domingo, agosto 10

SNS à la minute

depois do (ou em simultâneo com) ‘à la carte’ …
O SNS está, segundo tudo indica, a ser contaminado por mais uma ‘(pseudo)reforma estrutural’ segundo o modelo que os actuais tempos ditam e cujos resultados os portugueses sentem no pêlo. O que de ‘novo’ assoma na praça pública e que poderia ficar pelos seus aspectos caricatos, se não fossem graves e significativos, é um organismo auditor ‘armado’ em novo protagonista das políticas de saúde aparentemente em auxílio da inefável equipa governamental responsável pelas políticas na saúde, propondo ‘soluções expeditas’, mais uma vez, sem medir consequências. Neste País qualquer rato de cano (seja individual ou colectivo) arvora-se num emissor de sentenças sobre o SNS sempre na senda de esmagar a qualidade .
O Tribunal de Contas (TdC) numa auditoria aos cuidados de saúde primários resolveu levantar algumas questões sobre o seu funcionamento, dando uma no cravo e outra na ferradura link. É mais um exemplo da triste sina que é o meter a foice em seara alheia.
O TdC defende que não se deve excluir utentes das listas de médicos de família “por razões administrativas”, simplesmente por não haver contactos com os centros de saúde durante três anos, o que tem sido feito para fazer a “limpeza” de ficheiros a nível nacional. Recomenda assim que o despacho do secretário de Estado adjunto da Saúde que possibilitou esta "limpeza" seja revisto, para garantir que as pessoas não possam ser "eliminadas" das listas dos médicos de família.
Bem, estamos perante uma questão eminentemente política e não somente uma questão operacional. E será nesse campo que pode haver extravasamentos. A incompetência a residir no TdC não é do foro médico mas mais genérica, isto é, de um problema eminentemente político. De facto, aqui, pode não estar a ser respeitada a separação de poderes. De qualquer modo, trata-se de uma questão pertinente.
A ‘limpeza’ dos utentes ‘não frequentadores assíduos do SNS’ sempre foi politicamente denunciada como uma questão que visava a acomodação de um serviço público em acelerada contracção às carências de recursos humanos e da capacidade instalada e que o MS não estava interessado em resolver por clara submissão a constrangimentos orçamentais, torpedeando, deste modo, a universalidade do sistema e permitindo-lhe apresentar aos cidadãos a ilusão de ‘serviço feito’ em relação às candentes e insolúveis questões da cobertura nacional pelo SNS. Foi a época das medidas ‘à la carte’ - ditadas pela troika - e para as quais não existiu (por parte do MS) qualquer capacidade em preservar (salvar) as (boas) características do nosso SNS. Esta medida representa, na espessura da sua imensa ambiguidade, um ‘opting out administrativo’, forçado, deslocado e oportunista. Na verdade, os cidadãos ‘excluídos’ do sistema não auferiram de qualquer benefício facto que, per si, seria a confissão pública dos actuais dirigentes da saúde de que estaria em curso o desmantelamento do SNS.
Mas voltando ao TdC, salienta-se “… 1.657.526 utentes inscritos nos centros de saúde, em dezembro de 2012, não têm médico de família” para concluir que “…« o modo instituído de atribuição de um médico de família» mereceu observação, pois «pode condicionar a liberdade de escolha dos utentes e causar assimetrias de acesso, consoante os utentes estejam, ou não, integrados nas listas dos médicos de família». link. É, de facto, na interpretação destes dados que reside o problema. Faz bem o TdC em associar a universalidade à acessibilidade mas esta instituição deveria, por outro lado, centrar a sua audição no ‘tendencialmente gratuito’ cujo impacto e consequências parece ignorar e são cumulativas com a falta de médicos e de capacidade instalada nas unidades de cuidados primários de saúde.
O Colégio de Medicina Geral e Familiar da Ordem dos Médicos considerou estas questões como uma abordagem “… puramente economicista e miserabilista” e adiantou que o pronunciamento do TdC foi uma infeliz intromissão em questões políticas e técnicas.link
Mas caricato e petulante foi a solução ‘à la minute’ sobre o tempo (‘óptimo’ na perspectiva da sustentabilidade do sistema em colapso) de duração das consultas. Ao propor a redução do tempo de consultas de 21 (média actualmente estimada) para 15 minutos link o TdC não fez mais do que acentuar a pressão sobre a qualidade das mesmas, intensificar o risco do erro e ‘caixificar’ (termo usado nas antigas Caixas de Previdência) o atendimento.
Alguns dias depois o Governo aparece a discordar da sugestão do Tribunal Contas de reduzir tempos por consulta (para 15 minutos) link; link. Na verdade, o trabalho sugerido pelo TdC já tinha sido previamente ‘feito’ pela actual equipa governamental e a medida era redundante.
Quando se alargou para a função pública o tempo de serviço completo de 35 para 40 horas semanais link e se procedeu à extensão das listas de utentes de cada médico de 1500 para 1900 (que é justo salientar que neste passo obteve o incrível acordo dos sindicatos) link, intensificou-se a ‘produção por minuto’ passando ao lado da necessidade de mencionar quaisquer características para o ritmo e tempo das consultas mas as austeras medidas já tomadas incidiram efectivamente sobre estes parâmetros. Fazer mais no mesmo tempo e com menos meios só com aumento da cadência ou a automatização dos processos.
Aliás, a recomendação do TdC mostra-se perfeitamente dispensável já que a definição (e negociação) por parte do MS de objectivos (de produção) vai indirectamente ‘condicionar’ (e resolver) este tipo de problemas. Um outro ‘instrumento’ complementar é a obrigatoriedade (sob pena de multa de 45.000€) dos Centros de Saúde atenderem os doentes no próprio dia link medida burocrática em que este Governo se esconde por detrás de uma recomendação da ERS, e que como os profissionais de saúde sabem está completamente desfasada dos recursos humanos disponíveis. Mais recentemente o MS retoma, na área hospitalar, esta via (administrativa) com o despacho que cria (mais uma vez a cavalo de um relatório da ERS) tempos máximos para a realização de exames complementares e de diagnóstico link.
Passamos, com estes floreados, dos tempos ‘à la carte’ (imposto do exterior) para o menu ‘à la minute’, uma solução doméstica.
O problema não será o ‘serviço’, nem a ‘confecção’, mas o facto de assistirmos à tentativa de vender ‘fast food’ como sendo comida boa e saudável.
E-Pá!

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