Too much cold in december
Narrativa romântica
O frio “extremo” de dezembro. “Sofro de doença respiratória
crónica, com crises ocasionais que me derrubam. No fim do outono passado, ainda
fora do pico das gripes, tive uma crise horrorosa. Como era domingo, dirigi-me
ao hospital da área. Fiz a inscrição e antes sequer de entrar na sala tive de
pagar a consulta (20 €), assim como uma lista de consultas que me disseram ter
tido ao longo de dez anos. Paguei, não gosto de ficar a dever, achando estranho
que só ao fim de dez anos o hospital me confrontasse com a dívida. Entrei e,
vendo pouca gente na sala de espera, admiti que não demoraria a ser assistida.
Chamada para triagem, a enfermeira fez o que tinha a fazer e perguntei qual o
tempo de espera aproximado. Para minha surpresa disse-me ser superior a seis
horas; estranhei, por não ver ninguém, ao que me respondeu não haver pessoal
suficiente. Face a este cenário, resolvi ir-me embora. Como tenho ADSE, resolvi
ir a um dos hospitais privados de Lisboa, não sem antes me ter dirigido ao
balcão do secretariado para reaver o valor da consulta, uma vez que não ia ser
consultada. Para meu espanto, não me podiam devolver o dinheiro: o funcionário
não conseguiu explicar a razão. Chegada ao hospital privado, sou atendida em
dez minutos, só tinha uma pessoa à frente, foi-me diagnosticada a doença,
passada a respectiva receita e no final da consulta paguei 19 €.”
Este episódio não é ficcional, apenas lhe retirei as
referências do tempo, lugar e pessoa. Não se tratou de uma situação grave,
apenas de uma consulta de urgência, entre milhares que acorrem aos hospitais,
devido à fragilidade do sistema em cuidados primários. Não ocorreu nem em pico
de gripe, nem no “frio extremo de dezembro”. Três conclusões imediatas: as
urgências foram desfalcadas de pessoal; os hospitais foram compelidos a filar
devedores de dez anos, sem consciência da dívida incumprida, quando em estado
de necessidade se apresentem a solicitar tratamento. Um primor de
humanização. Os doentes dirigem-se ao sector privado, onde são assistidos
mais depressa, com conforto e até por menos dinheiro.
Poderá haver quem entenda que os hospitais públicos se
tornaram incapazes de resolver problemas ligeiros em tempo útil, estão
obcecados pela recuperação financeira, não devolvem o que cobram por serviços
não prestados e empurram involuntariamente os doentes para o privado. Nada
disso. Para o Governo, na Saúde, apenas houve “frio extremo em dezembro”. Não
se observou encerramento de centenas de camas de agudos, o pessoal saído foi
sempre renovado, as unidades de saúde familiar continuaram a ser criadas a bom
ritmo, os Cuidados Continuados Integrados alastraram como nódoa de azeite, as
equipas de urgência não foram reduzidas ao mínimo, não houve emigração de
médicos ou enfermeiros, a população não envelheceu, nem se tornou mais
dependente, agora até come melhor e goza de boa vida, as horas extras
continuaram a ser pagas pelo valor antigo, os ordenados do pessoal não sofreram
cortes de um quinto, a classe média não empobreceu, o desemprego nunca existiu
e até os chefes de equipa, atingido o limite de idade para urgências, se
mantiveram galhardamente ao serviço como rapazes e raparigas de 30 anos. Para o
Governo, a crise das urgências nunca existiu.
Correia de Campos JP 09.02.15
Etiquetas: Crise e politica de saúde
1 Comments:
Ex.mo Senhor Professor Correia de Campos,
Haverá milhares de histórias idênticas à que descreve sobre a idas à urgência.
Claro isso representa uma (des)organização "política" do nosso SNS. Não é aleatória, é promovida.
O estado de negação é decorrente da consciência de que falharam em toda a linha, mas admiti-lo é duro demais o que implicaria refazer a consciência e isso sigificaria a despersonalização dos envolvidos. Entre uma coisa e outra negam-se as evidências.
Agora a questão das taxas:
- Bem ou mal elas são devidas pelo acesso e não para pagar o service (!);
- sim são elevadas...Isso é de facto o problema;
- O valor das taxas facilita a concorrência ao sector privado, assim como a desorganização do SNS.
O liberalism não é de facto um Humanismo.
Cumps
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