Destruição do SNS
"Estamos programados para uma situação ideal e basta uma
alteração, como a gripe, para a rotura. O que se destruiu em dois ou três anos,
porque quisemos fazer um brilharete perante a troika, cortando mais do que nos
era pedido, irá demorar décadas a reconstruir. Temo pelo SNS", admite
Carlos Cortes, presidente da secção regional do centro da Ordem dos Médicos,
para quem "a fórmula Paulo Macedo não está a funcionar".
Medicina Interna Hospital Garcia da Orta
"Aqui praticamos medicina de guerra. A urgência foi
dimensionada para 21 doentes e chegam a estar 60. Há pessoas amontoadas,
internamentos que ocorrem por inteiro na urgência e doentes ventilados que
deveriam estar nos cuidados intensivos. E também há muitas falsas urgências.
Boa parte da urgência é assegurada por médicos sem qualquer especialidade e com
pouca experiência, que pedem exames de forma indiferenciada. O que torna tudo
mais moroso e mais caro. O problema começa nos centros de Saúde que não têm capacidade
de atender todos os doentes e na central de consultas. Reconvertemos cada
espaço em sala de consultas, até salas de arrumos. Mas aí não há aparelhos de
medir a tensão, nem impressora para imprimir as receitas. Na minha consulta,
sigo doentes que poderiam ser atendidos no centro de Saúde, mas como há um
limite de prescrição imposto aos médicos de família, estas pessoas acabam por
ter de ser vistas aqui.
Já fui chamado para duas paragens cardiorrespiratórias, ao
mesmo tempo. Todos fazemos horas a mais. O pior é quando os doentes não
reconhecem o esforço. Já me cuspiram na cara. Mas há quem nos agradeça. A filha
de um bombeiro, que tinha sido aqui tratado, veio oferecer-me um extintor no
aniversário da morte do pai."
Pneumologista Centro Hospitalar Lisboa Norte
"Faço 12 horas seguidas de urgência e nem tenho tempo
de ir à casa de banho, às vezes nem de comer. É um ritmo alucinante e está toda
a gente a fazer um esforço extra. Há semanas em que trabalho 60 horas. Não
sobra tempo para estudar ou fazer investigação o que é essencial na nossa
profissão. Ainda há uma grande solidariedade entre as equipas, mas estamos
todos a atingir o limite, o que prejudica todos. Os especialistas não têm tempo
para nos formar. Os doentes não recebem o atendimento que merecem. Em alturas
críticas, de gripe ou legionela, ficamos sobrelotados. Na consulta, perdemos
dez minutos a tentar abrir o programa de passar receitas. E depois é preciso
abrir outro programa para as análises, outro para ver a lista de doentes... O
computador é muito lento e a informação não é cruzada. Não temos acesso aos
dados dos centros de saúde. Há uma espera de seis meses a um ano para uma
consulta. Doentes com asma, Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica, não podem estar
tanto tempo sem serem vistos. Não consigo fazer o trabalho como gostaria e o
que faço é a custo pessoal. Quando acabar a especialidade, não sei se terei
lugar em Portugal. Poderei emigrar. Mas custa-me pensar que o País investiu
tanto em mim para eu depois me ir embora."
Cirurgião maxilo facial Hospital São José
"Em vários momentos se elaboraram planos de
contingência, a pensar em situações de crise. A gripe aparece todos os anos.
Não é inesperada, sabemos que vão ocorrer casos. Não há razão para esses planos
não serem acionados nesta situação atempadamente. O objetivo seria não deixar
acumular tantas pessoas: eu não consigo ver os meus doentes porque não se
consegue circular na urgência, com macas por todo o lado. Houve um aumento de
40% de doentes com pulseira laranja. São os muito graves. Este ano, a situação
complicou-se ainda mais porque, como o vírus da gripe a circular sofreu uma
mutação, está a afetar muito mais gente. E isso já se esperava: há alguns
meses que os sindicatos vinham a pedir ao ministério para que se reorganizasse
o espaço das urgências e se avaliasse o rácio de pessoal. Não é depois de a
casa estar a arder que se tomam medidas. Além disso, continuamos a receber
doentes de prioridade verde, ou seja, nenhuma, e que só nos chegam por causa do
desinvestimento nos cuidados de saúde primário. Há ainda a questão do
material... claro que responde aos parâmetros mínimos, mas antigamente era
suíço e agora é sulcoreano. E sim, nos privados, a qualidade do que usamos é
superior..."
MGF, USF Santa Comba Dão
"Criámos esta Unidade de Saúde Familiar numa tentativa
de rumar contra a maré e de facto isto parece um oásis, porque nos organizamos
em função do doente, da sua disponibilidade: abrindo até às oito da noite ou ao
sábado, por exemplo. Mas é cada vez mais difícil cumprir os objetivos que nos
são impostos. Falta tudo: médicos, enfermeiros, administrativos. Uns emigram
outros reformam-se. Como não temos tempo de ver toda a gente no centro de
Saúde, vai tudo parar às urgências. Aqui temos uma população muito idosa,
com muitas patologias e em consultas de 15 minutos, como nos impõem, é
impossível prestar-lhes a assistência de que necessitam. E até está estudado:
quanto mais tempo se dedica a um doente, menos dinheiro se gasta. Eu precisava
de estar com os meus doentes. Ouvi-los, poder ajustar-lhes a medicação com
calma. Sinto que não lhes presto o melhor serviço."
Patologista Clínico CH Médio Tejo
"Este Centro Hospitalar é um paradigma da dispersão de
recursos. Há três hospitais a 30 km uns dos outros: Abrantes, Torres Novas e
Tomar. Os profissionais e os doentes andam de um lado para o outro, o que
implica mais despesa. Os hospitais têm dificuldade em adquirir material, às
vezes falta-nos medicação básica. Nunca sabemos se está disponível aquilo de
que necessitamos, porque não há reposição de stock. E acabamos por passar mais
tempo a tentar resolver estas situações do que a tratar dos doentes. Hoje, o
grande problema dos médicos não é pensar na melhor estratégia terapêutica, mas
saber se terá os meios para a levar a cabo. O que se transforma numa grande
sensação de impotência. Os doentes não têm o mesmo atendimento nas urgências.
Há menos médicos e os casos que aparecem são mais graves. Mas a solução não é
reestruturar as urgências, é reforçar os centros de Saúde. Os profissionais
emigram ou mudam para o privado não é por razões financeiras. É porque não se
sentem bem com o juramento que fizeram."
Neurologista CH Lisboa Central
"Nos últimos anos, saíram do meu serviço cinco médicos,
que não foram substituídos, de uma equipa de 12. Os doentes que eram seguidos
na consulta ficaram sem médico e não sabemos quando poderão vir a ter. Não há
qualquer hipótese de os distribuir pela equipa que sobra, já que estamos
completamente sobrelotados, com tempos de espera de nove meses a um ano para
uma consulta. É inadmissível! Estamos a falar de doentes com Parkinson,
epilepsia. Que deviam ser vistos de três em três meses. Quando o doente me
chega ao consultório, vem sempre revoltado, porque esteve demasiado tempo à
espera. Gasto os primeiros cinco minutos a explicar o que se passa. E depois só
sobram dez minutos as consultas não podem exceder os 15 minutos. O que é muito
pouco, se tivermos em conta que muitos doentes têm dificuldade em mover-se ou
falar. Mas o sistema não me permite mudar os tempos das consultas. É desumana a
forma como tudo isso se processa. Sinto que não dou atenção suficiente às
pessoas, só que não tenho forma de o contornar. Na urgência, há macas coladas
umas às outras, a ocupar cada espaço vazio. Não conseguimos sequer chegar aos
doentes. E há escalas de banco, nocturnas, em que está apenas um interno a
trabalhar. No Hospital de São José recebemos doentes de todo o Sul do País e
atendemos cada vez mais pessoas porque vários hospitais aqui à volta deixaram
de ter urgência. Vêm do Algarve, do Alentejo, com problemas graves, como crises
convulsivas, ou síndromes autoimunes, e acabam por ser vistas por um médico
que ainda nem é especialista. O nosso trabalho, que devia ser de discussão
dos casos, em conjunto, tornou-se solitário. Perigosamente solitário."
Visão, medicina de guerra, 29.01.15 link
Etiquetas: Crise e politica de saúde, Paulo Macedo
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