Será assim que se defende o serviço público?
O Estado dá aos funcionários públicos doentes com cancro
medicamentos que recusa aos restantes portugueses com a mesma doença. Nos
hospitais públicos, o Governo obriga os médicos a prescrever somente
terapêuticas aprovadas após um demorado processo, enquanto nos hospitais
privados paga, na íntegra, aos beneficiários da ADSE (funcionários públicos do
sector administrativo) os remédios logo que entram no mercado nacional.
Ministério da Saúde não revela quantos novos medicamentos
para o cancro esperam para entrar no Serviço Nacional de Saúde (SNS) alegando
que prejudicaria a negociação. No entanto, há alguns casos já conhecidos. O
axitinib para o cancro renal e a abiraterona para o da próstata metastizado,
ainda em avaliação para comparticipação no SNS e recusados por hospitais
públicos (a abiraterona, por exemplo, nos três IPO), são dados pela ADSE nos
privados.
E a diferença no tratamento dos cidadãos também se verifica
noutras doenças cuja terapêutica tem igualmente o apoio total do Estado e para
as quais surgem fármacos inovadores. Caso dos medicamentos biológicos para a
artrite reumatoide ou doença de Crohn.
O Ministério das Finanças, responsável pela ADSE até 2014,
confirma a discrepância de critérios. “Há comparticipações/cofinanciamentos da
ADSE a 100% para os medicamentos antineoplásicos” e essas “comparticipações
para a oncologia (e não só) aplicam-se a medicamentos autorizados pelas
autoridades europeia e nacional.” Ou seja, no privado as novidades ficam
disponíveis de imediato para a ADSE. “A abiraterona é um antineoplásico
comparticipado a 100% pela ADSE, aprovado em toda a UE em setembro de 2011 e
comercializado desde outubro” explica o gabinete de Maria Luís Albuquerque. Contudo
este medicamento ainda está em avaliação para comparticipação no SNS.
O ministro da Saúde, Paulo Macedo, limita-se a dizer que
desconhece a política do medicamento da ADSE. Ainda assim, garante que
“continuará a trabalhar para garantir a equidade no acesso ao medicamento e ao
tratamento a quem recorra ao serviço publico de saúde”, salientando que o novo
“formulário é um instrumento importante para garantir esta mesma equidade”.
Situação “aberrante”
Dos grandes grupos privados de Saúde só o HPP, responsável
pelo Hospital dos Lusíadas, respondeu ao Expresso. Os gestores confirmaram os
privilégios dos funcionários públicos, garantindo que “são alvo de uma
criteriosa análise sob o ponto de vista clínico e, se devidamente
fundamentados, podem ser pagos pela ADSE”. Mas reconhecem: “Entidades como a
ADSE demonstram grande sensibilidade para com os beneficiários.”
Miguel Oliveira da Silva, presidente do Conselho Nacional de
Ética para as Ciências da Vida e responsável pelo parecer considerado por
vários peritos da Saúde como a apologia ao racionamento, diz agora que a
diferença de tratamento a favor dos funcionários públicos “só pode ser um
lapso”, que, acredita, “será corrigido imediatamente”. Os administradores dos
hospitais públicos dão igualmente o benefício da dúvida. “As várias entidades
não terão ainda concluído a avaliação de alguns medicamentos que,
eventualmente, poderão já estar a ser prescritos a beneficiários da ADSE em
hospitais privados”, admite a presidente da Associação de Administradores
Hospitalares, Marta Temido. Já a responsável pela Sociedade Portuguesa para a
Qualidade na Saúde, Margarida França, salienta que “a ADSE tem uma componente
financeira direta dos beneficiários que se pode entender como autonomia de
decisão das regras de comparticipação”.
Foi a necessidade de cortes na Saúde, com a fatura com
medicamentos ‘à cabeça’, que acentuou as diferenças. Os médicos já não
conseguem contornar a burocracia, porque a teia tem menos pontos de fuga. E em
junho o Ministério fez outro aperto: os fármacos no SNS têm agora de passar
também pelo crivo de uma comissão nacional.
“O SNS e a ADSE dependem do Governo, mas os critérios para a
utilização do mesmo medicamento são diferentes, o que gera natural
perplexidade, sobretudo quando estão em causas doenças graves”, critica a
responsável hospitalar Marta Temido. Já o bastonário da Ordem dos Médicos, José
Manuel Silva, diz que a situação “é absolutamente imoral” e acusa o Ministério
de tornar a aprovação de medicamentos no SNS “exagerada e deliberadamente lenta”.
Na sua opinião, a recente imposição do formulário de medicamentos no sector
público será “mais um fator de bloqueio à inovação”.
“Aberrante” é como o presidente da Sociedade Portuguesa de
Oncologia classifica as diferenças de tratamento. Joaquim Abreu de Sousa é
taxativo: “Coloquem os gabinetes a trabalhar para evitar estas lacunas.”
Aconselha ainda Paulo Macedo a atualizar o formulário para não travar o que há
de novo.
E a única seguradora no país com uma apólice só para cancro
está a crescer. Desde 2012, soma dez mil apólices. “Um dos benefícios
importantes é o pagamento de medicamentos aprovados pelo Infarmed e não
comparticipados pelo SNS”, explica o diretor da Combined em Portugal, Rahim
Firozali.
Expresso 17.08.13
Etiquetas: Paulo Macedo
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