quarta-feira, julho 26

Desenhando o “Novo” NHS


Riscos e semelhanças com SNS

A evolução apontada para o NHS, na sua forma mais drástica, não está isenta de riscos significativos e poderá não acontecer nos próximos 5 anos. Nas condições em que (antevemos) o SNS irá funcionar nos próximos 3 anos não nos parece possível a sua transposição para Portugal. Vejamos porquê.

4. Riscos da evolução?
a) O sucesso no mercado de saúde pode conduzir à multiplicação do nº de prestadores especializados nos diferentes níveis (CP, HH, CC) de que resultará: i) fragmentação de cuidados (problemas de coordenação); ii) pressão para aumento dos preços dos actos em que privados são maioritários; iii) maiores gastos de monitorização e controlo. Pode conduzir também a: i) alguns prestadores são lucrativos outros não, seguindo-se a aquisição destes por aqueles e, eventualmente, a criação de monopólios locais que enfraquecem as vantagens do mercado; ii) perda de equilíbrio dos HH públicos com maiores custos fixos, pela responsabilidade dos casos mais graves (ex. emergência, UCI, SIDA), devido à perda de margem que antes equilibrava as perdas naqueles doentes;
b) Por outro lado os benefícios para os doentes resultantes do mercado (escolha, qualidade, tempo de acesso) podem ter contrapartidas “pesadas”: i) indução de actos, de que podem resultar benefícios (mais diagnóstico e tratamento mais cedo) mas também perigos para a saúde (ex. TAC a mais e exposição radiológica), puro desperdício (duplicados) e aumento de gastos para o Estado; ii) reforço dos actos curativos (versus prevenção);
c) O sistema de preços actual é complexo (ex. HH e internamento) e poderá vir a ser muito mais atendendo à necessidade de:
Considerar outros factores diferenciadores em hospitais ”normais” (ex. maior severidade à admissão, melhor qualidade e segurança dos actos);
Retribuir adequadamente os prestadores privados especializados – por ex., um hospital sem urgência e sem serviços a funcionar 24/365, sem custos de ensino/investigação, que programe o internamento quase a 100% terá custos muito menores que os dos HH do SNS e não deverá ser pago de modo idêntico àqueles;
Evitar que os HH que façam desnatação (seleccionam actos mais interessantes, por ex., em função do preço/custo, da variabilidade e tempo de permanência) provoquem desequilíbrios “fatais” nos restantes;
Evitar que os preços provoquem indução de actos, muitos dos quais duplicados ou inapropriados (ex. CE, CA, diagnóstico e tratamento de crónicos leves – ex. MFR);
d) A multiplicação de Unidades e de prestadores com diferenças consideráveis (ex. na localização, no perfil e nas condições de oferta) justifica um esforço de negociação no sentido de se obter o melhor resultado global, ao invés de fixar preço único. Porém essa tarefa parece, à partida, simultaneamente esmagadora e contraproducente (face aos custos de fixação, monitorização, revisão). Não parece haver alternativa a estabelecer contratos plurianuais (3 anos?) de orçamento global e com preços indexados à inflação, após seleccionar adequadamente os parceiros que disponham dos requisitos de solidez, capacidade técnica, experiência e que dêem garantias de funcionamento seguro/de qualidade (limita a concorrência em qualquer caso);
e) Sistema de informação e infra-estrutura: i) pode haver problemas e resultados clínicos pobres se a informática não oferecer resposta capaz (receber/verter informação para processo clínico de qualquer prestador, garantir produção de indicadores clínicos e incluir protocolos/”boas práticas”, alertar para prevenir duplicação actos); ii) idem de controlo se não for garantida a compatibilidade e integração com o sistema do SNS ou se não for possível automaticamente (remotamente) obter a informação e detalhá-la/explicá-la desagregando-a até ao doente e ao episódio; iii) se o stock de gestores e peritos de regulação não for suficiente e de qualidade. O crescimento das despesas de administração do sistema será um facto, desconhecendo-se apenas a sua repartição e dimensão – espera-se que não resulte desmesurado como nos EUA;
f) A concorrência na lógica de Grupos Económicos comporta riscos, sobretudo se S. Informático, a monitorização e a fiscalização não estiverem “à altura” (tomar nota: a realidade é complexa; há muitas oportunidades de fraude, de fugir aos requisitos e condições de qualidade/segurança desejadas; os Grupos são sofisticados). Esta lógica pode prejudicar a cooperação necessária (para continuidade cuidados e evitar inapropriação; ensino e investigação, definição e difusão de “boas práticas”, etc.). Pode haver maior foco em cuidados programados e em crónicos nos CC e menos empenho em: prevenção, ensino e investigação; emergência e cuidados agudos com permanência e encargos elevados – aumento do tempo de espera nos menos “interessantes”;
g) O SNS deve rever a forma de retribuição do pessoal para não perder duplamente: reduzir a oferta em actos com margem positiva e perder melhores profissionais de saúde para prestadores privados (provocaria: problemas na performance e na situação financeira, desequilíbrio na estrutura de pessoal, perda de capacidade negocial). Será necessário manter CIT definindo um sistema de incentivos em função de resultados, exigir dedicação e não concorrência – também cativar os funcionários actuais para CIT e para maior envolvimento na sua Unidade.

O Estado precisa de resolver a contradição em que se encontra:
1ª) Tem recursos que quer rentabilizar (ex. HH e pessoas) sentindo que o mercado pode conduzir à sua inviabilização, com pesados custos globais, embora não lhe restem dúvidas que não tem vocação para produtor/gestor. Não se é objectivo (contratação, inspecção, avaliação) quando se acumulam os papéis. Impõe-se por isso: separação de papéis; colher os benefícios do mercado;
2ª) O mercado será mais eficiente em várias áreas mas trará efeitos indesejados: i) fraude e problemas de qualidade; iii) criação de monopólios privados locais; ii) indução de actos e fragmentação de cuidados; iv) crescimento dos gastos de administração e da despesa global em saúde; v) provável necessidade de aumentar comparticipação dos doentes e problemas de equidade. O passo a dar deverá ser bem medido, recomendando-se gradualismo e experimentação.

5. Semelhanças/diferenças (NHS e SNS)

5.1. Portugal Vs GB
Apresentam-se de seguida alguns aspectos que concretizam a posição mais desfavorável de Portugal para evolução no sentido defendido pelo Relatório.

a) No NHS os MF eram originalmente “independent contractors” (agora mais de 70% são contratados, não assalariados). O fundador do NHS acreditava que seria esse estatuto e o pagamento por capitação (“and some fees”) que permitiria que doentes escolhessem o médico. Os cuidados primários funcionam bem e são reconhecidos (pela população e HH) ao contrário de Portugal, em que a oferta é muito funcionalizada (função e administração pública) e tem fraca performance. Os CC estão estabilizados e solidamente implantados na GB, em Portugal há ainda muito para fazer até estar no terreno a responder eficazmente. Em Portugal existem ainda muitos “problemas de rede” a resolver (RRH e sua implantação, dimensão e papel das Unidades, SU e SAP, etc.) – é também essencial disciplinar o acesso inapropriado ao SU e SAP e, em contrapartida, expandir significativamente o restante ambulatório (programado);
b) No que respeita à infra-estrutura em Portugal verificam-se debilidades em:
i) Sistema informático e soluções que liguem as Unidades do SNS, já que relativamente aos restantes prestadores essa possibilidade está muito longe (“call center” ainda não funciona);
ii) Contratualização: vítima de avanços e recuos constantes ao longo dos anos, com experiência reduzida e com problemas de recursos (qualificação, SI) e de poder de influência;
iii) Seja na gestão de Unidades ou nas ARS é pacífico que tem havido nos diversos governos muita politização de cargos. As ARS têm imagem, eventualmente injusta, mais de “correias de transmissão” e “correios” do MS que de entidades de gestão que auxiliam, ajudam e facilitam o bom desempenho na Região;
c) Portugal encontra-se significativamente pior no que respeita à medição, monitorização e avaliação:
i) Na GB a regulação parece funcionar: monitorização da performance através de conjunto de indicadores claramente definido e abrangente, auditorias e inspecções por múltiplas entidades, difusão pública e “accountability” consolidada e assumida por todos (partidos, gestores, população, etc.). Merece especial realce o funcionamento da Healthcare Commission com carácter independente, transversal e compreensivo (diferentes dimensões). Em Portugal não existe entidade correspondente e a ERS tarda a mostrar que existe e que faz alguma diferença;
ii) Há problemas na definição e normalização de indicadores, na garantia de fiabilidade, rigor e frescura da informação do SNS (relativamente às Unidades privadas com quem o SNS contrata a situação é ainda pior);
iii) Verifica-se em Portugal ausência de avaliação global (ou parcial com credibilidade) e quase que não há difusão pública/comprometimento dos responsáveis das Unidades;
d) Portugal envolveu-se num muito ambicioso programa de PPP, pela sua dimensão relativa e porque integra não apenas aspectos de edifício (como na GB) mas também a exploração de HH. Ora o acompanhamento da exploração é complexo e muito exigente, tanto mais que são inúmeras as possibilidades de um prestador sofisticado explorar em seu favor o contrato existente – tratando-se de Grupos em que pontificam os maiores bancos nacionais aquela sofisticação está garantida. Sendo conhecidas as debilidades do Estado no acompanhamento e controlo das despesas (que leva alguns AH a rotularem como “casos de polícia”algumas das aquisições de serviços de saúde) levantam-se questões sérias quanto à capacidade do SNS acompanhar e beneficiar deste projecto – pior caso se disperse por inúmeros projectos e relações com prestadores (“mercado de saúde”). Assim parte significativa da atenção e do Know-how concentrar-se-á neste programa;
e) Ao contrário da GB Portugal tem problemas sérios a ultrapassar no que respeita à área do medicamento e da logística (reduzir despesas): i) nos medicamentos mantém-se um gasto global por doente demasiado elevado, fruto no ambulatório de questões de prescrição (composição, quantidade), de preço e de mercado – nos HH é necessária intervenção vigorosa no sentido das melhores práticas e de aquisição conjunta; ii) pôr rapidamente a funcionar verdadeira Central de Aquisições; iii) melhorar o sistema de informação e de controlo de artigos (serviços), normalizando simultaneamente os prazos de pagamento;
f) Qualidade e segurança dos actos: i) no SNS é positiva e necessária a acreditação de HH (adoptou-se a da GB) mas não é suficiente; ii) alguns Grupos privados têm boas experiências no sistema de qualidade, faltando porventura o acompanhamento pelo SNS; ii) noutros prestadores privados a qualidade e segurança não existe (alguns funcionam sem licenciamento, sem médico permanente, sem verdadeiro processo clínico, etc.);
g) A GB tem boa eficiência macroeconómica medida pela % do PIB gasta globalmente em saúde (paridades de poder de compra) ao contrário de Portugal – sobra-nos por isso pouca margem para aumento de despesas (sem prévia racionalização), daí que o alargamento para um “mercado interno” deva ser cauteloso.

5.2. Agenda política
As áreas referidas no ponto anterior (5.1) integram, na generalidade, a difícil agenda política do MS e irão consumir em Portugal muita atenção, energia e capacidade de gestão do SNS, sendo previsível que o processo originará algum desgaste (ex. alínea “a”). Ainda que a agenda actual não fosse tão pesada (e é) não existiriam condições para avanço substancial nos próximos 3 anos no sentido do “mercado interno de saúde” porque:
Sem completar aquelas reformas e eliminar os pontos fracos referidos anteriormente não será possível avançar para uma verdadeira revolução na saúde;
Não existe acordo de regime para a saúde e em breve se começarão a “avistar” períodos eleitorais;
Não existe mandato político (programa eleitoralmente referendado) para a designada “revolução”, nem parece haver consenso no partido que suporta o governo para aquele avanço.
Semmisericórdia

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5 Comments:

Blogger Clara said...

Parabéns ao semmisericórdia por mais este excelente trabalho.

Entre nós temos ferverosos adeptos do benchmarketing.

Trata-se de uma técnica que evolve muitos e complexos riscos, pelo que há que ter o máximo de cuidado na transposição de experiências de outros países.

O estudo de várias experiências realizadas no âmbito do processo de reforma do NHS é ,no entanto,indispensável.
Nomeadamente ao nível da supervisão, fiscalização e regulação dos contratos de prestação de cuidados.

E aqui ressalta o potencial de informação e meios de informação de que os decisores da GB dispõem: produção, financeiros de controlo de qualidade.

CC devia ter começado pela reforma e implementação dos sistemas de informação da Saúde e não pelo anúncio dos MNSRM fora das farmácias.
Não dava tanto 'show off'.
mas teria sido muito mais útil para o actual processo de reforma, certamente.

1:05 da manhã  
Blogger HMR said...

Obrigada ao semmisericordia pelo trabalho que produziu;calculei que ele correspondia ao pedido.É de indispensável leitura, tal como outros que por aí tenho encontrado,para quem está a trabalhar ao nível da integração de cuidados(HH CP)e na contrução das prováveis ULS, porque os factores críticos para o sucesso destas novas entidades estão implicitos nesta análise do semmisericórdia. Mais tarde voltarei a este assunto.

Alensul

12:45 da tarde  
Blogger Xico do Canto said...

Ao sem SEMISERICORDIA os meus parabéns pelo bom trabalho de casa e, sobretudo, pelo espaço de reflexão crítica que proporcionou.

É bem evidente a disparidade entre o caminho já percorrido pelo SNS Inglês e o nosso. Não seria demais reclamar dos responsáveis pelo nosso SNS que saltassem etapas, no sentido do nosso desenvolvimento ou, pelo menos, que evitassem os erros cometidos.

Lá, como cá, a interferência dos políticos e a politização da gestão das unidades de saúde são um factor pernicioso de que urge desembaraçarmo-nos.

Lá, como cá, há espaço e necessidade de contarmos com a presença de prestadores privados e públicos retirando de cada um deles o que melhor têm para dar. Alguns cuidados de saúde assumem a natureza de bem público. Outros nem tanto e, por isso, ajustam-se à capacidade de resposta dos privados.

Lá, como cá, verificamos a incompatibilidade de, numa só entidade, estar concentrada as actividades de PRODUTOR/REGULADOR/FINANCIADOR.

Lá, como cá, o Estado deve remeter-se ao papel regulador.

Lá, como cá, o Estado é mau avaliador.

O sucesso dos CP contou com a não transformação dos GP em funcionários públicos. E, em Portugal, se CC quer ter algum sucesso com as sua experiências nos CSP deve ter isto em consideração.

Seria uma boa pedrada no charco a criação, em Portugal, duma entidade tipo Healthcare Commission. A ERS é mais Estado e pior Estado.

Quanto à agenda política … estamos bem tramados enquanto não sairmos da forte interferência política no SNS.

4:08 da tarde  
Blogger xavier said...

Caro NM
Os parabéns devem ser dados ao semmisericórdia que é o pai da criança.

Se nós soubessemos de Saúde tanto como CC e FR, tivéssemos um pouco da sua preparação, nem lhe sei dizer o que seríamos capazes de fazer.

Assim, para produzirmos alguma coisita nestas matérias, é um esforço dos diabos.

Temos,no entanto, orgulho de saber outras coisas, ter vivido e partilhado outras experiências, que nos fazem sentir, necessariamente, diferentes e felizes.

2:23 da manhã  
Blogger HMR said...

Concordo em pleno com o Xavier neste último comentário.Mas podemos ser úteis a FR e a CC, se assim o quiserem,com o nosso conhecimento e saber acumulado de algumas experiências vividas e que são certamente diferentes mas enriquecedoras.
Hoje resolvi, com certeza, alimentar não só o meu ego como o de alguns leitores do nosso blog!São as férias que estão à porta.

11:09 da manhã  

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