segunda-feira, fevereiro 9

Too much cold in december

Narrativa romântica
O frio “extremo” de dezembro. “Sofro de doença respiratória crónica, com crises ocasionais que me derrubam. No fim do outono passado, ainda fora do pico das gripes, tive uma crise horrorosa. Como era domingo, dirigi-me ao hospital da área. Fiz a inscrição e antes sequer de entrar na sala tive de pagar a consulta (20 €), assim como uma lista de consultas que me disseram ter tido ao longo de dez anos. Paguei, não gosto de ficar a dever, achando estranho que só ao fim de dez anos o hospital me confrontasse com a dívida. Entrei e, vendo pouca gente na sala de espera, admiti que não demoraria a ser assistida. Chamada para triagem, a enfermeira fez o que tinha a fazer e perguntei qual o tempo de espera aproximado. Para minha surpresa disse-me ser superior a seis horas; estranhei, por não ver ninguém, ao que me respondeu não haver pessoal suficiente. Face a este cenário, resolvi ir-me embora. Como tenho ADSE, resolvi ir a um dos hospitais privados de Lisboa, não sem antes me ter dirigido ao balcão do secretariado para reaver o valor da consulta, uma vez que não ia ser consultada. Para meu espanto, não me podiam devolver o dinheiro: o funcionário não conseguiu explicar a razão. Chegada ao hospital privado, sou atendida em dez minutos, só tinha uma pessoa à frente, foi-me diagnosticada a doença, passada a respectiva receita e no final da consulta paguei 19 €.”
Este episódio não é ficcional, apenas lhe retirei as referências do tempo, lugar e pessoa. Não se tratou de uma situação grave, apenas de uma consulta de urgência, entre milhares que acorrem aos hospitais, devido à fragilidade do sistema em cuidados primários. Não ocorreu nem em pico de gripe, nem no “frio extremo de dezembro”. Três conclusões imediatas: as urgências foram desfalcadas de pessoal; os hospitais foram compelidos a filar devedores de dez anos, sem consciência da dívida incumprida, quando em estado de necessidade se apresentem a solicitar tratamento. Um primor de humanização. Os doentes dirigem-se ao sector privado, onde são assistidos mais depressa, com conforto e até por menos dinheiro.
Poderá haver quem entenda que os hospitais públicos se tornaram incapazes de resolver problemas ligeiros em tempo útil, estão obcecados pela recuperação financeira, não devolvem o que cobram por serviços não prestados e empurram involuntariamente os doentes para o privado. Nada disso. Para o Governo, na Saúde, apenas houve “frio extremo em dezembro”. Não se observou encerramento de centenas de camas de agudos, o pessoal saído foi sempre renovado, as unidades de saúde familiar continuaram a ser criadas a bom ritmo, os Cuidados Continuados Integrados alastraram como nódoa de azeite, as equipas de urgência não foram reduzidas ao mínimo, não houve emigração de médicos ou enfermeiros, a população não envelheceu, nem se tornou mais dependente, agora até come melhor e goza de boa vida, as horas extras continuaram a ser pagas pelo valor antigo, os ordenados do pessoal não sofreram cortes de um quinto, a classe média não empobreceu, o desemprego nunca existiu e até os chefes de equipa, atingido o limite de idade para urgências, se mantiveram galhardamente ao serviço como rapazes e raparigas de 30 anos. Para o Governo, a crise das urgências nunca existiu.

Correia de Campos JP 09.02.15

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ex.mo Senhor Professor Correia de Campos,

Haverá milhares de histórias idênticas à que descreve sobre a idas à urgência.

Claro isso representa uma (des)organização "política" do nosso SNS. Não é aleatória, é promovida.
O estado de negação é decorrente da consciência de que falharam em toda a linha, mas admiti-lo é duro demais o que implicaria refazer a consciência e isso sigificaria a despersonalização dos envolvidos. Entre uma coisa e outra negam-se as evidências.
Agora a questão das taxas:
- Bem ou mal elas são devidas pelo acesso e não para pagar o service (!);
- sim são elevadas...Isso é de facto o problema;
- O valor das taxas facilita a concorrência ao sector privado, assim como a desorganização do SNS.
O liberalism não é de facto um Humanismo.
Cumps

10:01 da tarde  

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