terça-feira, fevereiro 12

Medicamentos e racionalização

Um rudimentar exercício sobre um caso exemplar
Um recente artigo da revista ‘Prescrire’ link levanta um problema crucial acerca do posicionamento das agências nacionais de medicamentos e dos prescritores face ao arsenal medicamentoso disponível. Este artigo para além de ser uma oportuna chamada de atenção para efeitos indesejáveis de alguns medicamentos sobre os seus consumidores abre nos tempos em que se questiona enviesadamente a sustentabilidade do SNS, novas janelas sobre cuidados e poupança medicamentosas.
O texto em referência revela, sobre os medicamentos com autorização de introdução no mercado (AIM), alguns entorses na relação benefícios/riscos e os ‘mecanismos’ de controlo a que deverão ser permanentemente sujeitos.
E, para além disso, ‘desmascara’ como uma certa inércia ou habituação promove a prescrição e níveis de utilização sem que existam dados concretos sobre pertinência das respostas terapêuticas e evidência científica (clínica), para além do ‘efeito placebo’.
A dinâmica da indústria farmacêutica (financeira, de liderança na investigação e inovação) leva a que sejam anualmente introduzidos no mercado medicamentoso inúmeros ‘novos’ fármacos, muitas vezes sem qualquer acréscimo em relação à ‘mais valia’ farmacológica, ou de eficácia terapêutica, quando confrontados com medicamentos do mesmo grupo terapêutico já disponíveis.
Mas exibe a questão suscitada pelo artigo da ‘Prescrire’ torna premente necessidade de cíclicas revisões de terapêuticas, mesmo as que são consideradas ‘clássicas’ ou rotineiras.
O artigo em referência discrimina vários vectores da prática médica quotidiana:
- medicamentos que expõem a riscos desproporcionados em relação aos riscos inerentes;
- medicamentos antigos que a utilização foi ultrapassado por outros que têm um balanço benefício/risco mais favorável;
- medicamentos recentes onde o balanço benefício/risco é menos favorável( em relação aos mais antigos);
- medicamentos cuja eficácia não se encontra provada para além do ‘efeito placebo’ e que expõem a danos desproporcionados;
- associações em doses fixas que acarretam feitos indesejáveis cumulativos e interacções medicamentosas dos seus princípios activos sem ganhos de eficácia.
Uma brochura anexa a este artigo particulariza algumas situações ["Pour mieux soigner : des médicaments à écarter" Rev Prescrire 2013 ; 33 (352) : 138-142. (pdf, accès libre)]
Tomemos como exemplo o fármaco trimetazidina 35 mg dos quais que existiam (Fev. 2013) 2 medicamentos de marca e 8 genéricos, mas cuja marca comercial mais conhecida é o Vastarel®, que – como é verificável por quem exerce prática clínica de rotina – faz, quase invariavelmente, parte do (extenso) ‘bornal’ medicamentoso dos utentes do grupo etário superior aos 60 anos.
Com a indicação de ser um medicamento para o “tratamento da angina de peito (dor no peito causada por doença coronária), em doentes adultos” link , é acessoriamente [off label] utilizado (em larga medida) na profilaxia das vertigens, acufenos e distúrbios dos campos visuais – dada uma empírica convicção de facilitaria o ‘alívio’ sintomático da degenerescência vascular, frequente (natural) na idade madura da vida.
Todavia, o fármaco em questão tem efeitos colaterais como os sindromas extra-piramidais ( alterações do equilíbrio, síndromas parkinsónicos, perturbações da locomoção, etc.) que são frequentemente desvalorizados ou ignorados, embora constem da do folheto informativo do INFARMED aprovado em 28.09.2012 link, como de ‘frequência desconhecida’…
Na verdade a indicação terapêutica aceite pelo Infarmed é, no mínimo, muito generosa e imprecisa. Na realidade, tratar-se-á de um fármaco adjuvante (com actuação sobre sintomas) na terapêutica de referência para o ‘angor pectoris’ e não ‘um medicamento para tratamento’, sobre o qual existem alguns alertas referenciados quer a nível europeu link ou nacional link relativos à sua eficácia terapêutica e a eventuais efeitos adversos, bem como recomendações particulares, entre elas, a reavaliação da necessidade de continuidade da sua utilização face aos benefícios esperados, a efectuar em todas as consultas subsequentes. Não é essa a prática e no dia-a-dia verificamos que muitos doentes ainda se encontram medicados com este fármaco, em regime de ‘ad vitam’…
Resultado: Embora seja um medicamento em evidente decréscimo de utilização em 2012 (variação homóloga em relação a 2011 de -18.3%), ainda se apresenta na 17ª. posição relativa aos 50 medicamentos com maior representatividade no consumo nos 3 primeiros trimestres de 2012 link (pág. 16) com um PVP de 8.662.413.
A trimetazidina é um medicamento comparticipado pelo SNS a 69% link e, portanto, existe aqui alguma evidência de desperdício no que diz respeito ao custo/efectividade (fármaco-terapêutica e económica) e que em relação a uma das marcas se aproxima dos 6.000.000.
O conjunto destes factos – que aqui são mencionados a título exemplificativo - deveria determinar o fim (ou a mudança de escalão) da sua comparticipação pelo SNS e proceder ao ‘re-encaminhamento’ do superavit orçamental daí resultante para outros fármacos (com evidência comprovada) cujas condições de acessibilidade tem mostrado, nos tempos recentes, cíclicas e ainda não esclarecidas dificuldades de acesso como tem sido amplamente denunciado na comunicação social. link; link.
Enfim, tomamos um dos fármacos mencionados no citado artigo do ‘Prescrire’ (acima referenciado) como um exemplo (existem outros basta olhar a brochura), reprodutível em Portugal, sem qualquer intuito de analisar ou avaliar o mercado farmacêutico, muito menos de o denegrir, mas para proceder a um sumário exercício de verificação e chamada de atenção para a necessidade do INFARMED tomar em consideração, de acordo com o revelado (situação que com certeza conhece), de que é possível e aconselhável – para os prescritores, utentes e equilíbrio orçamental do SNS - racionalizar em vez de racionar (como sugeriu o parecer do CNECV link) a despesa pública com medicamentos...
E-Pá!

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