sábado, março 10

Ainda as Urgências




1. - Sempre atento, o Xavier brindou-nos em 28.02.2007 com o Post “Urgência à Portuguesa” no qual transcreve quase integralmente, o artigo de Domingos Amaral publicado na mesma data pelo DE link. É, sem dúvida, uma leitura interessante, ainda que, a avaliar pelos comentários suscitados no Saudesa, tenha passado quase despercebido. Conclui D.A.: “O drama português é, e será nas próximas décadas, este: as regras do euro - muito, mas não só elas, diria eu – conduzem à inevitabilidade de cortes profundos na despesa, e os cortes na despesa chocam frontalmente com a relação que os portugueses têm com o Estado e o que esperam dele. É um nó extremamente difícil de desatar, e que corre o risco de desgastar tremendamente a nossa democracia”. Feito o diagnóstico, D.A. não explicita a terapêutica, mas, implicitamente, quando, a abrir o seu artigo, afirma “Parar a fúria popular pode ser “ceder à rua”, mas também pode demonstrar inteligência, evitando um dominó de contestação ao Governo”, e ao referir que esta não é apenas culpa dos maus hábitos dos cidadãos, mas também do Estado, que não os soube dirigir para os centros de Saúde que os podiam atender, parece estar a prescrever uma receita de equilíbrio.
Os seres vivos dispõem de um “sistema” que, sendo de funcionamento reflexo, os equilibra e lhes proporciona estabilidade. Infelizmente não é assim para as decisões, incluindo as do SNS, onde o equilíbrio é também fundamental mas nem sempre se consegue e só pode ser atingido através de cuidada ponderação do seu conteúdo e das suas consequências e implicações, imediatas ou futuras.

2. - Já aqui deixei claro que a requalificação da RRU me parece uma medida globalmente positiva, no balanço entre pontos fortes e debilidades, mas não dispensava uma implementação ponderada. Deste ponto de vista, o da contestação suscitada, penso que o tema estará suficientemente glosado. Não assim no que respeita a outros aspectos, que considero omitidos no Saudesa ou insuficientemente abordados.

3. - O primeiro é uma questão de exigência de eficácia da rede reestruturada. A requalificação da RRU justifica-se em termos de necessidade e de prioridade, mesmo num SNS com problemas de sustentabilidade, exactamente porque visa fazer o possível nas situações mais graves, aquelas em que a vida humana está posta em risco. Actuar nestas situações é o mínimo exigível de qualquer SNS. Mantém-se o número de SUP (14) e as SUMC passarão a ser 27, acrescendo ainda 42 SUB. Acredito que as exigências em recursos humanos e financeiros tenham sido devidamente avaliadas, mas tenho a certeza de que esta não será área para fazer poupanças. Depois de tudo o que está a ficar para trás, nada pior do que, implementadas as alterações na rede, continuarem a perder-se vidas por falta de prontidão no socorro pré-hospitalar ou por escolha errada do ponto de urgência hospitalar. É que, Monsieur La Palisse não o diria melhor, só vale a pena levar o doente para onde exista capacidade de lhe dar resposta adequada. A eficiência da rede de emergência e de urgência avalia-se por essa capacidade e pela sua acessibilidade (que não está na razão directa do número de quilómetros a percorrer). Por isso, o acerto da criação do nível SUB é, para mim, cada vez mais duvidoso. Não seria preferível desviar os recursos que vai absorver para reforçar ainda mais a área do socorro pré-hospitalar?

4. -Mas não só isso. Razão que tem sido invocada, e bem, para justificar o encerramento de algumas SUB (que, apesar disso, passam de 34 para 42!) é a de procurar melhorar a afectação dos recursos disponíveis: não manter profissionais com níveis de produtividade diminuída, sobretudo em horários nocturnos, aumentar a sua disponibilidade para a actividade programada e para a Medicina Familiar, diminuir através de melhor resposta nestas áreas o “abuso” no recurso aos SU, em resumo, tentar corrigir uma visão e uma política excessivamente centrada no hospital e claramente pouco aberta para os cuidados de proximidade (CS/MF). Aqui ocorrem-me duas observações:
- i) Onde está a consistência deste propósito se o número de SUB passa de 34 (contando com as “clandestinas”) para 42? Abrir uma SUB não significa, necessariamente, um aumento no dispêndio de recursos? Significará, nesse caso, reafectação dos recursos existentes e, se assim for, mais reforçado sairá o meu ponto de vista.
- ii) A importância do factor tempo não pode ser ignorada. As políticas – certas ou erradas, mas diria mais estas do que aquelas – produzem consequências e têm implicações que perduram, mercê da habituação produzida, muito para além da sua correcção. Por isso D.A. tem razão quando, nas afirmações acima transcritas, imputa parte da culpa ao Estado, que não soube dirigir os utentes para os Centros de Saúde que os podiam atender, mesmo se a importância da área dos CP é agora mais claramente afirmada do que foi durante as últimas décadas. Também por isso me parece que os ganhos esperáveis em saúde, na mudança comportamental dos utentes e no aumento de produtividade dos recursos não vão aparecer no imediato. Isto é, as medidas que agora se tomarem têm que ser vistas como investimento na mudança; os resultados poderão ser acelerados pela força, consistência e aceitabilidade que elas tiverem, já que não haverá oportunidade nem determinação bastante para outras medidas restritivas da procura indevida como seria – nos casos de procura indevida e de culpa presumível do utente e só neles – a perda de isenção de taxa moderadora e/ou o aumento do respectivo montante.

5. –As tarefas complementares que se seguem e já anunciadas no
link “Debate das Urgências”, (Post de 28.02.2007), pela CTAPRU, bem como as decisões que sobre elas incidam, serão de cariz mais marcadamente técnico e não terão, nem precisam de ter, a mesma visibilidade da proposta inicial. No entanto, serão, a meu ver, particularmente importantes e apresentam algum risco: parece indispensável que a reestruturação da RRU afirme claramente os seus méritos, evitando surpresas e prevenindo o reacender de contestação generalizada que caracterizou esta primeira fase.
AIDENÓS

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13 Comments:

Blogger saudepe said...

O artigo do Domingos Amaral "Urgênca Portuguesa" é indubitavelmente um excelente texto, embora a "avaliar pelos comentários suscitados no Saudesa, tenha passado quase despercebido."

Claro!...
Pela simples razão que a maioria dos comentadores SA privilegia o ataque político ao Governo, estando pouco interessados na verdadeira análise dos problemas.
Desde que seja para dizer mal...lá vamos nós.

Até parece mal dizer, não direi bem, mas... assim, assim.
E quem ousa dizer bem, mesmo a propósito, é de imediato zurzido.
Uma amostragem da democracia que temos.

1:25 da tarde  
Blogger Clara said...

Primero agradecer mais este excelente e excepcional análise ao Aidenós.
Excelente pelo cuidado e profundidade da análise.
Excepcional, porque são cada vez mais raras as abordagens de qualidade aqui na saudesa.
Que é feito do Semmisericórdia e do Vivóporto? E onde pára o saudoso Abelino?

O Aidenós em relação ao debate que tem sido efectuado sobre o projecto de classificação das Urgências tira algumas conclusões interessantes:
i) O que é fundamental nesta reforma ou noutra reforma qualquer da rede de urgências é que o doente seja levado para um local com capacidade de atendimento eficaz;
ii) O aumento da eficácia do atendimento da rede de urgência depende do reforço do socorro pré hospitalar e da escolha acertada do ponto de atendimento urgente;
iii)Dadas as dificuldades em reunir recursos financeiros para os investimentos necessários, e escassez de meios, este projecto deve basear-se, em grande parte, na reafectação dos recursos humanos disponíveis;
iv) Nesta linha de raciocínio o "acerto da criação do nível SUB é duvidoso".
Porque poderá conduzir à prestação de cuidados de baixa qualidade, à dispersão inglória de recursos e, consequentemente, prejudicar a actividade programada dos serviços.

Neste puzzle como ponderar a intervenção futura das USF?
Recentemente, o director do H. de São Sebastião de Vila da Feira, veio dizer que a actividade do banco experimentara uma redução significativa por influência da entrada em actividade de uma USF.

Será que a criação do nível SUB tem por objectivo fazer a despistagem do elevado número de atendimentos que são falsas urgências?

Uma reforma deste tipo requer tempo. Longo tempo de discusão e negociação. Tempo que CC, infelizmente, não tem.

2:09 da tarde  
Blogger ricardo said...

Excelente texto do AIDENÓS.

A serenidade de uma análise cuidada, a contrastar com a semana de comentários matraqueiros e mais uma revoada de apriorísticos.
Quanto mais rasteirinha é a discussão mais os básicos se aventuram.
Tenho constatado que há intervenções cujo único propósito é sabotar o debate.

Concordo com o AIDENÓS que a criação do nível SUB é contraditória com o objectivo desta reestruturação de concentrar meios para a criação de pontos de atendimento urgentes de qualidade.

A grande questão estratégica desta reforma era o encerramento de urgências dos pequenos HHs para os deixar morrer.

Tempo de reflexão, discussão e negociação foi coisa que o primeiro ministro, à partida, não permitiu. Factor fundamental que levou ao naufrágio deste projecto do ministro da saúde.

2:42 da tarde  
Blogger xavier said...

«Desta forma, e durante o tempo em que tal personalidade continue em funções, deixarei de participar no SaudeSa.»

Pelas razões que invoca não aceito esta sua decisão.

O Guidobaldo faz parte da SaudeSA quase desde o seu início.
Pela competência impar de tudo o que se relaciona com a área do medicamento, os seus comentários são imprescindíveis à continuidade deste projecto.
Por isso, lhe peço que reconsidere a sua decisão.

11:47 PM

11:58 da tarde  
Blogger Clara said...

Temos tido tantas contrariedades ultimamente.
Faço meu o pedido do Xavier.
O companheiro, o amigo, Guidobaldo não nos pode abandonar nesta fase mais difícil.
Contamos com o seu bom senso para reconsiderar tão inesperada decisão.
Um abraço

12:38 da manhã  
Blogger tonitosa said...

Guidobaldo,
Como certamente há muito percebeu, o Saude SA tem tido boas razões para criticar muitas das medidas de política de saúde do actual governo e, particularmente, do seu Ministro da Saúde.
E neste espaço surgiram em primeiro lugar e sobretudo apoiantes de CC; uns por convicção, outros por conveniência. Mas houve quem, por nada temer e nada dever, e também por convicção assumisse posições contrárias. O Saúde SA tornou-se assim, como você afirma, um serviço público, graças a essas participações e "à forma magistral como (o Xavier)gere este blog". Como diz, "o Saúdesa informa, discute e forma".
E o Guidobaldo tem dado excelentes contributos para que tal aconteça. Faço minhas as palavras do Xavier e da Clara. Acho que o Guidobaldo, precisamente pelas razões que invoca, não pode (não deve) abandonar este espaço.
Temos que contribuir para que o Saúde SA se mantenha como um "sítio" de debate pluralista, independente e democrático. Onde cada um de nós possa criticar ou apoiar as medidas do MS.
E uma coisa é certa: o Guidobaldo, continuará sempre a ser Farmacêutico (peço desculpa se não é este o termo adequado)e técnico reputado como tem demonstrado; Correia de Campos mais cedo (ou mais tarde)deixará de ser Ministro.
E o Saúde SA continuará a ter boas razões para existir, se e enquanto o Xavier quiser.
Um abraço

11:14 da manhã  
Blogger ricardo said...

Caro Guidobaldo,

Entenderia a sua decisão por outras quaisquer razões...
Quando é mais necessário discutir a Saúde, o Guidobaldo abandona o barco !...
Sei que não é desses e que irá repensar a sua decisão.
Um abraço.

1:34 da tarde  
Blogger laginha said...

O guidobaldo voltará brevemente. CC não vai ficar muito mais tempo na João Crisóstomo.

8:29 da tarde  
Blogger laginha said...

A verdadeira motivação para a 'reconfiguração' dos SU é de ordem exclusivamente financeira. Quando irá este blogue discutir o tema pelo que ele é?

Quantos mailhões de euros seriam poupados em horas extraordinárias dos médicos caso a coisa avançasse mesmo?
Alguém consegue convencer-nos do contrário? Ainda estão adormecidos pelo 'prós&contras' da RTP mais manipulativo que alguma vez foi imaginado?

8:34 da tarde  
Blogger aidenós said...

Cara Clara:

Cumprimento-a, bem como a todos de quem recebi comentários, por mostrar que vem ao Saudesa mesmo nos fins-de-semana, diferentemente dos que aparecem apenas nos dias úteis.
Não estou a criticá-los porque há várias razões, aceitáveis, para que assim seja.

Cumprimento-a também pela explicitação que faz das conclusões que podem ser inferidas do meu posicionamento perante o projecto de classificação das Urgências e sobre o debate que nele incidiu.

Ficará certo tudo quanto diz, com uma pequena, mas importante, correcção e com dois pequenos aditamentos.

1. - A correcção: “este projecto deve basear-se, em grande parte, na reafectação dos recursos humanos disponíveis”. Desculpe, se a minha posição não ficou tão óbvia como pretendi. O que penso é que não deve ir-se por aí:

i) porque isso significaria desviar recursos da actividade programada e da área dos cuidados de proximidade (CS/USF), onde eles devem ser acrescentados e não diminuídos, se o que se pretende é oferecer aos utentes uma alternativa ao recurso às urgências (combater as “falsas urgências”). É a primeira das razões pelas quais duvido que tenha sido acertada a decisão de prever o nível SUB na RRU.

ii) - Outra razão está no pouco que este nível SUB poderá acrescentar, em termos de intervenção, ao socorro pré-hospitalar, impondo-se aqui uma análise de custos/benefícios que, nos custos, não poderá ignorar o alongamento do tempo até à chegada do doente a um ponto de SU com a capacidade de intervenção necessária (SUMC ou SUP), com consequências que podem ser fatais para o doente.

iii) - A última razão é de ordem conceptual: o SU deve visar situações de emergência ou de urgência; para o seu atendimento requer-se muito mais do que 2 médicos e 2 enfermeiros (B.O, Análises, RX, etc., em permanência). Garantir esses recursos nos 27 SUMC já não será coisa pouca. Pretender que existam também nos 42 SUB não seria muito ambicioso, mas sim um equívoco ou hipocrisia pura. Isto é, as SUB não são carta deste baralho.

2. – Primeiro aditamento: “Prognósticos só no fim do jogo”, como respondeu o “grande artista” (JVP). O debate, o que fez foi antecipar previsões, com maior ou menor dose de razoabilidade, mas necessariamente subjectivas. Avaliar é outra coisa, só possível depois de decorrido tempo sobre a implementação, conhecidos que sejam dados objectivos que atestem os resultados num ou noutro sentido, e – para ser global – tanto sobre o socorro de urgência como sobre as suas implicações nas restantes áreas do SNS. A procissão ainda não saiu do adro. Se, a seu tempo, a avaliação for positiva, os políticos não perderão tempo e virão reivindicar os louros, apesar do preço que tiveram de pagar nesta fase.

3. – Segundo aditamento: Por isso são muito importantes os trabalhos que ficam agora em agenda. O primeiro Relatório da CTAPRU localizou os pontos de SU e enunciou os critérios para tanto adoptados. Mas foi parco em definições. Concretamente não refere qual a intervenção que se espera das SUB, nem mesmo das SUMC. Então, se o que me move é o desejo de contribuir para que o SNS seja melhor, e não se degrade, ainda é tempo para referir aspectos que parecem negativos e podem ser corrigidos ou minorados.
AIDENÓS

9:42 da tarde  
Blogger Peliteiro said...

Guidobaldo,
Mão faça isso, faz falta à blogosfera livre.
E afinal CC já não existe, é apenas uma marioneta que se move ao som da voz do dono.

11:26 da tarde  
Blogger Vladimiro Jorge Silva said...

Caro Guidobaldo: até mesmo um relógio parado acerta duas vezes por dia... tudo o que diz de CC é verdade. No entanto, temos que reconhecer que há medidas promovidas pelo MS que continuam a merecer exaustiva discussão e análise. Vejamos o caso do fecho das urgências (ou do fecho dos SAPs e das urgências clandestinas, ou do que quer que seja...): parece-me indiscutível a necessidade de reformar a rede de urgências. No entanto, fazê-lo com base num relatório com fragilidades técnicas (nomeadamente, em relação a critérios geográficos e sociais - sobre a parte médica da questão, obviamente não me pronuncio) e conduzir o processo com avanços e recuos, chantagens políticas e encenações mediáticas será sempre merecedor da nossa crítica.
Considero-me à vontade para escrever este texto: antes de CC ser MS pela segunda vez, fui seu apoiante e até lhe escrevi alguns textos laudatórios. A governação populisticamente anti-farmacêuticos e a forma metódica como CC tem desmontado o SNS fizeram-me mudar de opinião. CC é hoje um homem indubitavelmente diferente do brilhante académico que já foi e do promissor MS que em 2001 foi arrastado no afundamento do guterrismo. Por isso, penso que é hora de unir esforços e de expormos as fragilidades da sua governação. Até porque, se a moda pega, poderemos no futuro voltar a ter mais pessoas capazes e conhecedoras a enveredar pelos terrenos do populismo fácil como única forma de exercer o poder.

8:41 da tarde  
Blogger bininho said...

Caro Vladimiro,

Excelente comentário. Vamos deitar abixo CC e dar uma lição aos próximos candidatos a Ministros da saúde!

4:09 da tarde  

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