terça-feira, junho 19

Sector Público / Privado


Caro É-Pá:

Claro que valorizo a sua longa experiência hospitalar, não por ser de 32 anos, como informou, mas pelo que transparece do à vontade com que aborda as variadas questões hospitalares e não só. Mas isso não implica concordância ponto por ponto nem inibe que se lhe contraponham outras experiências.
Se ler bem, a sua referência ao salazarismo, não contradiz nem acrescenta ao que referi: desde o início do SNS, para não irmos mais atrás. Só explicita.
Agora sou eu que tenho que pedir que não descontextualize: quando referi que tudo continua nos mesmos termos nos dias de hoje a única coisa que pode entender-se é que as situações acabadas de referir continuam a verificar-se, como se prova com o seguimento que, embora formulado sob forma interrogativa, tem sentido afirmativo. E não que se pretende negar que, apesar de tudo, tem havido progressos. Recorda-se que fui eu que (Post de 16.06.2007) afirmei: o que se investir para melhorar as performances (quer seja em incentivos remuneratórios quer em instalações e equipamentos ou organização) terá sempre efeitos diminuídos relativamente aos que poderiam esperar-se dos recursos afectados com o necessário comprometimento médico; (Destaque feito agora).
Apoda de “mera estultícia a consideração que reivindicações de incentivos por parte de um grupo profissional possam ser consideradas um facto aberrante ou pernicioso num quadro de serviço público” (n.º 1.a). Concordo, mas diga-me, por favor, quando me pronunciei assim. Então não entendeu que, no meu texto, a referência a falta de incentivos (é) frequentemente referida, a propósito ou com menor propósito, para justificar inúmeras deficiências do SNS é o que corresponde ao juízo de remuneração insuficiente implícito na expressão contida em Post precedente (“Já ganhei para o pequeno-almoço; agora vou ganhar para o bife”) e que esta constitui em si mesma uma confissão de insatisfação ou desmotivação? Quem tirou outras ilações, designadamente, “em termos de cumprimento de funções”? Do que eu falei foi de sintomas bastantes do escasso comprometimento médico, imprescindível para as coisas darem a volta. O que é coisa bem diferente. Não faça o mal e a caramunha, caro É-Pá.

No ponto 2. do seu Post, penso que pretende referir-se ao programa SIGIC (Sistema de Informação para Gestão Integrada da Cirurgia, se não erro) e à informação que disponibiliza e a que número significativo de doentes acede. Pois bem, entre estes estão alguns daqueles que, não podendo ou temendo aceitar a espera de vez no SNS, são operados na semana seguinte em regime privado. “Serão quando muito, vai-me desculpar, eventuais episódios do passado”? Vivi dois nos últimos 3 anos, e um deles há menos de seis meses, por entender que não devia furar as normas vigentes. Azar meu? Nem por isso, apesar do “mau jeito”, consegui pagar.

Chegamos assim ao BO, ponto 3. da sua intervenção. É evidente que “a redução lenta mas progressiva das listas de espera cirúrgicas representa ganhos de eficiência no trabalho hospitalar”. Não tão grandes como seria necessário e possível, mas alguns mesmo assim. Quanto às restantes alíneas, confesso que não percebo onde pretende chegar. Eu já ficaria contente se, mesmo contando também a cirurgia ambulatória, o nº de intervenções por dia útil e por sala se aproximasse dos conseguidos em locais de boas práticas (mesmo nacionais) e o número e diversificação de cirurgias/ano por cirurgião cumprissem as exigências das organizações profissionais europeias (acima das 200, se estou bem informado). E não terá de preocupar-se com camas porque, como de algum modo reconhece, estamos muito longe de esgotar a capacidade de internamento de que dispomos.

Passando ao seu ponto 4, não sou eu mas o É-Pá que tem de conceder que não há, no meu raciocínio, lugar para qualquer “bode expiatório”. Não posso acusar, e disse-o claramente: i) os médicos que são exemplares no seu profissionalismo e que, apesar do contexto, põem no serviço público todo o seu comprometimento. Estes são exemplares ou excelentes; ii) também não posso acusar os profissionais que não vencem o contexto adverso e que, fazendo opções que legalmente lhes são permitidas, são objectivamente colocados na situação de o seu empenhamento fazer oposição ao que são também os seus interesses legítimos. Numa avaliação objectiva não pode deixar de considerar-se diminuída a sua disponibilidade para se envolverem. Pedem não ser excelentes, mas não são infractores. Tal como referi o Estado é conivente e o maior culpado (no prejuízo daí resultante): podendo evitá-lo, não o faz, antes sugerindo uma mal sã composição de interesses, do tipo “pago pouco, mas dou outras vantagens por fora…”
Poderá haver, há sempre (em qualquer situação e em todas as profissões) casos de infracção, de que não acusei ninguém, porque estes devem ser avaliados no foro disciplinar ou penal, conforme os casos e de acordo com a gravidade de que se revestirem.
Registo também que o È-Pá acaba por reconhecer “esta necessidade de reverter situações (que todos sabemos que estão mal)”, embora tendo “inerentes profundos problemas de organização, de direcção, de gestão e informação”, no que tem o meu acordo.

Quanto ao ponto 5 da sua intervenção, é como diz: viveremos cada um a sua verdade até que disponhamos da informação que nos falta. Também eu admito que a exclusividade tem maior incidência na Medicina Interna do que na Cirurgia Geral e será ainda menor no caso das especialidades médicas ou cirúrgicas. Mas não era isto o que discutíamos e sim, se as situações de acumulação existentes eram ou não em número que devesse constituir preocupação.

Referindo-me agora ao seu ponto 6, para mim, a superação da situação por si só, sem qualquer intervenção normativa que até pode não ser de lei mas de descriminação positiva, sensível e eficaz da exclusividade, entre outras vias: i) pela oferta de horários de extensão, e obviamente de remuneração, variada, ii) pela criação de incentivos ligados a objectivos a atingir, ponderando a qualidade e a produtividade iii) pela criação de um novo padrão de avaliação do desempenho pelo mérito demonstrado e acabando com a predominância do factor antiguidade – demorará mais tempo do que aquele de que o SNS dispõe para ficar à espera. Era nisto que pensava quando afirmei, no Post de 16.05.2007: para cúmulo, quando se fizerem as contas, poderá vir a concluir-se que se gastou mais em remendos do que teria custado o fato novo para um corpo curado da obesidade actual.
Defendo também que, independentemente dos regimes de trabalho – EPE ou SPA –, a maioria estruturante dos quadros de efectivos dos Serviços de Saúde, entre eles nos HH, gozará de um estatuto de estabilidade, ainda que o entendimento desta como correspondendo a situações vitalícias pareça ter passado à história no âmbito da Função Pública, não só na Saúde. Resta esperar para ver, mas não sou tão pessimista como o É-Pá e não antevejo “a derrocada dos serviços hospitalares organizados e clinicamente eficientes” “por falta de entrosamento”.
Considero já ter respondido anteriormente às considerações expendidas no seu ponto

7. pelo que nada mais tenho a acrescentar.
Resta-me, portanto, agradecer a sua disponibilidade, nunca desmentida, para a troca de opiniões que desenvolvemos e em que, pela minha parte, me esforcei por entender as suas razões. Se não concordámos sempre, concordámos muitas vezes, o que já é muito bom.
AIDENÓS

Caro aidenós:

Todos temos experiência hospitalar.
Não me vai subtrair isso.
A história do tipo "pago pouco, mas dou outras vantagens por fora…" é uma longa história do antes SNS, mais própeiamente do salazarismo, com outros termos mas com o mesmo sentido: "paguem mal aos médicos, mas não os chateiem"... Esta evocação foi muitas vezes, ironicamente, aduzida, no ainda não totalmente historiado "confronto" com os profissionais médicos, protagonizado pela dupla L Beleza/C Freire.
Mas não pretendo regressar à história desses tempos. Nem do fascismo, nem de Leonor Beleza.

O que eu sublinhei por me parecer excessiva foi a situação (relação público/privado), referenciada como sendo importante ameaça ao SNS. Mais, acrescentei, que essa situação, tem tido evolução diferente da que defende.
Tenho de insistir de que não julgo defensável considerar ... "que tudo continua nos mesmos termos nos dias de hoje".
Assim:
1.
a) É mera estultícia a consideração que reivindicações de incentivos por parte de um grupo profissional possam ser consideradas um facto aberrante ou pernicioso num quadro de serviço público.
b) Mais deslocado será tirar ilações sobre esse facto, em termos de cumprimento de funções.

2.
a) Hoje, ou pelo menos desde há um ano, em grande número de Hospitais, existe em relação às intervenções cirúrgicas um sistema de informação e controlo - SCIG.
b) Tem a noção que um número significativo de doentes consulta os Serviços, por e-mail, a fim de saber a sua posição relativa na lista de espera?
c) Pelo que aberrações, como a que refere, de "temendo aceitar a espera de vez no SNS, o doente é operado na semana seguinte em regime privado" serão quando muito, vai-me desculpar, eventuais episódios do passado.

3.
a) O nº. de intervenções/dia útil/sala não pode crescer exponencialmente;
b) O doente depois de operado não é "lançado aos bichos". Vai ocupar uma cama no Serviço respectivo, onde terá uma demora adequada á sua situação clínica
c) Sei que as taxas de ocupação em alguns serviços cirúrgicos estão longe de estar optimizadas.
d) Tal facto, criticável em termos de performance, não deve fazer perder a noção de que a capacidade hospitalar é finita (a rotatividade esgota-se), que a progressão produtiva tem tectos e não poderá ser esticada "ad eternum".
e) Finalmente, a redução lenta mas progressiva das listas de espera cirúrgicas, é um mero dado estatistico ou representa ganhos de eficiencia no trabalho hospitalar?

4.
a) Terá de me conceder que o comprometimento médico não pode ser o único, nem o principal, "bode expiatório" para, como afirma: "as coisas darem a volta", no meio hospitalar.
b) Inerente a esta necessidade de reverter situações (que todos sabemos que estão mal) destacam-se profundos problemas de organização, de direcção, de gestão e informação.
c) Um detectável sub-aproveitamento das capacidades cirúrgicas dos HH's do SNS, não terá a ver com opções estratégicas que, não passam por médicos que acumulam ou não mas, por exemplo, pela implementação da cirurgia de ambulatório?
d) Não é, portanto, justo fixar-nos em epifenómenos, que existindo, são cada vez menos relevantes.

5.
a) É pena não serem conhecidos os números relativos a pessoal médico, na área hospitalar, em exclusividade, porque passamos a viver de impressões;
b) Todavia, na área cirúrgica que, nesta troca de impressões, veio a talhe de foice, é cada vez mais notória opção pela exclusividade;
c) Mais significativa será, ainda, a adesão na área de Medicina Interna;
d) Isto é, nos 2 pilares clínicos dos Hospitais - Medicina Interna e Cirurgia Geral - a tendência cairá para o lado da exclusividade.
d) Concedo, por outro lado, que nas especialidades directas (médico-cirúrgicas)- Oftalmologia, ORL, Ginecologia, Dermatologia, etc - a situação será, substancialmente, diferente.

6.
a)Quando insisto que o problema da acumulação público/privado, não é um problema do futuro, baseio-me, no facto, de se verificar uma inexorável e silenciosa extinção das carreiras médicas e, ainda, no actual (e futuro) regime de trabalho em implementação - a contratação.
b) Esta situação de pecaridade, sejamos objectivos, permite resolver as situações anómalas detectadas.
c) Mas, para além disso, não tenhamos dúvidas é que este último regime de trabalho - independentemente do horário - contribuirá, por falta de entrosamento, para a derrocada dos serviços hospitalares organizados e clinicamente eficientes.
d) E assim, temos a "pescadinha de rabo na boca".

7.
a) Alguma vez os orgãos de decisão públicos da área da Saúde mostram vontade, pressa, ou determinação, em "separar as águas"?
b) Não o fizeram, nem estão interessados nisso porque, nessa situação, teriam obrigatoriamente de definir as regras do jogo e esta é a última coisa que desejam ou estão em condições de o fazer.
c) De facto, nesta situação, estou de acordo com afirmações de Constantino Sakellarides quando afirma que o Governo não tem uma estratégia clara e definida para a Saúde e, não o iria fazer, só para resolver o problema das relações público/privadas dos médicos ou de outros profissionais da saúde.
d) Na realidade, sabemos que "valores mais altos se alevantam".

Resumindo, para não ficarmos só por questões e especulações.
A existência de situações de eventual promiscuidade merece o meu activo repúdio.
que divergimos na sua solução.
Ou há uma definição clara, objectiva e rigorosa do campo público e do espaço privado, quando a tudo, incluindo contratualizações, convenções, acordos, programas, futuro, etc. e os médicos devem ser obrigados a optar;
Ou, num sistema de "mistura de águas", onde a indefinição prolifera, os zig-zags são constantes, os compromissos velados abundam, as responsabilidades estão diluidas, os médicos devem gozar das liberdades, legalmente e actualmente, consagradas.
As prevaricações devem ser tratadas na sede própria, ie, nos Hospitais e por quem de direito: as direcções de Serviço, o Director Clínico, o CA, e, como todos os cidadãos, nos Tribunais.
Cercear liberdades, preventivamente, é sempre o pior caminho.
Faz-me lembrar os argumentos sobre a imperiosa necessidade de promover a luta anti-terrorista, para de seguida, condicionarem, aos cidadãos, liberdades fundamentais.
É que sendo verdade que politica e humanamente condeno o terrorismo, não suporto olhar para Guantámano, ver videos ou fotos de Abu Ghraib, sentir que fomos "relais" aeroportuários de tráfico de prisioneiros, etc.

Aí não festejo, nem bebo 1 copo.
Indigno-me!

Adenda:
Em muitas das situações controversas que ganharam "força" e subsistem - devo reconhecer - na área cirúrgica, deve o "mal" ser dividido pelas aldeias:
- médicos, gestores, criadores do malogrado PECLEC, sector privado organizado, sector social e outros interesses, nomeadamente, políticos (...as "chicanas" parlamentares sobre as LEC), etc.
Mas, não deixe os médicos, sozinhos... neste pântano (como diria o Engº. Guterres).
Esperemos que o SGIC tenha outro rumo... mas, como se deve recordar, as "ameaças" do sector social já pairam no ar!
Outros sectores da área da Saúde, aparecerão...
É o complexo "Mundo Hospitalar" a que me referia no 1º. comentário.
É-Pá

3 Comments:

Blogger Clara said...

Sensacional debate entre um AH e um médico do SNS, ambos dotados de excepecional capacidade de reflexão sobre a sua longa carreira de profissionais do SNS.
Grata pelos ensinamentos e pelo prazer da leitura destas reflexões.

12:48 da tarde  
Blogger Joaopedro said...

Estamos a curtir bué !

1:09 da tarde  
Blogger e-pá! said...

Caro aidenós:

Acho que muitos aspectos ficaram por aflorar nesta troca de impressões sobre o binómio: sector público/privado.
Não pretendo voltar à carga, nem tornar-me enfático e, muito menos, enfadonho. Haverá sempre oportunidade de voltar a este assunto. Como diz o provérbio popular: “há mais marés que marinheiros”!

O que julgo pertinente, e nisso sinto-me em dívida, é contextualizar porque alimentei esta – para mim simultaneamente lúdica e proveitosa - troca de impressões. De facto, para além de todos os problemas (reais, artificiais e fictícios) que originam conflitos e por vezes – em má hora – opõem profissionais que trabalham no mesmo “barco”, seja o meio hospitalar ou num sentido mais lato o SNS, deveria existir uma CULTURA ORGANIZACIONAL.
É por essa vertente cultural que me bato. Sinto que, neste roteiro comum, é sempre possível melhorar e aperfeiçoar aquilo a que podemos chamar a “sustentabilidade humana” do SNS. E, particularmente, no seio dos HH’s onde creio - sem complexos hospitalocêntricos - que assentam grandes responsabilidades na resolução de situações críticas que afectam a saúde dos portugueses.
A cultura organizacional que deve prevalecer nos serviços de Saúde (deixemos os HH’s descansarem) será uma “cultura de interpenetração”, de convergência. Onde múltiplos aspectos estarão visíveis, outros mais ensombrados. Alguns já foram realçados em comentários recentes. Todos nos recordaremos de questões que por aqui foram sendo afloradas, fundamentais para a sobrevivência do SNS, como por exemplo:
- as lideranças;
- a “centralidade” do doente;
- o escrutínio de resultados;
- os sistemas de informação e de comunicação;
- a planificação;
- as opções estratégicas
- uma “accountability” transparente;
- etc.

Todavia, o entrosamento no “Mundo da Saúde” empurra-nos, por ventura, para áreas mais sombrias, logo, menos evidentes mas, nem por isso, menos importantes. E assim surgem outras áreas onde, frequentemente, divergimos e nos digladiamos.
Estou, concretamente, a pensar em:
- trabalho em equipa;
- níveis de comprometimento;
- relações interdisciplinares;
- relacionamento interpessoal;
- regulação de conflitos;
- etc.

Estou convicto que a promoção, no interior do SNS, desta “cultura organizacional” facilitará a derrogação de conflitos e, per si, aumenta as performances do sistema. Torna o seu funcionamento mais eficiente e a sua administração mais cómoda. Fortalece o SNS enquanto poderoso e imprescindível projecto (e realidade) social, a defender.

Foi por tudo isto que “saltei” na análise dos comportamentos dos profissionais médicos relativos ao seu posicionamento (relacionamento) no binómio: público/privado.
Não me movo por corporativismos mas, por outro lado, não creio que anátemas ou suspeições sejam esclarecedores ou, sequer, “produtivos”.
Prefiro, de longe, defender a promoção de “cultura organizacional”, mobilizadora, estimulante e congregadora, no seio dos trabalhadores (públicos) da saúde.

Como anunciou Epicleto:
“O que comove os homens não são as coisas, mas a opinião sobre elas”

1:00 da manhã  

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