terça-feira, agosto 4

Paulo Macedo, se dúvidas houvesse ...


O Governo tem-se entretido com benesses pontuais na Saúde: 30 ambulâncias entregues a corporações de bombeiros, em luzida parada no inclemente céu de Julho, pagamentos a médicos que, tendo de há muito concluído concursos, se encontram ainda sem provimento, 22 milhões para 16 mil cirurgias, abertura de candidaturas a centros de excelência e outras bondades avulsas, tão merecidas que só espanta terem esperado quatro anos para serem reconhecidas.
E agora, um programa recheado de piedosas promessas: médico de família para todos, devolução de hospitais a Misericórdias, livre escolha no SNS, ADSE aberta a trabalhadores do Estado a recibo verde, enfermeiro de família, mais genéricos. Sem que a palavra maldita “privatização” venha perturbar os espíritos. Do programa e das suas admiráveis promessas falaremos noutra ocasião.
Agora enfrentemos a dura realidade para a qual o Governo fez resvalar o SNS: a penúria financeira dos serviços públicos, nenhuma reforma que trouxesse ganhos de eficiência e a irrefutável substituição por encargos das famílias, das dotações financeiras que o Governo nega ao SNS. Nada melhor que a Conta-Satélite da Saúde, publicada pelo INE em 23 de Julho, que analisa dez anos de gastos em saúde, entre 2002 e 2012 e segue por 2013 e 2014, para observar a tendência registada em quase quatro anos de Governo da coligação.
A conta-satélite agora publicada desmente os fantasmas de insustentabilidade do SNS que tanto agradam aos nossos mercadibilistas e documenta o lento mas visível deslizar do financiamento por mais sangria às famílias e maior fatia oferecida aos privados, na prestação. Portugal era acusado pela direita de estar entre os países da União que maior percentagem do PIB gastavam em saúde, um luxo inadmissível num pequeno e atrasado país. Desde os 9,4% do PIB de 2005 (um meio ano de Sócrates, onde se pagaram 1,8 mil milhões em dívida, de Santana Lopes), aos 9,9% de Sócrates em 2009, ano de eleições e também de comportas abertas por ordens de Bruxelas, baixámos para os 9,3% em 2012 e 9,1% em 2014, neste final de consulado de Passos. Os antigos profetas da desgraça que vaticinavam o fim do SNS pela explosão financeira até já se reconverteram em seus defensores, quando viram que em 2014 a despesa corrente em saúde cresceu (1,3%), abaixo do PIB (2,2%). De vilão, o SNS passou a herói da contenção.
A questão seguinte consiste em conhecer o destino da despesa corrente, se prestadores públicos, se privados. Se o encaminhamento para os primeiros aumentar, tal significa que o Governo atribui mais elevada prioridade financeira à saúde do que em exercícios anteriores; se ele baixar, significa que o Governo decidiu três coisas em simultâneo: gastar menos em saúde comprimindo a dotação do SNS, sacar mais das famílias e promover a gradual privatização do sistema. Ora a parte da despesa corrente total que foi para prestadores públicos que havia atingido, em 2002, 73,3%, (um exercício de quatro meses do PS e de oito meses da coligação de direita), estabilizou em 71,8% em 2004 e 2005, para se reduzir por maior eficiência e controlo da despesa, a 69% em 2008, voltando a subir para 70,4% em 2009, caindo após 2011, de forma abrupta, para 66,2%, em 2014. Com tardias correcções de erros anteriores (subida da hora/médico, mais pessoal nas urgências, vacina contra hepatite C, ambulâncias novas, mais cirurgias e endoscopias, bem como dívidas de 1,5 mil milhões de medicamentos e dispositivos médicos, entre outras benesses ainda por conhecer) não será abusivo pensar que a despesa pública vá de novo disparar, apenas pelo calendário eleitoral.
O ponto seguinte consiste em saber quem paga estes encargos: as administrações públicas, as famílias, os financiamentos voluntários (seguros)? É inegável que com este Governo atingimos em 2014 o mais elevado gasto das famílias com a saúde em relação ao PIB, um dos maiores da União e até da OCDE, um terço do financiamento total. Os gastos directos das famílias atingiram 27,7% e se adicionarmos os 5,4% de seguros voluntários chegamos a 33,1%, a que há que somar ainda a redução dos benefícios fiscais. Alguma redução dos encargos das famílias, ocorrida em 2013, tem uma dupla e excepcional explicação: em 2013, as famílias gastaram menos em medicamentos que no ano anterior, fruto das medidas forçadas de contenção de preços. Certamente também por ser o ano de “enorme” carga fiscal que reduziu ao osso o rendimento disponível. Não faltará quem louve o Governo por esta política, mas receio que se trate de emagrecimento sob pressão. Aliviada esta, abandonada a terapêutica hormonal, aí vai o gasto em medicamentos disparar de novo. E já cá não estará este Governo.
Em resumo e em termos nominais, entre 2011 e 2014, a despesa corrente total em saúde reduziu-se em 1,318 milhares de milhões de euros (MM). A parte maior da redução coube ao Estado (SNS), 1,145 MM, essencialmente sob a forma de cortes orçamentais em vencimentos, horas extras, em não substituição de efectivos e menor gasto com farmácias. As famílias também reduziram os seus gastos correntes em saúde em 0,173 MM, mas aumentaram a sua parte no financiamento, naquele período de redução geral de rendimentos.
Onde usaram o seu dinheiro as famílias? Em 2013, 40% em consultórios médicos, 25% na farmácia, 15% em clínicas e hospitais privados e 10% em dispositivos e outros bens médicos. Comparado com o ano anterior, as famílias gastaram mais 0,9 p.p. em dispositivos, mais 0,6 p.p. em clínicas privadas e menos 1,8 p.p. na farmácia, bem como menos 0,8 p.p. em consultórios. De entre as famílias, a classe média e alta está a frequentar cada vez mais o privado, não só por este ter melhorado a sua oferta, mas sobretudo pela penúria imposta ao SNS, que o impede de responder como deveria.
Correia de Campos, JP 03.07.15

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