O portageiro do SNS.
O Prof. Manuel Antunes foi um dos
convidados para a Conferência “O Estado
pode continuar a tomar conta de nós?” link
Bem. Sucedeu o inacreditável. Ninguém tomou conta dele. E
entregue à sua douta ‘criatividade’, dado encontrar-se no Conservatório de
Música de Coimbra, i. e., longe dos rituais do bloco operatório, resolveu ‘dar
música’ à plateia e arrancou numa desenfreada sinfonia arrostando
impiedosamente e ruidosamente contra todos os obstáculos que o incomodam quanto
à sustentabilidade do SNS.
Nesse ‘concerto’ de ideias melódicas e anedóticas tocou
notas verdadeiramente dissonantes, para não lhe chamar fífias.
Embalado num tempo ‘allegro agitato’ desviou-se da partitura
prevista (‘tomar conta de nós’ dentro do quadro constitucional vigente) e
lançou-se em ‘heróicas’ (‘patrióticas’) deambulações (variações) sobre o mote
dos co-pagamentos.
Disse: “As taxas moderadoras deviam desaparecer. Defendo os
co-pagamentos, excluindo para as pessoas que não podem realmente pagar”, e
rematou esta sequência como que agitando a uma imaginária batuta sobre os
atónitos ouvintes com a previsão de que se assim não for, os impostos terão de
“continuar a subir”. link
Não sabemos se esta tirada teve direito a ‘encore’. Mas
conhecemos o roteiro: A ‘insustentabilidade’ financeira do SNS - um jargão
frequentemente esgrimido nos ‘think tanks’ ultraliberais - insere-se em
‘modernas’ concepções ideológicas sobre a ‘sustentabilidade’ das prestações
sociais que só excepcionalmente conseguem ultrapassar a mesquinhez do
‘contable’, triturando na polé da eficiência qualquer contexto de
solidariedade, equidade e universalidade.
Nestas ‘liberais’ concepções o Estado deve ser ‘libertado’
destas ‘peias’ sociais para – não o confessam, mas suspiram - mais
expeditamente ser colonizado (capturado) por interesses económicos e
financeiros, carentes de uma fiscalidade ‘aliviada’ pelo alijamento daquilo que
consideram minudências sociais. O resultado prometido é a agilização e
rentabilização da Economia e dos negócios (aquilo a que eufemísticamente se
convencionou chamar de ‘competitividade’), independente de qualquer equilíbrio
ou compromisso redistributivo.
A discricionária e cega opção monetarista [os cortes
balizados em 4.000 milhões de euros] com todos os condicionalismos e perversões
entranhou de tal maneira a denominada ‘Reforma do Estado’, que tornou inviável
qualquer tentativa de debate sério sobre ‘sustentabilidade’ do SNS.
Não é verdade que - como tentou demonstrar Manuel Antunes -
os impostos tenham sofrido um ‘enorme’ agravamento devido às transferências do
OE para o SNS. Na realidade, as transferências do OE para o SNS entre 2010 e
2012 decresceram mais de 19% (passaram dos 8.848 para os 7.107 milhões de
euros) e os reais custos desta operação no que diz respeita à qualidade das
prestações estão ainda por apurar. A ‘justificação’ apoiar o ‘dogma da
insustentabilidade’ terá, portanto, de ser encontrada noutras paragens. Por
outro lado, não tomar em consideração que existem co-pagamentos ocultos,
‘encapotados’ e ‘não contabilizados’ sob a forma de ‘out of pocket’, seguros de
saúde, outros sistemas assistenciais e comparticipações medicamentosas, atingem
o ‘volume’ de cerca de 35% das despesas globais com a saúde, portanto uma
importante fatia, estranha às dotações orçamentais e que constituem uma pesada
e dolorosa sobrecarga para os rendimentos das famílias e empresas portuguesas,
quando confrontado com a média nos países da UE (27%). Trata-se de um elevado
‘cost-sharing’ que - numa discussão deste tipo – não poderá ser considerado
despiciendo.
Parte II
Mas o espantoso surgiu quando Manuel Antunes sugeriu a
aplicação do princípio utilizador/pagador ao SNS. Sem qualquer pudor ou rebuço
pôs – de uma assentada - em causa para a generalidade dos utentes a
universalidade do direito de acesso ao Serviço Nacional de Saúde,
constitucionalmente consagrado. Dispôs-se a perorar sobre um imaginário Estado
sem leis fundamentais, sem regras, sem resquícios de solidariedade, sem
compromissos sociais quando seria suposto o citado conferencista ter botado
faladura sobre o SNS em Portugal.
O modelo institucional vigente no nosso País garante o
acesso a bens e serviços essenciais e assenta num circuito ‘extra-mercado’.
Baseia-se no reconhecimento de direitos de cidadania e sociais a todos os
portugueses, competindo ao Estado assegurar a todos os cidadãos sendo o seu
financiamento obtido através de dotações orçamentais. O que estaria em causa
neste debate – a enviesada discussão promovida versa o corte de 4.000 milhões
de euros na área social - é o modo como cumprir (com um orçamento mais
estreito) esse contrato social. Não insidiosamente questioná-lo ou tentar
subverter o modelo actual por sistemas assistencialistas. O equilíbrio fiscal e
orçamental não pode ser equacionado – não é essa a discussão actual - à volta
da de restrições dos direitos sociais, nem pervertido pela solução dos
‘co-pagamentos’. Isto significa alterar completamente o actual paradigma e
colocar o SNS na total dependência dos apetites dos mercados em que a
quantidade e qualidade dos serviços médicos recebidos pelo cidadão passe a
depender directamente do seu poder aquisitivo.
O Prof. Manuel Antunes tentou iludir
as questões recorrendo ao exemplo dos 10 € que alguns dos seus conterrâneos se
disponibilizariam para ‘co-pagar’ uma consulta de Medicina Geral e Familiar.
Não soube quantificar o impacto desses co-pagamentos, para grande número de
portugueses (os desempregados, os titulares de pensões sociais, os doente
crónicos, os idosos, etc.) numa situação em que para muitos não existem,
efectivamente, outras vias de acesso alternativas às disponibilizadas pelo
actual SNS. Propôs, no entanto, que Estado deixe de assumir cabalmente os seus
compromissos e as suas responsabilidades em troca de um modelo de mercado
(embora mitigado e partilhado sob a forma de co-pagamentos).
Não foi mais além e, por exemplo, não ousou quantificar o
previsível co-pagamento para uma intervenção cirúrgica cardio-torácica. Segundo
o seu raciocínio, será de prever que deixaria muitos utentes de fora. A
aquilatar pelo valor de cada intervenção cirúrgica, deduzido a partir do
montante dos ‘incentivos’, (10.000 euros conforme foi anteriormente revelado
nos Prós e Contras de 20.01.2013) e mantendo a mesmo esquema de construção de
preços, os valores dos co-pagamentos para esse tipo de cirurgia ultrapassariam
os 1000 euros ou seja seriam só para ‘ricos’, dentro da lógica fiscal do actual
Governo. Ninguém percebeu qual seria o rebate financeiro e assistencial no seu
CRI. Mas esse aspecto – o conferencista é useiro e vezeiro no reduzir do SNS ao
seu serviço – fica para outros carnavais…
Não sei porquê esta espúria sugestão do utilizador/pagador
‘construída’ pelo desabrido orador à volta do ‘exemplo das auto-estradas’ teve
a mercê de esbater a imagem de um esclarecido mensageiro, um eventual um
pregador de soluções acerca da sustentabilidade do SNS, para aparecer em
público como um bizarro indígena com espírito de ‘portageiro’.
E-Pá!
Etiquetas: E-Pá, Um país em sofrimento
1 Comments:
As declarações de Manuel Antunes no programa em causa são preocupantes. Não tanto pelo que disse, a asneira é livre e não se estranha que um tecnocrata possa não reunir a melhor informação para poder opinar sobre questões sociais ou modelos de saúde, mas por se tratar de uma figura de destaque e conselheiro para a Saúde da Presidência da República.
Comparar o acesso a cuidados de saúde ao acto de aceder a uma qualquer portagem de auto-estrada, não lembraria ao mais embotado cérebro ou empedernido coração. Trata-se de uma visão tão próxima de um terceiro-mundismo reaccionário, que custa a acreditar poder ser proferida por uma personalidade há muito inserida na cultura Europeia e de reconhecido mérito na actividade profissional.
Pensava eu que a imagem de País atrasado e dissoluto, onde Manuel Antunes parece mentalmente situar-se, era história passada!
“O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha, A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.”
O País Perdeu a Inteligência e a Consciência Moral - Eça de Queirós
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