Por uma ética republicana e democrática na Administração Hospitalar
M A N I F E S T O
Introdução
Este manifesto tem por objeto a necessidade de um novo ethos
burocrático na administração pública, em particular na administração (pública)
hospitalar. Um ethos que, de acordo Du Gay (Du Gay, P. (2000). In praise of
bureaucracy. Weber, Organization, Ethics. London. SAGE Publications) , criticando os excessos do
modelo da Nova Gestão Pública, mormente, entre nós, os excessos da «Nova Gestão
Pública Hospitalar», prescreve a equidade e o mérito, e a supressão dos
favoritismos e inclinações pessoais, ideológicas, ou partidárias, no processo
de escolha e nomeação das administrações hospitalares.
Um tal ethos, que se pretende republicano e democrático, «é
indispensável para o bom governo do Estado democrático e prescindir dele não
faz senão pôr em perigo a equidade, as garantias de direitos e o próprio
bem-estar da cidadania. «É a ética burocrática [no sentido aqui por nós
preconizado] que a que nos protege da moral privada de cada um, a que impede
que o conhecido, o amigo, o familiar ou até o corruptor possam gozar de um
tratamento preferencial […]» (Ampudia
de Haro, F. (2014). Crítica de libros. En el elogio de la burocracia. Weber.
Organización. Ética. Reis. Ver Esp. Investig. Sociol.)
I – A carreira de administração em Portugal
I. Antes do 25 de abril
a) Na sequência do disposto no artigo 72.º, alínea a do
Decreto n.º 48358, de 27 de abril de 1968 (Estatuto Hospitalar), referente ao
pessoal superior de administração, veio a ser criada a carreira do pessoal de
administração hospitalar nos termos previstos nos artigos 37.º a 41.º do
Regulamento Geral dos Hospitais (RGH);
b) Foram criados neste RGH os lugares de: a) administrador e
administrador-geral, nos hospitais centrais; b)administrador, nos hospitais
regionais;
c) No n.º 3 do artigo 37.º do RGH, ficou consagrada a
exigência do curso de administração hospitalar como habilitação indispensável
ao exercício das funções de administrador hospitalar;
d) O Decreto n.º
499/70, de 24 de outubro, que deu nova redação aos artigos 37.º a 41.º do
RGH:
i. Veio prever na carreira de pessoal de administração
hospitalar os lugares de administrador de 1.º grau, administrador de 2.º grau e
administrador de 3.º grau;
ii. Reafirmou o curso de administração de administração
hospitalar como condição indispensável ao ingresso na carreira;
iii. Consagrou o concurso documental como meio de ingresso;
iv. Fixou o seguinte modo de progressão na carreira: a) ao
fim de 2 anos de bom e efetivo exercício, a obtenção, por despacho do Ministro
da Saúde e Assistência, do título de administrador de 3.º grau; b) a passagem,
ao fim de alguns anos de exercício de funções de administrador em hospitais
regionais ou centrais, e após concurso com aprovação em mérito absoluto, nos
termos referidos no artigo 39.º, n.ºs 1 a 3, a passagem aos graus seguintes das
carreiras.
Características e palavras-chave (sublinhadas): a)
profissionalização da função de administrador hospitalar; b) sistema de
carreira; c) habilitação específica; d) ingresso e acesso por mérito; e)
igualdade de oportunidades (no ingresso e no acesso).
II. Depois do 25 de abril
1. D.L. n.º 129/77, de 2 de abril e Decreto Regulamentar n.º
30/77, de 20 de maio
a) É prevista figura do administrador como órgão individual
de gestão;
b) O administrador, além de ser um órgão individual de
gestão, com competências próprias, é também, membro nato do conselho de
gerência (órgão colegial de gestão).
c) O lugar de administrador é preenchido pelos
administradores hospitalares de carreira colocados no hospital por concurso
público nacional;
2. D.L. n.º 101/80, de 8 de maio
a) Veio reorganizar a carreira de administração hospitalar;
b) São previstos 4 graus, de ingresso (4.º grau) e de acesso
(3.º, 2.º, 1.º);
c) O exercício de funções é feito, em comissão de serviço,
após concurso público, em lugares estruturados em 3 classes, de progressiva
diferenciação e complexidade: 1.ªclasse, 2.ª classe, e 3.ª classe;
d) O ingresso na carreira (como administrador de 4.º grau)
fica reservado a licenciados que tenham obtido diploma em Administração
Hospitalar pela Escola Nacional de Saúde Pública;
e) O ingresso na carreira (quadro único) é feito através de
concurso documental;
f) A progressão na carreira é feita mediante: a) tempo de
exercício na categoria anterior (grau) e em exercício de funções em hospitais
ou atividades equiparadas (classe); b) avaliação positiva por comissão de
avaliação constituída por administradores hospitalares; c) provas (apresentação
e discussão de trabalho preparado para o efeito);
Características e
palavras-chave (sublinhadas): a) reforço da profissionalização; b) clarificação
e melhoria da carreira; c) reafirmação da habilitação específica e maior rigor
a nível da formação; d) mérito absoluto no ingresso e no acesso; e) igualdade
de oportunidades (no ingresso e no acesso); f) valorização profissional
permanente e progressiva; g) avaliação pelos pares.
3. D.L. 19/88, de 21 de janeiro e Decreto Regulamentar 3/88,
de 22 de janeiro (de Leonor Beleza)
1. É criada a figura do administrador-delegado;
2. O administrador-delegado, órgão individual de gestão,
integra o órgão colegial de gestão, que agora passa a chamar-se conselho de
administração;
3. O número de membros do órgão colegial de gestão (Conselho
de Administração) aumenta de 3 para 5, podendo ir até 7;
4. As remunerações dos membros do Conselho de Administração
e do administrador-delegado são aumentadas significativamente, quer por aumento
significativo das remunerações base e despesas de representação quer por
atribuição de remunerações indiretas anteriormente não existentes (direito a
carro, por exemplo, para cada um dos membros do Conselho de Administração,
telemóvel, cartão de débito, etc);
5. Considerando, o n.º de hospitais existentes, à altura,
que era de cerca de 100, verificou-se, assim, um aumento muito elevado na
rubrica de despesas com remunerações a gestores;
6. Tendo-se verificado que a grande maioria dos novos
gestores (no mínimo, mais 200, quando comparado com o número de gestores
anteriores) se traduziram em novos lugares de pessoal de administração, é fácil
concluir, face ao novo nível de remunerações e prebendas, e ao facto de os
hospitais passarem a ter administradores «desocupados», do elevado aumento de
gastos que o novo sistema veio gerar;
7. Todos os membros do órgão colegial de gestão e o
administrador-delegado passaram a ser nomeados com base na confiança política;
8. Pese embora, a exigência legal de curriculum adequado, o
mérito dos novos gestores deixou de ser exigido, comprovado e avaliado;
9. Deixou de ser obrigatória a formação especializada em
administração hospitalar (e o diploma pela Escola Nacional de Saúde Pública);
10. Pese embora a exigência legal de curriculum adequado
para o exercício de funções de administração, são nomeados diversos elementos
sem qualquer qualificação profissional para o exercício de funções;
11. Dá-se a crescente politização e partidarização da
administração hospitalar;
12. A nomeação para lugares de administração nos hospitais
passa a servir para pagar favores políticos, arranjar empregos aos amigos ou
servir para outras finalidades lugares (candidatura a câmaras municipais, por
exemplo);
13. Os administradores da carreira de administração
hospitalar, formados, grande parte deles, na altura, a expensas do Ministério
da Saúde, após seleção para a Escola Nacional de Saúde Pública, passaram a
ficar em situação de menoridade de funções, senão totalmente desaproveitados.
14. Também aqui, verifica-se um esbanjar de recursos
públicos e o desaproveitamento de competências especializadas;
Características e palavras-chave (sublinhadas): a) princípio
do fim da carreira de administração hospitalar; d) nomeação por livre escolha;
c) politização e partidarização dos lugares de administração dos hospitais; d)
fim da exigência de habilitação específica para administrar hospitais; g)
ausência da exigência de mérito absoluto para o desempenho de funções de
administração; e) desigualdade de oportunidades e criação de situações de
privilégio nas nomeações para certas castas sociais (filiados no partido do
poder, familiares, amigos); f) desvalorização da necessidade de formação
profissional permanente e progressiva; g) ausência de avaliação de desempenho;
i) criação de condições de nepotismo e de corrupção; h) aumento desnecessário
do n.º de lugares de administração; i) aumento desnecessário de gastos com
remunerações a pessoal de administração; j) desvalorização e desaproveitamento
dos administradores hospitalares já integrados na carreira; l) aumento do n.º de
chefias intermédias, contratados por livre escolha com remunerações díspares e
elevadas, sem correspondência com habilitações nem competências
demonstradas;
4. Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro (de Durão Barroso) e
D.L. 188/2003, de 20 de agosto, que regulamenta a Lei, e criação dos
hospitais-empresa (Sociedade Anónimas de Capitais Exclusivamente Públicos, de
finais de 2002 a finais de 2005; depois, Entidades Públicas Empresariais, de
finais de 2005 até à atualidade).
1. Deu-se continuidade ao sistema de nomeação política
anterior;
2. Abre-se a porta à empresarialização dos hospitais (em
finais de 2002) e com ela à autonomia de gestão e ao recurso arbitrário aos
contratos individuais de trabalho, inclusive para lugares de administração
hospitalar, acentuando-se todos os aspetos negativos da partidarização e
politização iniciada com a legislação anterior;
3. Os encargos com os gestores intermédios aumentam, por
força de muitas novas nomeações, com afastamento dos administradores de
carreira, e atribuição de remunerações casuísticas que vão, na maioria dos
casos, muito para além, da remuneração dos administradores hospitalares de
carreira, com a agravante de se estar a remunerar principescamente gente sem
habilitações especializadas nem conhecimentos de relevo;
4. Sucedem as nomeações e contratações sem mérito, sem
critério e ao arrepio de toda a transparência e violação da igualdade de
oportunidades;
5. A carreira de administração hospitalar, na prática, é
progressivamente desvalorizada e esvaziada de conteúdo, em alguns casos com a
cumplicidade e intenção dolosa de alguns administradores hospitalares, objetiva
ou subjetivamente enfeudados politicamente, ou vendidos oportunisticamente ao
poder (seja ao poder dos novos gestores políticos, seja de representantes da
tutela);
6. Em termos formais, a carreira, pode dizer-se, já não
existe;
7. Os administradores hospitalares, os que estão integrados
na carreira (e ainda são muitos), são vistos como empecilhos, mesmo quando são
competentes e tidos por bem preparados para o exercício das funções de
administração;
8. Ao invés, continua a assistir-se ao assalto aos lugares
de administração de pessoas sem qualquer qualificação para os lugares que não
seja a sua ligação ao poder: a) encartados; b) familiares; c) amigos;
9. Tudo, em prejuízo do erário público, da competência, da
igualdade de oportunidades, da transparência, da ética republicana e de uma
ética democrática.
Características e palavras-chave (sublinhadas): a) fim da
carreira de administração hospitalar; d) alargamento do sistema de nomeação por
livre escolha para os lugares de administração e demais contratação de pessoal;
c) aumento da politização e partidarização dos lugares de administração e das
chefias intermédias.
Síntese geral:
1) Desde a sua criação até 1988, os hospitais foram
administrados por pessoal especialmente habilitado, inserido numa carreira, com
exigências rigorosas de ingresso e de acesso, assentes numa lógica de nomeação
por concurso, mérito absoluto, igualdade de oportunidades e transparência; os
administradores hospitalares eram prestigiados; os encargos remuneratórios com
o pessoal de administração eram irrisórios (só o administrador era
especialmente remunerado; os demais membros do conselho de gerência eram
gratificados com uma percentagem sobre a sua remuneração-base, continuando a
exercer as respetivas atividades, médica e de enfermagem, no hospital, a cujo
quadro pertenciam;
2) A partir de 1988 (Lei de Gestão de Leonor Beleza), dá-se
início à partidarização e politização da administração hospitalar; cessa a
exigência de habilitações especializadas; cessa a nomeação por concurso,
baseada em critérios de mérito, de competência, de transparência, igualdade de
oportunidades; aumenta, significativa e desnecessariamente, o número de lugares
de pessoal de administração, agravam-se os encargos com a remuneração dos
gestores (aumento de remunerações e atribuições de regalias novas); criaram-se
condições para o nepotismo e a corrupção na contratação de pessoal; os
administradores hospitalares de carreira são deliberadamente desvalorizados e
esvaziados de funções;
3) A partir da empresarialização dos hospitais, em finais de
2002, cessaram os concursos de ingresso e de acesso na carreira de
administração hospitalar; a carreira, na prática, deixou de existir; os
diplomados em administração hospitalar passaram a ser contratados em regime de
contrato individual de trabalho, com base nos critérios gerais em vigor, ou
seja, com base no critério principal da fidelidade partidária, ao amigo no
poder, ou ao poder de um amigo ou familiar.
Pese embora, haver administradores hospitalares em lugares
de administração, tal facto não retira a perversidade ao sistema.
O sistema de nomeação política para os lugares de administração
que perdura em Portugal desde Leonor Beleza (1988), com violação das regras da
transparência, da igualdade de oportunidades e do mérito, aferido com base em
critérios rigorosos, é uma excrescência à ética republicana e à ética
democrática.
Os privilégios de casta, que sempre foram características
dos sistemas aristocráticos ou de fidalguia (fidalgo=«filhos de algo, ou «filho
d’alguém»), passaram a inquinar o nosso
sistema republicano e democrático.
EM TEMPOS QUE SE REQUEREM DE MUDANÇA, urge, por isso, pôr
cobro a estas situações de claro favorecimento injustificado de uns (poucos) em
detrimento de todos os outros. Urge, igualmente, moralizar a Gestão Pública,
retomando a ética republicana e democrática na nomeação para os lugares de administração
hospitalar, com base no mérito, aferido através de um sistema de carreira justo
e racional e do método do concurso, segundo os princípios da igualdade de
oportunidades, da transparência, do interesse público e da boa administração
(«eficiência, economicidade e
celeridade»).
II - Repor a ética republicana e democrática na
Administração Hospitalar
Repor a ética republicana e democrática na Administração
Hospitalar passa pela efetivação dos seguintes cinco princípios:
1. Obrigatoriedade de habilitações específicas para o
exercício de funções de administração hospitalar;
2. Reposição do método do concurso público nacional para a
nomeação dos administradores hospitalares;
3. Criação de um sistema de nomeação com base no mérito dos
demais elementos que venham a exercer funções de administração hospitalar
(v.g., médicos e enfermeiros), com respeito pelo princípio da igualdade de
oportunidades e da publicidade,
4. Reestruturação e dinamização da carreira de administração
hospitalar;
5. Criação e implementação de um sistema de avaliação do
desempenho dos órgãos de gestão hospitalares;
Sugere-se ainda a criação de uma Ordem dos Administradores
Hospitalares, que, em conjunto, ou separadamente, com a Ordem dos Médicos e a
Ordem dos Enfermeiros, venha a colaborar com o Ministério da Saúde na criação e
implementação de um modelo de governação hospitalar que respeite a ética
republicana e democrática.
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3 Comments:
Concordo com o aqui dito!
Sou de opinião de que deveremos ir até às ultimas consequências para a clarificação cabal do futuro da nossa Carreira de AH.
Apelo a todos os AH que apoiem esta iniciativa.
Para além de tudo é a unica iniciativa que, no prazo de uma duzia de anos ou mais, foi tomada no sentido de retratar o ponto da situação da Carreira e de apontar caminhos de futuro.
Independentemente da formação, urge garantir que as instituições públicas têm órgãos de gestão competentes. Na grande maioria dos administradores hospitalares de formação, vejo que se deixaram enredar na política, ou que são amorfos ou mesmo incompetentes. A distribuição dos 80/20 não deve ser diferente, ie, do total 20% serão! de facto competentes.
O fenómeno da partidarização dos cargos públicos têm minado o funcionamento das instituições, nas quais, para além dessa infeção, existe demasiada influência dos partidos (nomeadamente por via dos sindicatos, e ultimamente por parte das ordens profissionais).
Continuamos a ver a saúde como arma de arremesso político, para assustar o povo, pondo em causa inclusivamente o modelo actual do SNS, quando ninguém, mesmo os partidos mais extremistas o propõe...
Quando não se conseguem discutir propostas políticas de mudança concreta à vida das pessoas, por exemplo como criar emprego, ou assegurar um futuro melhor para as gerações futuras, usa-se a saúde para distrair... Aconteceu com o fecho dos sanatórios, com a concentração das maternidades, com as sucessivas mudanças ao longo dos 35 anos do SNS...
Nem todas a mudanças terão sido positivas, mas o movimento no seu todo permitiu chegarmos a 2015 com o sentimento de que todo o esforço, coragem e empenho valeram a pena.
Não nos esqueçamos do passado, deixemo-nos de lutas de classes, e concentremo-nos no que nos deve mover: assegurar a melhoria do funcionamento do SNS!! Mobilize-mo-nós para isso, é não para lutas bacocas de ordens de vaidades!!!
Aos colegas que estejam de acordo em assinar o presente manifesto pede-se-lhes que comuniquem o seu nome, local de trabalho e respetivo número de identificação pessoal, para o endereço eletrónico saobasíliomagno@gmail.com, a fim de o mesmo (manifesto) ser remetido com todas as assinaturas à direção dos partidos políticos nos termos da estratégia já conhecida.
Mais se solicita, a cada um, que divulgue o Manifesto por todos os colegas que conheça e de quem tenha os respetivos endereços eletrónicos. Faremos o mesmo.
O prazo para envio das respostas é até ao próximo dia 28 de fevereiro.
A partir dessa data iremos fazer chegar o Manifesto e respetivas assinaturas, aos partidos, pelos meios que considerarmos mais adequados.
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