SNS 35 anos: uma história feliz com final incerto
No mês em que se comemoram os 35 anos da criação do SNS, a
tentação para balanços do muito que se ganhou e também do muito que ainda falta
alcançar é grande. Tanta quanto a que suscita a avaliação do impacto da crise
que o país atravessa nos principais indicadores de saúde da população.
Mas falta informação. O melhor que se consegue são alguns,
poucos, dados que nos permitem traçar um retrato da situação até 2013, mas que
não reflectem, de todo, a dimensão dos potenciais “estragos” que se continuam a
operar.
Um dos indicadores mais preocupantes será, porventura, o do
envelhecimento da população, que avança a um ritmo alarmante, resultado, não
apenas da baixíssima taxa de natalidade mas também dos fluxos migratórios
negativos. E do aumento da esperança de vida que a melhoria das determinantes
sanitárias e a tecnologia médica têm conseguido manter. Entre 1974 e 2012, a
esperança de vida à nascença aumentou 12,7 anos, “corolário positivo das
alterações verificadas nas regressões da mortalidade, sobretudo da mortalidade
infantil (de 37,9‰ para 3,4‰) neonatal, de 1 a 4 anos e das mortes “evitáveis”,
com especial destaque para a mortalidade por doenças infecciosas, aponta Paula
Santana, geógrafa e professora da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, socorrendo-se de dados da OCDE.
Pese a melhoria dos indicadores de mortalidade, em 2013, o
saldo natural foi de -23.756. Um saldo persistentemente negativo, estrutural;
que se tem vindo a registar desde 1983 com o número de nados-vivos por mulher
fértil abaixo do nível mínimo de substituição de gerações (2,1).
Crise afugentou mais do que a guerra colonial
De acordo com dados oficiais, de 2011 a 2013, Portugal viu
abalar, em busca de novas oportunidades, mais de 350 mil nacionais. Em 2013 foi
mesmo ultrapassado em cerca de oito mil indivíduos o “recorde” de 120.239
emigrantes, registado em 1966.
Refira-se que nos três anos que antecederam a intervenção da
troika, já marcados pelos efeitos da crise financeira internacional no mercado
interno, pouco mais de 60 mil tinham seguido essa via.
Tal como os que saíram na década de 1960, para fugirem à
guerra colonial, à pobreza e à violência do regime, os que hoje abalam são, na
sua maioria, jovens, do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 20 e
os 34 anos. Fogem ao desemprego e à falta de expectativas de um futuro em
Portugal. Sendo a população jovem, activa e em idade fértil a que mais opta
pela emigração, a quebra da natalidade e o envelhecimento da população
remanescente têm tendência a aumentar.
“O envelhecimento da população, tanto no topo como na base
da pirâmide, verificado entre 1974 e 2012, é uma das consequências mais
visíveis da evolução desta demografia portuguesa: a população com mais de 65
anos cresceu (de 9,8% para 19,4%) e o grupo dos 0 aos 14 anos diminuiu,
passando de 27,7% para 14,8%”, destaca a investigadora, no estudo “Evolução dos
indicadores de saúde ao longo dos 35 anos do SNS”, apresentado há dias, numa
conferência organizada no âmbito das comemorações dos 35 anos do SNS.
Em fuga está também a população estrangeira, que tem vindo a
diminuir de forma consistente desde 2010. Não se sabe ao certo quantos saíram.
Sabe-se, todavia, que o número de pedidos de apoio ao retorno voluntário
dirigidos à Organização Mundial para as Migrações (OIM) não pára de aumentar.
Avanços, impasses e agravamento de indicadores sanitários
De acordo com a evidência disponível, apesar dos “progressos
assinaláveis em todos os indicadores de saúde dos portugueses”, conquistados
com a criação do SNS, ainda persistem assimetrias territoriais que, em alguns
casos, se agravaram.
A transição epidemiológica não ocorreu da mesma forma em
todo o país, fruto das assimetrias regionais que se registam ao nível da
demografia, das acessibilidades e do desenvolvimento económico e social.
Em 1974, Vila Real era o distrito que apresentava os piores
resultados no que toca à mortalidade infantil, neonatal perinatal. Setúbal e
Leiria lideravam o ranking pelas melhores razões. Ora, 40 anos volvidos e
apesar de os valores extremos já não se registarem nas mesmas regiões, o padrão
mantém-se, aponta Paula Santana: “nas mortalidades infantil e neonatal o
distrito do interior com piores valores foi Bragança; os distritos do litoral
com melhores valores foram Viana do Castelo e Braga”.
Assimetrias que se repetem quando o indicador é a
mortalidade específica em crianças entre os um a quatro anos de idade: os
distritos do interior revelam os valores mais elevados, com Beja e Braga a
apresentarem os piores resultados.
Passos de gigante… com alguns “sobressaltos”
Uma análise das causas de morte nas quatro últimas décadas
revela, desde logo, que não obstante os gigantescos progressos que se
registaram e que determinaram um aumento da esperança de vida à nascença sem
par a nível da “Europa dos 15”, os ganhos alcançados entre 1974 e 2012 teriam
sido ainda maiores “se não se observasse uma persistência ou até agravamento de
outras causas de morte em idade adulta, principalmente associados a
comportamentos e estilos de vida que ocorrem nos jovens adultos”, aponta Paula
Santana.
Por outro lado, a par da forte redução do número de óbitos
resultantes de doenças do aparelho respiratório e por causas externas, tem-se
vindo a registar um aumento do número de óbitos por outras causas, de onde
sobressaem os tumores malignos, e a diabetes. Os tumores, que em 1974
representavam 12,2% do total de óbitos, foram responsáveis, em 2012, por 23,9%.
Já a diabetes, que há 40 anos registava 0,6% do total de mortes, em 2012 foi
causa de 4,5% do total.
Um bom exemplo a nível europeu
Pesem as assimetrias registadas, a verdade é que Portugal
não tem por que se envergonhar no que toca aos progressos sanitários que
conseguiu alcançar quando comparado com os atingidos nas últimas quatro décadas
a nível europeu e mesmo mundial.
No grupo dos 22 países que integram a Europa Ocidental,
Portugal é o que apresenta a melhor evolução no que se refere à redução da
mortalidade infantil. E foi o que registou a maior redução média anual entre
1990 e 2013. Hoje, o país ocupa a sexta posição do ranking dos melhores
classificados da região, à frente de países como a Bélgica, Dinamarca, Áustria,
França Alemanha ou Holanda, de acordo com os resultados do maior estudo alguma
vez realizado a nível global sobre o assunto, publicado recentemente na The
Lancet. Num ranking, saliente-se, onde o Reino Unido, no contexto da Europa
Ocidental, apresenta taxas de mortalidade infantil superiores às registadas em
todos os demais 22 países da região, à excepção de Malta. A taxa de mortalidade
em crianças com menos de cinco anos de idade é, no Reino Unido, de 4,9 mortes
por mil nascimentos, mais do dobro da registada na Islândia (2,4/1.000), o país
com a mais baixa taxa de mortalidade naquela faixa etária. Neste parâmetro,
Portugal regista 3,5 mortes por mil nascimentos, ocupando o sexto lugar no
ranking dos países com melhores resultados.
De acordo com os mesmos dados, Portugal ocupa, a nível
global, a 10ª melhor posição no que se refere à taxa de mortalidade de crianças
com menos de cinco anos de idade, entre os 188 países que subscreveram, em
Setembro de 2000, os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). Muito à
frente de países habitualmente apontados como “referências”, como os Estados
Unidos da América a Austrália ou o Canadá.
Regressando à “Europa dos 15” (EU15) grupo relativamente ao
qual existem indicadores que permitem comparar “desempenhos” até 2011, o nosso
país está melhor, do que a média, em quase todos indicadores.
Mas também faz má figura, nuns quantos. O consumo de tabaco
não tem parado de crescer, tendo registado um aumento de 18,7% nos últimos 15
anos. “Enquanto em 1974 se registavam em Portugal menos 23 óbitos por cancro do
pulmão por 100 mil habitantes do que a média da EU15, essa causa de morte
aumentou 108% até 2011”. Já a média na UE15 manteve-se quase inalterada. Ainda
assim, “em 2011 registaram-se menos 11 óbitos por 100 mil habitantes em
Portugal do que na média da UE15”, informa Paula Santana no seu estudo.
Estamos, também, muito melhor do que estávamos em 1974 no
que toca à taxa de mortalidade antes dos 65 anos por 100 mil habitantes. Ainda
assim, registamos mais 19 mortes do que a média da EU15. Como também ficamos
“mal no retrato” no que toca à mortalidade por doenças cerebrovasculares e
diabetes.
Catarina Gomes, Jornal Médico 17.09.14
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