Ébola: Evitar o “África, Adeus”!
A epidemia de febre hemorrágica viral (ébola) levanta, de
novo, o problema de acessibilidade aos tratamentos, bem como as prioridades de
investigação clinica em relação a doenças geograficamente (ainda) acantonadas. link
O mundo assistiu, impassível, à evacuação de dois
voluntários norte-americanos da Libéria para os EUA a fim de receberem
tratamento experimental.
O médico Kent Brantly e a enfermeira Nancy Writebol, contaminados no exercício das suas funções de assistência voluntária, ao
serviço de uma missão evangélica (Samaritan’s Purse) à população infectada
pelo vírus ébola (atitude profissional, filantrópica e humanitária relevante),
na Libéria, foi-lhes administrado soro experimental ZMapp (desenvolvido pela
empresa privada norte-americana Mapp Biopharmaceutical) com resultados à
primeira vista satisfatórios link
.
Levantou-se acerca dos critérios inclusivos deste
procedimento alguma especulação.
Christophe Longuet (Director médico da fundação Merieux e
membro do comité de ética do Inserm) salienta o facto de o medicamento ter sido
usado experimentalmente, pela primeira vez, nos EUA, em dois profissionais de
saúde, utentes que têm a obrigação de conhecer os riscos das medicações em fase
de investigação
link. Recorda, este investigador, que se o medicamento tivesse sido
prioritariamente exportado para ser administrado na Libéria - País que está no
olho do furacão da cadeia epidemiológica em incontrolada expansão - para ser
testado em pacientes autóctones infectados, tal atitude poderia ser considerada
como o uso (e o abuso) de populações africanas para a função de ‘cobaias’.
Trata-se, na verdade, de passar ao lado de uma outra face do
problema. Isto é do ‘complexo do colonizador’ em relação aos povos africanos.
Na verdade, esta situação deverá ser encarada de um outro
modo. A primeira epidemia causada pelo vírus ébola foi referenciada em 1976 (há
38 anos!) link
Mas este mais recente surto evidencia como, em pleno séc.
XXI, nem todo o potencial de investigação da Medicina foi posto ao serviço dos
povos. Não existem estratégias universais no âmbito da Saúde, nem existem
disponibilidade de recursos financeiros, técnicos e humanos conforme as
necessidades objectivas e isso é um facto escabroso, nos tempos actuais, em
termos humanitários. Existem, isso sim, por todo o Mundo áreas de “recursos
limitados” (também designadas por ‘subdesenvolvidas’), de que o continente
africano é um acabado exemplo, onde as crises epidemiológicas infecciosas
acontecem recorrentemente. O escândalo que se arrasta em relação a outras
doenças que grassam pelo continente africano, como por exemplo, a malária,
deveriam envergonhar o Mundo. O ‘desastre malárico’ link
desde há muito diagnosticado e prognosticado (a seu trajecto
histórico confunde-se com o a da Humanidade) prossegue o seu inexorável caminho
(agravado pelas resistências à cloroquina) causando a morte de 627.000
pessoas/ano link.
Na verdade, não está em causa que os primeiros ensaios com o
ZMapp (uma formulação de anticorpos monoclonais ligados ao vírus ébola) tenham
incidido em 2 doentes de raça caucasiana portadores da doença que sendo
técnicos de saúde no terreno (Libéria), estavam devidamente informados do risco
experimental, tendo consentido a aplicação terapêutica nos seus casos. O que
parece mais adequado seria os ensaios clínicos em vez de decorrerem no Atlanta
Hospital terem lugar num hospital de Monróvia devidamente equipado e adaptado
para o efeito. A evidência visual, a proximidade e a objectividade são dados
muito valorizados em África. Não é ocasional, nem furtuito, nem despiciendo que
o soro ZMapp seja conhecido na gíria mediática como “secret sérum” link
.
Finalmente, existe um dado que adquire uma importância
fundamental na informação sobre a doença e no seu enquadramento cultural.
Durante as várias crises de ébola várias entidades (oficiais e ONG) deslocam-se
de todo o Mundo para os locais endémicos em África. As anteriores crises
epidémicas têm sido muito circunscritas (zonas interiores rurais) e tido uma
duração limitada. Na prática o que se verifica é que, para muitos africanos, a
crises são [sempre] contemporâneas da presença de técnicos de saúde [‘brancos’]
em África. Depois, a maioria desses técnicos desaparece em direcção aos
Hospitais e Laboratórios da UE e dos EUA para novas missões ou prosseguirem
investigações e voltarem a reaparecer num próximo surto. Daí que as epidemias
sejam – à falta de mais e melhores informações – relacionados, por algumas
populações africanas, com as expedições sanitárias de ajuda.
Mais uma razão para salientarmos a necessidade e a
oportunidade de Kent Brantly e Nancy Writebol terem permanecido em Monróvia e
fazerem aí o tratamento em ensaio.
“Africa Blood and Guts” foi a designação americana para um
filme que conhecemos em Portugal como: “África, Adeus”…
E-Pá!
Etiquetas: E-Pá
2 Comments:
The new Doctors Without Borders (MSF) Ebola treatment centre near Monrovia, Liberia’s capital city, has 120 beds, making it the largest such centre so far. MSF plans to expand it to a 350-bed capacity.
link
É óbvio que têm de ser criados centros de tratamento de doentes portadores de infecção pelo vírus ébola (e de outras doenças tropicais infecciosas) no epicentro da crise epidemiológica, como está Monróvia. Seria humanitariamente intolerável continuar a ver doentes infectados a morrer na rua ou na valeta.
Todavia, este ‘investimento’ básico não invalida que eventuais (sublinhe-se a condicionalidade) benefícios resultantes de inovações terapêuticas (soros e/ou vacinas), nesta doença, sejam ‘demonstrados’ (evidenciados) aos olhos da população africana residente (em estado de choque e possuída por medos e superstições).
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