que não seja determinada por razões especiais de ordem técnica em função da patogia, especialidade e dos recursos disponíveis), será sempre injusta por implicar o agravamento dos sacrifícios para os restantes doentes.
Penso que as administrações dos hospitais deverão procurar novas soluções com o objectivo de melhorar o atendimento, adaptando-o, o melhor possível, às condições de exploração da região onde estão inseridos.
Conheço casos em que as administrações dos hospitais estabeleceram acordos com empresas indústriais privadas da zona para o atendimento dos seus doentes, contribuindo com o fornecimento de meios (ambulâncias e equipamento médico) de forma a proporcionar um mais rapido e eficaz atendimento. A eventualidade da ocorrência de muitos doentes queimados levou por exemplo determinados hospitais da rede do SNS a desenvolver medidas com o objectivo de melhorar o atendimento destes doentes (compra de material específico de transporte e tratamento, melhoria do heliporto, sistema de comunicações).
A aplicação de recursos na melhoria desta linha especial de atendimento implicou, necessáriamente, o desvio de recursos que poderiam ser aplicados noutros pontos do atendimento. Trata-se, no entanto, duma opção legitima da administração de um hospital do SNS.
O elemento aferidor da procura de novas soluções enquadráveis no actual modelo deverá ser a melhoria dos cuidados à generalidade dos doentes (SNS, seguradoras, subsistemas).
A melhoria do atendimento destinada a um tipo diferenciado de doentes, determinada por um vínculo comercial estabelecido pela administração de qualquer hospital do SNS, parece não se enquadrar nos objectivos e espírito do actual modelo de SNS.
3. –Sabemos que o problema de fundo reside na contradição entre o modelo de SNS e a capacidade da nossa economia em assegurar o seu financiamento.
A necessidade de mudança para um modelo de cuidados de saúde, menos dispendioso, parece inevitável. Este processo é o palco ideal para a confluência das necessárias discussões técnicas e ideológicas.
Como sempre caro Avelino, os seus pontos de vista são claros e consisos.
De facto a máxima ou mínima": A saúde não tem preço", tem e é caro.
1. - Um agradecimento para os autores dos dois primeiros comentários.
2. - A empresarialização dos hospitais tem por objectivo obter o controlo dos custos através de uma gestão mais eficiente dos meios.
Há os que consideram que este objectivo só é exequível através da gestão privada dos hospitais.
Mantendo o estado como prestador a introdução de regras de exploração empresarial poderá ser a forma de conseguir os mesmos objectivos, segundo outros.
A selecção adversas constitui o maior risco da implementação da competitividade na gestão de unidades públicas.
Dar preferência aos doentes das seguradoras porque pagam mais prontamente constituiu uma das primeiras iniciativas dos hospitais SA.
A selecção dos doentes em função das patologias, tentando encaminhar os doentes com patologias mais pesadas para as unidades do SPA foi outro dos procedimentos praticados pelos SA´s de molde a reduzir as despesas de exploração.
Durante o processo foram efectuadas várias denúncias acerca das indicações dadas pelas administrações para restrição da prescrição de meios auxiliares de diagnóstico, medicamentos, para a efectuação de cortes cegos de material de consumo imprescindível para a prestação de cuidados, para a alteração dos métodos de registo da actividade, etc.
Esta gestão orientada quase exclusivamente para os objectivos de carácter quantitativo, para lá dos episódios tristemente caricatos, implicou uma redução da qualidade dos cuidados.
3. - O êxito do processo de empresarialização dependerá da capacidade de introdução de competitividade no sistema evitando as medidas voluntaristas e caricatas com as do CHA Minho.
Se esta política falhar,será necessário discutir como suprir a falta de meios da forma mais justa possível, de forma a não aprofundar as desigualdades já existentes, o que significará a alteração do modelo de saúde.
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