domingo, abril 2

Cuidados de Proximidade e Urgências (II)

Missão cuidados saude primários

2ª parte: Cuidados de proximidade e urgência

1. O principal, primeiro – Cuidados Primários
1.1. Papel e importância
Os CP desempenham um papel chave para a eficácia do sistema traduzido em:
a) Avaliação e triagem de situações: verdadeira doença? tratamento local ou noutro nível de cuidados?
b) Cuidados (imediatos e próximos): tratamento e acompanhamento (local ou noutros níveis de cuidados, ex. cuidados leves) incluindo garantir continuidade de cuidados e gerir a informação relevante;
c) Defesa da saúde pública: prevenção da doença e promoção da saúde da população;
d) Apoio familiar: ligação dos diversos tipos de cuidados (ex. sociais e de saúde), protecção contra uso inapropriado e sobreconsumo de cuidados (e seus perigos); facilitando o acesso a aconselhamento telefónico e a cuidados no domicílio; integrando os cuidados no contexto e história familiar;
e) Educação e treino: educação para a saúde, mudar hábitos e estilos de vida; treino do doente e/ou da família para actuarem como prestadores ou cuidadores;
f) Coordenação de cuidados (entre diferentes disciplinas e serviços, recolhendo e prestando informação) com aconselhamento e orientação quanto ao local e timing de cuidados de especialista (agente).
Da eficácia de actuação dos CP resultará: i) Melhor saúde (prevenção, detecção precoce e tratamento apropriado, qualidade de vida com doença); ii) Maior equidade (geográfica, intergrupos e classes); iii) Maior eficiência macroeconómica (melhor uso global dos recursos disponíveis); iv) Melhor qualidade e apropriação nos níveis mais diferenciados (concentração no raro e difícil, divisão coordenada de papeis, desenvolvimento de mecanismos e instrumentos conjuntos).
Infelizmente a situação em Portugal caracteriza-se por vários problemas e suas consequências:
Os problemas principais nesta área justificam a prioridade da reforma já anunciada (USF): i) Elevado nº de pessoas sem médico de família atribuído; ii) Inexistência de atendimento telefónico, quase sem consulta domiciliária e áreas de cuidados não assegurados (saúde oral, rastreios de ORL e oftalmologia); iii) Baixo nº global de actos programados (consultas, prevenção e educação) à população coberta, registando-se variações acentuadas de frequência; iv) Tendência para “SAPização”, recurso excessivo aos SU hospitalares e não responsabilização dos MF; v) Não se garante a coordenação e continuidade de cuidados; vi) Baixa produtividade e reduzida motivação dos profissionais.
Os efeitos/consequências mais visíveis são: i) Dificuldade de acesso a cuidados programados e sobreacesso em urgência, gera resultados pobres (equidade, eficiência, qualidade e eficácia); ii) Fragmentação de cuidados e inexistência de resposta clinicamente organizada à doença crónica e aos problemas específicos dos idosos e da população dependente; iii) Duplicação frequente de atendimentos e prescrições dentro do sistema; iv) Recurso significativo ao sector privado (mesmo o indesejado e o que se direcciona para os próprios MF); v) Insuficiência global de resposta em CP: comparando com GB parece haver, em 2004, falta de 7,7 milhões de consultas (GB: 4 CE/hab., Portugal cf. IGIF: 3,2 seja necessidade de +24%); vi) Peso exagerado da urgência hospitalar no sistema, com ameaças frequentes de ruptura e sobrecusto para o hospital e para a comunidade; vii) Baixa eficiência global de uso de recursos em saúde; viii) Insatisfação geral (doentes, comunidade, profissionais, tutela); ix)...
1.2. Porque não aumentar o recurso a especialistas e à hospitalização (tipo ADSE)?
O recurso não justificado (clinicamente) a especialistas e à urgência gera consequências negativas:
a) No sistema de saúde e seus serviços:
i) Sistema de saúde: aumento da despesa global (actos, transportes, tempo); perda da aprendizagem que resultaria da coordenação por CP e da detenção da informação sobre o doente no MF; fragmentação de cuidados; menor equidade económica e geográfica; resultados pobres em saúde e satisfação;
ii) Serviços diferenciados: desvio dos fins, com redução da produção apropriada e dilacção do atendimento; aumento de actos duplicados ou desnecessários; tendência para crescimento injustificado dos serviços, consumindo recursos que faltarão noutros níveis de cuidados;
iii) Nos CP: perda dos benefícios derivados da coordenação de cuidados (em conhecimento, desenvolvimento de instrumentos conjuntos); menor produção resulta em baixa eficiência; impossibilidade de fazer gestão da doença crónica; não responsabilização dos MF.
b) Na população: aumento de actos e prescrições muito diferenciadas e agressivas (com os riscos inerentes); custos envolvidos para o doente; dependência total da escolha que for feita pelos especialistas (tipo e quantidade de actos, prestador); especialistas atendem apenas aos aspectos relacionados com o epsiódio de doença (donde perda dos benefícios por prevenção e educação/treino pelos CP).
Para além destes aspectos negativos perdem-se os benefícios já apontados pelo recurso primeiro aos CP, em especial dos que derivam da prevenção e educação, da coordenação e continuidade de cuidados, da consideração da história anterior do doente e da sua inserção no ambiente familiar.
Aliás Starfied demonstrou que pos países com CP fortes apresentavam melhores resultados medidos em: i) mortalidade (mortes evitáveis por tratamento prematuro e mortalidade neonatal e pós-neonatal); ii) eficiência global.
1.3. Mudar os peixes ou a água?
Assim é necessário mudar profundamente o funcionamento dos CP, sendo que o que está anunciado e em preparação (USF) deve ser rapidamente implementado – é mais importante mudar o ambiente e a organização que os actores. Acrescentaria apenas algumas notas soltas:
a) Sistemas de gestão: o SNS deve promover um rápido e significativo investimento em TIC (infraestruturas, software, manutenção) garantindo a integração plena da informnação relativa ao doente. Idem no que respeita aos seguintes sistemas: qualidade; monitorização e avaliação (da gestão e da saúde); formação;
b) Enquadramento e estrutura de gestão? Considera-se que a gestão tem aqui um papel limitado pelo que se deveria promover: i) desenvolvimento de líderes clínicos locais, acumulando com funções administrativas; ii) reconfiguração dos actuais CS, alargando substancialmente o seu âmbito e concentrando em USF (menos extensões); iii) constituindo serviços comuns aos CS (administrativos e financeiros, apoio geral, técnico-médicos, qualidade);
c) Descentralização e papel das autarquias: os CP têm com USF âmbito local (não ultrapassa o concelho), pelo que será de reequacionar os papeis a desempenhar pelo MS e pelas Câmaras. Não repugnaria que:
i) A propriedade e manutenção das instalações e equipamentos passasse para as Autarquias, que teriam ainda um papel na gestão dos recursos humanos (salvo pessoal técnico?);
ii) O SNS garantisse os requisitos e aspectos técnicos (recursos, processo de produção, monitorização e avaliação) e financiasse a produção normal;
iii) Seria aceitável que a CM possa financiar uma disponibilidade acrescida (para além do previsto pelo SNS), desde que não comprometa a actividade programada. De facto o custo de oportunidade por atendimento reduzido em SAP (22-08HH) é muito elevado traduzindo-se num nº muito elevado de CE programadas que deixam de se fazer – logo menor acesso e pior qualidade de resposta (também maior custo).
d) Gestão e ritmo da mudança: as consequências da situação actual aconselham que após a fase experimental (até ao fim de 2006) se siga, sem mais delongas ou cautelas, a generalização do modelo.

2. Outros cuidados de proximidade
2.1. Cuidados leves, paliativos, crónicos
Os designados cuidados continuados foram correctamente definidos e reposicionados (na grande maioria são cuidados sociais) e as abordagens para o seu financiamento pela Segurança Social e pelas verbas do jogo fazem sentido. Passar para o terreno logo que esteja completo o edifício legislativo – clarificar o sistema de qualidade, o sistema de avaliação, o financiamento (envolver a família e o doente é obrigatório); garantia de coordenação e continuidade de cuidados; separação de gestão relativamente à saúde; contractualização com entidades da área social e privada, mais que públicas.
2.2. Transporte e apoio urgente pré-hospitalar
Parece necessário: concentrar e responsabilizar pelo “core” (emergência médica pré-hospitalar); rever o papel dos diversos agentes envolvidos; melhorar a coordenação de esforços com os hospitais e outros serviços de saúde; melhorar a disponibilidade e eficácia (mormente em áreas “vítimas” de acções de racionalização da rede).
2.3. Hospitais de proximidade?
Relativamente aos hospitais de reduzida dimensão (à volta de 100 camas) defende-se a tranformação seguinte:
a) Por excepção a sua integração em centros e grupos hospitalares;
b) Por regra a devolução aos proprietários com possibilidade de contratualização nalgumas das funções:
i) Cuidados continuados (média e longa recuperação, crónicos e paliativos);
ii) Cuidados de geriatria e recuperação funcional;
iii) Apoio diagnóstico (CE e MCDT) e actos específicos (ex. MFR e hemodiálise);
iv) Hospitalização parcial (hospital de dia e cirugia de ambulatório) e apoio domiciliário;
v) Atendimento permanente;
vi) Hospitalização aguda em regime livre.
Nota: a implementação desta proposta pressupõe um esforço significativo de investimento para qualificação e rentabilização dos HH que permaneçam na rede hosptalar.

3. OPA sobre os “Bancos”
3.1. “Bancos” florescentes
Os países menos desenvolvidos exibem graves problemas de organização e gestão de serviços de saúde pelo que frequentemente o escape e acesso principal para muitos grupos desfavorecidos se faz nos designados “bancos”. Foi o que se passou entre nós até à criação do SNS – depois ainda aumentou, de modo descrontrolado e para todas as classes, suportado em deficiente funcionamento dos CP, na permissividade quanto ao acesso e em tendência hospitalocêntrica.
Os números confirmam a aberração: em 2004 houve para cima de 6,2 milhões atendimentos nos SU hospitalares (IGIF), para além de mais de 5 milhões de atendimentos em SAP nos CS!.
Note-se que o SU tem todas as condições para que continue (aumente ainda!) o acesso inapropriado: é gratuito ou quase; oferece serviço integrado e resposta global (CE, MCDT, acesso internamento,..); tem qualidade e diferenciação (especialistas). Porém o seu crescimento descontrolado gera consequências nefastas para o sistema, destacamos:
a) Custo de oportunidade muito elevado: medido em muitos milhares de actos programados que não se fazem (CE, MCD e operações, HD), em angústia, sofrimento e desconforto desnecessário;
b) Custo directo elevado: nº de profissionais (das várias profissões e especialidades) e seu custo/hora; gasto inapropriado de MCDT e medicamentos; gasto noutros materiais e fornecimentos; tratamento inapropriado (ex.s substituição de CE, doentes em OBS sem necessidade ou substituindo actos de HD que não há);
c) Outros efeitos na actividade hospitalar: sabe-se da gestão em geral que da programação de um serviço resultam benefícios substanciais em eficiência, tempo de resposta, qualidade e satisfação. Também é pacífico que uma das dificuldades acrescidas da gestão de hospitais (face às empresas) resulta da imprevisibilidade de parte substancial da sua procura. Ora quando se verifica um afluxo como o actual aos SU em Portugal todo o hospital sofre: % de casos não programados aumenta nos MCDT e no internamento, daí maior gasto, confusão e indisciplina. Especificamente no internamento tudo piora: i) doentes são internados sem diagnóstico definitivo, donde muitos erros e admissões falhadas (ex. doentes internados em serviços cirúrgicos que têm alta sem operação é muito elevada), demora média é mais alta (mais camas são necessárias); a gestão de camas torna-se problemática e alguns cirurgiões adiam operações programadas por não terem garantia de cama para o doente; etc.
d) Disponibilidade de recursos em saúde: a plétora de profissionais envolvidos (justificada parcialmente pela procura) gera desperdício do seu uso no hospital mas, pior, provoca no restante sistema um efeito de buraco negro – sugando cada vez mais recursos qualificados (ex. médicos e enfermeiros) em detrimento doutros serviços. Daí a inversão completa da razão MF/médicos hospitalares e também a escassez artificial de profissionais de saúde;
e) Dificuldade de responsabilizar no sistema: profissionais, gestores e serviços hospitalares; doentes; etc.
Assim se comprrende que o Prof. Pedro Pita Barros tenha defendido, com tanta ênfase e num magnífico artigo postado neste blogue, a utilização de taxas moderadoras como instrumento facilitador de acesso apropriado – alguns, nos quais me incluo, consideram que o valor é ainda reduzido para ser eficaz.
3.2. Que fazer?
Concluída a disponibilização das condições mínimas em cuidados de proximidade e tendo em conta os efeitos nefastos que acabámos de referir impõe-se efectuar uma OPA aos “Bancos”: Ofensiva Para Arrumação dos “bancos”. Visa-se o término da actual situação terceiro-mundista, eliminando serviços que não se justificam e criando verdadeiras urgências/emergências, necessariamente concentradas, com todos os requisitos e recursos (em quantidade e qualidade), conforme as determinações técnicas e as opiniões dos peritos.
Então o acesso terá que processar-se de modo semelhante ao da GB, o que permitirá que a maioria dos nossos hospitais tenha um nº de atendimentos semelhante ao contabilizado nos seus congéneres ingleses (15 mil, não 150 mil).

Nota: gostaria de sublinhar a lição de classe e humildade com que o Dino_Sauro nos presenteou a propósito das maternidades e da necessidade de assegurar em primeiro a segurança e a qualidade (para o que algumas há muito deveriam ter sido encerradas).
Semmisericórdia

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2 Comments:

Blogger ricardo said...

Os sucessivos governos nunca pensaram estratégicamente, nunca decidiram em função do interesse nacional, nunca geriram nem souberam gerir, nunca planearam ou assumiram que modelo de sistema nacional de saúde queriam.
O resultado está à vista: desgoverno e desiquilíbrio do SNS e o consequente desajuste dos recursos, tanto financeiros como humanos.
Carlos Arroz
Finalmente há quem tenha a coragem, embora determinada pelo imperativo comunitário, de arrumar a casa.

11:11 da tarde  
Blogger saudepe said...

É fundamental que as decisões políticas sobre a reorganização da rede de cuidados do SNS seja fundamentada em estudos rigorosos e actualizados.

A dificuldade em encerrar serviços defrontar-se-à sempre com forte reacção das populações devidamente apoiadas pelos autarcas que jogam nestes confrontos a sua reeleição.

Entretanto a partir de hoje os utentes dos serviços de saúde públicos vão pagar taxas moderadoras mais elevadas (23% paqra as urgências).

Foi agravada a moderação antes de se reorganizar a rede de cuidados oferecendo melhores condições de atendimento, o que faz desconfiar os cidadãos de estarmos perante medidas que visam exclusivamente o controlo da despesa.

11:26 da tarde  

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