domingo, agosto 17

Ébola: Evitar o “África, Adeus”!


A epidemia de febre hemorrágica viral (ébola) levanta, de novo, o problema de acessibilidade aos tratamentos, bem como as prioridades de investigação clinica em relação a doenças geograficamente (ainda) acantonadas. link
O mundo assistiu, impassível, à evacuação de dois voluntários norte-americanos da Libéria para os EUA a fim de receberem tratamento experimental.
O médico Kent Brantly e a enfermeira Nancy Writebol, contaminados no exercício das suas funções de assistência voluntária, ao serviço de uma missão evangélica (Samaritan’s Purse) à população infectada pelo vírus ébola (atitude profissional, filantrópica e humanitária relevante), na Libéria, foi-lhes administrado soro experimental ZMapp (desenvolvido pela empresa privada norte-americana Mapp Biopharmaceutical) com resultados à primeira vista satisfatórios link .
Levantou-se acerca dos critérios inclusivos deste procedimento alguma especulação.
Christophe Longuet (Director médico da fundação Merieux e membro do comité de ética do Inserm) salienta o facto de o medicamento ter sido usado experimentalmente, pela primeira vez, nos EUA, em dois profissionais de saúde, utentes que têm a obrigação de conhecer os riscos das medicações em fase de investigação  link. Recorda, este investigador, que se o medicamento tivesse sido prioritariamente exportado para ser administrado na Libéria - País que está no olho do furacão da cadeia epidemiológica em incontrolada expansão - para ser testado em pacientes autóctones infectados, tal atitude poderia ser considerada como o uso (e o abuso) de populações africanas para a função de ‘cobaias’.
Trata-se, na verdade, de passar ao lado de uma outra face do problema. Isto é do ‘complexo do colonizador’ em relação aos povos africanos.
Na verdade, esta situação deverá ser encarada de um outro modo. A primeira epidemia causada pelo vírus ébola foi referenciada em 1976 (há 38 anos!) link
Mas este mais recente surto evidencia como, em pleno séc. XXI, nem todo o potencial de investigação da Medicina foi posto ao serviço dos povos. Não existem estratégias universais no âmbito da Saúde, nem existem disponibilidade de recursos financeiros, técnicos e humanos conforme as necessidades objectivas e isso é um facto escabroso, nos tempos actuais, em termos humanitários. Existem, isso sim, por todo o Mundo áreas de “recursos limitados” (também designadas por ‘subdesenvolvidas’), de que o continente africano é um acabado exemplo, onde as crises epidemiológicas infecciosas acontecem recorrentemente. O escândalo que se arrasta em relação a outras doenças que grassam pelo continente africano, como por exemplo, a malária, deveriam envergonhar o Mundo. O ‘desastre malárico’ link desde há muito diagnosticado e prognosticado (a seu trajecto histórico confunde-se com o a da Humanidade) prossegue o seu inexorável caminho (agravado pelas resistências à cloroquina) causando a morte de 627.000 pessoas/ano link.
Na verdade, não está em causa que os primeiros ensaios com o ZMapp (uma formulação de anticorpos monoclonais ligados ao vírus ébola) tenham incidido em 2 doentes de raça caucasiana portadores da doença que sendo técnicos de saúde no terreno (Libéria), estavam devidamente informados do risco experimental, tendo consentido a aplicação terapêutica nos seus casos. O que parece mais adequado seria os ensaios clínicos em vez de decorrerem no Atlanta Hospital terem lugar num hospital de Monróvia devidamente equipado e adaptado para o efeito. A evidência visual, a proximidade e a objectividade são dados muito valorizados em África. Não é ocasional, nem furtuito, nem despiciendo que o soro ZMapp seja conhecido na gíria mediática como “secret sérum” link .
Finalmente, existe um dado que adquire uma importância fundamental na informação sobre a doença e no seu enquadramento cultural. Durante as várias crises de ébola várias entidades (oficiais e ONG) deslocam-se de todo o Mundo para os locais endémicos em África. As anteriores crises epidémicas têm sido muito circunscritas (zonas interiores rurais) e tido uma duração limitada. Na prática o que se verifica é que, para muitos africanos, a crises são [sempre] contemporâneas da presença de técnicos de saúde [‘brancos’] em África. Depois, a maioria desses técnicos desaparece em direcção aos Hospitais e Laboratórios da UE e dos EUA para novas missões ou prosseguirem investigações e voltarem a reaparecer num próximo surto. Daí que as epidemias sejam – à falta de mais e melhores informações – relacionados, por algumas populações africanas, com as expedições sanitárias de ajuda.
Mais uma razão para salientarmos a necessidade e a oportunidade de Kent Brantly e Nancy Writebol terem permanecido em Monróvia e fazerem aí o tratamento em ensaio.
“Africa Blood and Guts” foi a designação americana para um filme que conhecemos em Portugal como: “África, Adeus”…
E-Pá!

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2 Comments:

Blogger DrFeelGood said...

The new Doctors Without Borders (MSF) Ebola treatment centre near Monrovia, Liberia’s capital city, has 120 beds, making it the largest such centre so far. MSF plans to expand it to a 350-bed capacity.
link

11:05 da manhã  
Blogger e-pá! said...

É óbvio que têm de ser criados centros de tratamento de doentes portadores de infecção pelo vírus ébola (e de outras doenças tropicais infecciosas) no epicentro da crise epidemiológica, como está Monróvia. Seria humanitariamente intolerável continuar a ver doentes infectados a morrer na rua ou na valeta.
Todavia, este ‘investimento’ básico não invalida que eventuais (sublinhe-se a condicionalidade) benefícios resultantes de inovações terapêuticas (soros e/ou vacinas), nesta doença, sejam ‘demonstrados’ (evidenciados) aos olhos da população africana residente (em estado de choque e possuída por medos e superstições).

11:13 da tarde  

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