segunda-feira, março 19

Cirurgia do Ambulatório

O MS levou à sessão inaugural do XXVII Congresso Nacional de Cirurgia – 5 de Março de 2007 – o tema da Cirurgia de Ambulatório (post Cirurgia de Ambulatório, de 10.03.2007).

1. Trata-se de uma abordagem, a meu ver, bem construída, resumida, como era adequado à circunstância, e em que:
- se enunciam razões, objectivos e pressupostos da CA,
- é referida a sua implantação em progresso noutros países e em Portugal,
- é enfatizada a importância do factor organização da unidade de CA e dos seus procedimentos condicionantes do êxito do programa;
- finalmente, destacando a importância que a CA pode ter na redução da lista de espera para cirurgia, deixa um apelo ao comprometimento dos médicos nesta linha de intervenção.

2. Quais são, a final, as razões pelas quais a adesão à CA é tão baixa, quando comparada com a que se regista, em 2006, nos restantes países –: USA 83% do total; UK 62,5%; Suécia 50%; Noruega 48%; Espanha de 28 a 44%, consoante as autonomias; Portugal “quase 20%” –? E isto “apesar de Portugal possuir as condições necessárias para a implementação da Cirurgia Ambulatória”, segundo a afirmação do MS. Não quero ser simplista, mas parece-me que, independentemente da razão de fundo que, neste caso, lhe assiste, o MS está a esquecer alguns aspectos. É que não bastam as condições necessárias; têm também de ser suficientes. E, sobre elas, acresce que é preciso tempo.

3. Não existem dúvidas sobre a possibilidade de segurança e de qualidade na CA. A criação dessas condições foi referida pelo MS como um dos seus pressupostos: para além de “Uma organização correcta da unidade .. um controlo rigoroso e criterioso dos seguintes passos: selecção do doente; selecção do procedimento cirúrgico e anestésico; ensino adequado ao doente/pessoa cuidadora dos cuidados pós-operatórios e dos procedimentos perante eventuais complicações e programação da alta e seguimento pós-operatório –. Mas, para que a CA atinja a expressão desejada, é preciso mais. Se é verdade, como parece, o que, mais de uma vez, ouvi de médicos com responsabilidades de direcção no SNS, a CA exige muito mais do médico, em termos de pós-operatório, do que idêntica intervenção em regime de internamento, dado que neste existe vigilância profissional directa e qualquer eventual complicação pode ser detectada mais precocemente. Se for necessária, será mais pronta a intervenção correctiva. Compreende-se que, se outras razões o não motivarem, o médico continue pouco receptivo, ou excessivamente cauteloso, na opção pela CA, onde, inclusivamente, é maior o risco de qualquer intervenção correctiva necessária lhe fugir da mão, (o que não é do agrado de ninguém) para a intervenção de outros profissionais da Unidade de CA. O que pretendo dizer é que a motivação para aderir à CA deriva de outros factores, concretamente, da compreensão e da aceitação de que é dever de todos os profissionais de saúde, entre os quais o médico tem posição liderante, fazer a melhor utilização dos recursos disponíveis e que serão sempre escassos. E aqui está a grande dificuldade: esta visão não faz ainda parte da formação e da cultura dos médicos e medidas neste sentido são facilmente apodadas de medidas economicistas, de cedência no que respeita à segurança e à qualidade, mesmo se forem tomadas num contexto que expressamente as afirme como prioridades inquestionáveis. E não só pelos médicos, mas também no âmbito do Saudesa, onde, seguramente não são todos médicos.

4. Chegados a este ponto, o que podemos verificar é que a expansão da CA é afectada pelos mesmos factores que obstam à produtividade desejável nas restantes áreas de intervenção do SNS. Enquanto se não conseguir uma solução adequada ao nível dos factores condicionantes da sub-produtividade do SNS – e estou a pensar predominantemente no que deve comportar-se no estatuto dos profissionais de saúde – todas as iniciativas e todas as medidas que forem tomadas produzirão, no máximo, resultados diminuídos. No internamento, na CE, no SU, em HD e em CA como nos CSP, com ou sem USF, SAP, etc., ou nos CC, quando esta área ganhar expressão.

5. Mas estou também a pensar na debilidade da intervenção que compete aos Serviços que apoiam o MS e, muito concretamente, no IGIF, tanto na vertente da atribuição de financiamento como do controlo da informação sobre a qual devem apoiar-se as decisões, entre elas o financiamento dos serviços prestadores. Como pode compreender-se que os contratos programa dos serviços prestadores tenham ainda um cunho tão marcadamente histórico e sejam tão pouco direccionados pelas necessidades que não encontram resposta bastante? Como entender que, sendo a CA uma linha de intervenção na qual o MS diz apostar e que pretende expandir, não seja detectável nos relatórios de actividade do SNS? Sabe-se onde deve/pode estar, mas não se sabe se está nem quanta. É precisa prova? Veja-se o quadro seguinte, construído a partir da informação do IGIF (Contabilidade Analítica de 2005) (Link), com o pressuposto de que a actividade de HD de Cirurgia compreenderá, não toda, mas boa parte da CA. Impressiona pela total ausência de sentido crítico e de qualquer actuação de controlo de fiabilidade que revelam.

Fonte: IGIF – Contabilidade Analítica do SNS 2005 (a) Informação não constante na fonte.

Tanto a disparidade de custos unitários totais (uma razão que chega a ultrapassar 1 para 10!) como a própria estatística do movimento (quem acredita na 3ª posição do H. de Seia, entre 21 HH que declaram produção em HD?) sugerem que estamos longe da normalização de conceitos (confusão entre CA – que exige ambiente de BO, actos não inferiores a 50 K, internamento inferior a 24 Horas – e pequena cirurgia que não tem os mesmos requisitos. Mais longe ainda estaremos de poder concluir que existe a organização (referida pelo M.S. como pressuposto da CA), ou oportunidade de a instalar, quando, só 7 dos HH – quatro em Lisboa ou Porto, nenhum em Coimbra – atendem mais de 3 Doentes por dia, e 9 atendem, em média, menos que 1 doente por dia (alguns não atingiram 20 doentes em todo o ano de 2005). Certamente o M.S. tinha informação mais actualizada e melhor.

6. Em resumo: a expansão da CA é, sem dúvida, um objectivo a prosseguir; tem exigências e também limitações, ligadas quer ao doente e ao seu ambiente sócio-familiar, quer às capacidades dos serviços prestadores (designadamente recursos humanos, equipamentos e instrumental requerido). Exigirá também um nível de actividade suficiente para garantir a experiência e actualização profissional requeridas e para justificar a organização e a criação das condições de segurança e de qualidade exigíveis.
AIDENÓS

6 Comments:

Blogger tonitosa said...

Excelente esta análise do AIDENÓS que felicito, por este e outros textos que nos tem "oferecido".
Os dados do IGIF, que nos dá a conhecer, encerram na verdade algo de rídiculo. Mas é a informação que temos(?). No entanto algum sentido de responsabilidade exigiria certamente que se não publicassem "coisas" como esta. pelo menos, como diz o AIDENÓS, sem que se façam acompanhar de qualquer sentido crítico.
Este texto e a problemática da "responsabilidade médica" no seu contributo para a melhoria da CA levam-me até há cerca de uma década atrás.
Fui, então, sujeito a uma cirurgia do tipo "três em um" (fissura anal, trombo hemorroidal e hérnia inguinal). Como o cirurgião era pessoa conhecida a minha passagem pelo hospital (público) passou por duas fases que passo a relatar.
A primeira ter que ser internado com antecedência de um fim de semana (a uma sexta-feira) para poder garantir a cama na enfermaria.
A segunda pelo tempo de internamento após a cirurgia. Com efeito fui operado na segunda-feira ao fim da tarde e chegado a quinta-feira o médico disse-me que na realidade já poderia ir para casa uma vez que "sabia que eu ia ser bem comportado" (seguir as suas indicações) e que tinha em casa apoio adequado. Caso contrário ficaria ainda durante o fim de semana internado. Mas, cauteloso, também me disse: tens o meu telefone e portanto, perante qualquer sinal de alarme, ligas-me imediatamente. E assim foi. Tive alta nessa quinta-feira em vez de na segunda-feira seguinte.
Felizmente tudo correu bem.
Mas, quantos doentes podem ter alta nestas condições de risco? Quantas vezes pode o médico arriscar uma alta "antecipada"(?)?
E como acabar com esta "necessidade" de um internamento pré-operatório para garantir lugar?

4:25 da tarde  
Blogger coscuvilheiro said...

Mais uma excelente texto do Aidenós.

Realmente quando o MS se diz interessado em promover a CA é o primeiro a falhar na criação das condições para que tal se concretize.

Entre as grandes dificuldades apontadas pelo aidenós para o desenvolvimento da CA,a qualidade do sistema de informação da saúde parece-me a mais limitativa.
Sucessivas administrações da saúde têm tentado criar um sistema de informação capaz, gastando rios de dinheiro, sem resultados satisfatórios.

Um recente estudo veio demonstrar, uma vez mais, a forma ineficiente como a entidade responsável o IGIF gere os sistemas de informação da saúde.
Somos excelentes a fazer levantamentos de situação.E por aqui geralmente nos ficamos. Uma vez mais será de esperar que fique tudo na mesma.

8:04 da tarde  
Blogger ricardo said...

A demissão do Professor José Eduardo Guimarães não parece ter nada de estranho.

Trata-se de uma administração que realizou um excelente trabalho (como diria o nosso primeiro Sócrates)havendo a registar, apenas, segundo as notícias vindas a público, formas diferentes de abordar o processo de reforma entre elementos do CA do HSJ..


«Nos últimos meses, o ambiente no seio da administração do hospital foi-se degradando. As relações complicaram-se, particularmente, com o administrador executivo António Duarte Araújo que, segundo o jornal Público, chegou a colocar, na semana passada, o seu lugar à disposição da Administração Regional de Saúde do Norte.

Ao que o JN apurou, os conflitos entre os membros da administração estarão relacionados com alterações nas políticas de gestão do hospital e com os ritmos dessas mudanças José Eduardo Guimarães defenderia uma transição mais moderada, enquanto o director clínico António Ferreira ter-se-á batido para que o processo fosse mais rápido.

Recorde-se que ao fim de um ano de gestão empresarializada, o "S. João" apresentou, no ano passado, lucros de 2,8 milhões de euros, reduzindo os custos em medicamentos e horas extraordinárias. Ao mesmo tempo, aumentaram os internamentos, as cirurgias e as consultas e diminuíram as listas de espera. Além disso, está em curso o plano estratégico do hospital que envolve obras de 70 milhões de euros.

Ao previsível sucessor de José Eduardo Guimarães são reconhecidas qualidades e capacidade de liderança. António Ferreira, especialista em Medicina Interna, é também apoiado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde é professor.»
JN

8:19 da tarde  
Blogger e-pá! said...

A CA não é, em Portugal, nenhuma panaceia para o aumento da produtividade na área cirúrgica, nos tempos mais próximos.
Falta arquitectar todo o edifício físico, organizativo, de formação, da articulação HH's e CSP's, etc., para permitir "boas práticas" nesta área.

Todavia, o post de AIDENOS leva-me a tecer alguns comentários no intuito de levantar questões à roda deste problema. Levantar questões e não tentar bloquear, entenda-se.

Em primeiro lugar, as estatísiticas.
Os números que têm sido divulgados no nosso País, em minha opinião, sofrem de graves distorções de registo.
Como se diz no post torna-se evidente a involuntária(?)"mistura" entre pequena ciruugia e CA. A "febre" dos números conduz muitas vezes a "irrealidades"...

Em segundo lugar, os reais riscos da CA são os do pós-cirurgico imediato, e dentro deste tempo, das primeiras 24 horas. Na verdade, os números referentes a centros de CA com "boas práticas" referem uma incidência de complicações major (embolias, enfarte, hemorragias graves, lesões de estruturas adjacentes...) da ordem de 1/1.500 intervenções cirúrgicas. Este número é aceitável mas só alcançável por uma equipa treinada e experiente.
Paradoxalmante, o pior são as complicações minor (dor, náuseas, vómitos, tonturas, sonolência, odinofagia, cefaleias,
pequenas hemorragias, infecção...) que , perante um doente psicologicamente fragilizado e inseguro no domicilio, o levarão a "correr" para a urgência hospitalar, a serem aí observados e, com grande possibilidade, a serem "re-enviados" com a maior brevidade para a equipa cirurgica da undidade de CA, que o operou. A lógica do doente será sempre esta: ser observado por quem o operou.
Um "circuito" infernal que vai, na prática, gerar consumos (não previstos) de urgências e re-observações (consultas adicionais) na unidade de CA.
O teor destas complicações minor é, em oposição às major, muito elevado: 70 % dos doentes intervencionados.

Em terceiro lugar, a cirurgia de ambulatório (CA) aumenta de modo exponencial a responsabilidade da equipa cirúrgica (não só médica).
Isto deverá ser inserido nos tempos em que, correctamente, as pessoas são sabedoras dos seus direitos cívicos e vigiam a negligência (que poderá sempre ocorrer). Tal facto, induzirá a reivindicação que as unidades de CA sejam apetrechadas de todas as condições técnicas e humanas.
Mais investimento...provavelmente não contabilizado(?)pelo MS.

Em quarto lugar, os condicionalismos que gravitam em torna da alta. O carácter expedito da CA pode ser comprometido, em termos de satisfação do doente e da equipa cirúrgica, por exemplo, pela morosidade de integração num programa de reabilitação, pela incapacidade de coordenação com os CPS's, etc.

Finalmente, as condições sócio económicas de grande parte da população limitam esta opção e condicionam as estatísticas (a não ser que se implementem práticas "deficientes"). Nomeadamente, o grau de colaboração do doente, o temor / a ansiedade / a recusa, o sedentarismo, as condições de habitabilidade, etc. Para não falar de outras questões, como: a dificuldade de cumprimento das prescrições médicas, a incapacidade de compreensão do processo cirúrgico, a toxicodependência, o alcoolismo,
os hábitos de higiene pessoal, as condições de salubridade doméstica e o nível educacional.

Portanto, estamos novamente perante uma boa solução para problemas cirúrgicos de um grande sector de candidatos a cirurgia mas onde as condições básicas estão longe de estar estudadas, planeadas e, muito menos, operacionais.
CC vive obcecado pela redução de custos. Não basta isso. É necessário o trabalho prévio de instalar capacidades (técnicas e humanas) e criar boas condições que originam "boas práticas". Não é possível fazer tudo, coordenar tudo, ao mesmo tempo. Nem o avanço deste tipo de cirurgia está dependente do maior ou menor comprometimento dos mádicos (diria melhor das equipas cirúrgicas na globalidade).
Avançar com a CA, sim! Diria, obrigatoriamente! Mas falta preparar o "terreno", para além do discurso oportuno.

Mas como dizem (ou salvaguardam) os anglo-saxónicos, nestas situações de mudança:
BACK TO THE BASICS!

9:18 da tarde  
Blogger tonitosa said...

Depois de algum tempo em que no Saúde SA parecemos estar ocupados com coisas menores, é bom verificarmos que a reflexão e análise tecnicamente elaborada e fundamentada está de volta. Em complemento do texto do AIDENÓS o comentário do É-PÁ merece o meu aplauso.
Um abraço

10:37 da tarde  
Blogger Clara said...

Um grande trabalho do AIDENÓS a demonstrar que o desenvolvimento da CA envolve inúmeras dificuldades e que não basta o ministro definir como uma área prioritária a desenvolver.É necessário avaliar e desenvolver uma série de pressupostos para que a CA realmente avance.
Pelos vistos, estamos ainda no tempo da pedra lascada:há ainda confusão ao nível dos conceitos.
O nosso agradecimento ao AIDENÓS pela análise esclarecedora deta matéria.

9:15 da manhã  

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