sexta-feira, novembro 23

O menino que Gaspar não conhece


Supermercado do centro comercial das Amoreiras, fim da tarde de terça-feira. Uma jovem mãe, acompanhada do filho com seis anos, está a pagar algumas compras que fez: leite, manteiga, fiambre, detergentes e mais alguns produtos.
Quando chega ao fim, a empregada da caixa revela: são 84 euros. A mãe tem um sobressalto, olha para o dinheiro que traz na mão e diz: vou ter de deixar algumas coisas. Só tenho 70 euros.
Começa a pôr de lado vários produtos e vai perguntando à empregada da caixa se já chega. Não, ainda não. Ainda falta. Mais uma coisa. Outra. Ainda é preciso mais? É. Então este pacote de bolachas também fica.
Aí o menino agarra na manga do casaco da mãe e fala: Mamã, as bolachas não, as bolachas não. São as que eu levo para a escola. A mãe, meio envergonhada até porque a fila por trás dela começava a engrossar, responde: tem de ser, meu filho. E o menino de lágrima no canto do olho a insistir: mamã, as bolachas não. As bolachas não.
O momento embaraçoso é quebrado pela senhora atrás da jovem mãe. Quanto são as bolachas, pergunta à empregada da caixa. Ponha na minha conta. O menino sorriu. Mas foi um sorriso muito envergonhado. A mãe agradeceu ainda mais envergonhada. A pobreza de quem nunca pensou que um dia ia ser pobre enche de vergonha e pudor os que a sofrem.
Tenho a certeza que o ministro Vítor Gaspar não conhece este menino, o que seria obviamente muito improvável. Mas desconfio que o ministro Vítor Gaspar não conhece nenhuns meninos que estejam a passar pela mesma situação. Ou se conhece considera que esse é o preço a pagar pela famoso ajustamento. É isso que é muito preocupante. 
Nicolau Santos, Quarta feira, 21.11.12 

Tavisto

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4 Comments:

Blogger Clara said...

Oitenta e quatro euros de compras?
Produtos de marca, certamente.
Bolachinas pró o menino?
É porque esta mãezinha não sabe
que "temos todos de empobrecer regressar ao que é mais básico. Não ter expectativas de que podemos viver com mais do que necessitamos, pois não há dinheiro para isso”. Se nós não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, então não comemos bifes todos os dias”.
No lugar de comprar no Centro Comercial das Amoreiras a mãe do menino deve passar pelo Banco Alimentar de Alcântara. A principio sentirá timidez, vergonha. Verá que com o tempo isso passa. Afinal temos todos que aprender a viver com o dinheiro que não temos.
Ponham os olhos no nosso primeiro ministro que usa fatos da Maconde e já despediu um dos seus onze motoristas.

11:14 da manhã  
Blogger Clara said...

"Os Pobrezinhos
Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)
de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeo
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.


joão lobo antunes

11:21 da manhã  
Blogger Clara said...

A presidente do Banco Alimentar Contra a Fome dá o benefício da dúvida ao Governo, considerando que o novo pacote de austeridade terá impacto sobre os portugueses.
No entanto, em declarações à TSF, sabel Jonet admitiu que um caminho alternativo poderia ter consequências mais desastrosas.
«Prefiro estas medidas agora anunciadas do que um novo acréscimo nos impostos, nomeadamente no IVA, porque poderia conduzir a uma maior desigualdade social», sublinhou.
Isabel Jonet mostrou-se convicta de que, no Orçamento, vão surgir medidas compensatórias para famílias carenciadas.
isabel jonet 14.09.12

11:26 da manhã  
Blogger Clara said...

Quem não se lembra do fim de 2010, quando a campanha presidencial de Cavaco lançou a ideia de recolher restos nos restaurantes para dar a quem "precissasse"? Nessa altura, havia, dizia-se, fome em Portugal, era preciso um sobressalto cívico e não se podiam exigir mais sacrifícios aos portugueses. Aparentemente, dde então, tudo melhorou, ao ponto não só de nunca mais termos ouvido ao Presidente uma palavra sobre tupperwares com sobras (e, a bem dizer, poucas sobre seja o que for), como de a presidente do Banco Alimentar certificar que é preciso habituarmo-nos à ideia de que não podemos comer bife todos os dias.

O que era uma desgraça no início de 2011 - o risco de pobreza - tornou-se, pois, uma virtude em 2012. E por assim ser o discurso de termos vivido "acima das nossas possibilidades" fez-se hegemónico. Pelo que pessoas como Isabel Jonet se sentem cada vez mais à vontade para nos admoestar, como a própria fez na SIC-Not esta semana, sobre as nossas prioridades trocadas: concertos rock à pinha quando depois não há dinheiro para fazer uma radiografia (sim, foi isto); lavar os dentes com água corrente em vez de com copo (também); etc - um etc que passa pelo recurso ao crédito para consumos desenfreados "de quem julgava que alguém ia pagar".

Esta catilinária infantilizadora de Jonet irrita, compreensivelmente, muita gente, havendo mesmo quem clame pela sua demissão e por boicotes ao Banco. Um exagero - afinal, ao contrário do BPI de ai-aguenta-aguenta-Ulrich, a organização a que Jonet preside faz qualquer coisa para obviar aos efeitos da austeridade. E entre tanto disparate Jonet até disse uma coisa interessante: que ainda não há miséria em Portugal, ao contrário do que constatou na Grécia. Motivo? "Temos ainda uma estrutura que o impede".



Ninguém perguntou a Jonet a que estrutura se referia, e foi pena. Porque, quiçá inconscientemente, Jonet está a reconhecer o papel das políticas sociais que lograram reduzir não só a taxa de pobreza como, até, recentemente, diminuir a desigualdade - a contra-ciclo do que se passou com a generalidade dos países europeus. O efeito combinado de uma série de medidas - do subsídio de desemprego ao RSI, passando pelo Complemento Solidário para Idosos - logrou essa proeza.

O facto de tão poucos se terem congratulado com o efeito tão palpável dessas políticas até que cortes sobre cortes e o discurso da "refundação" ameaçam destruí-las explica que seja tão fácil esquecer que são a nossa única barragem contra a miséria - a material e a outra. Explica que seja possível haver quem nos queira convencer que essa barragem está acima das nossas possibilidades; que querer erradicar a miséria, em vez de a manter com esmolas, é o novo "gastar à tripa forra". Oiçamos pois o alerta, ainda que atabalhoado, de Jonet: salvemos o que nos salva. A escolha não é entre "nós" e os pobres. É mesmo nossa.

f, jugular 10.11.12

11:35 da manhã  

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