domingo, agosto 18

Será assim que se defende o serviço público?

Terapêutica recusada no SNS é dada pela ADSE em hospitais particulares
O Estado dá aos funcionários públicos doentes com cancro medicamentos que recusa aos restantes portugueses com a mesma doença. Nos hospitais públicos, o Governo obriga os médicos a prescrever somente terapêuticas aprovadas após um demorado processo, enquanto nos hospitais privados paga, na íntegra, aos beneficiários da ADSE (funcionários públicos do sector administrativo) os remédios logo que entram no mercado nacional.
Ministério da Saúde não revela quantos novos medicamentos para o cancro esperam para entrar no Serviço Nacional de Saúde (SNS) alegando que prejudicaria a negociação. No entanto, há alguns casos já conhecidos. O axitinib para o cancro renal e a abiraterona para o da próstata metastizado, ainda em avaliação para comparticipação no SNS e recusados por hospitais públicos (a abiraterona, por exemplo, nos três IPO), são dados pela ADSE nos privados.
E a diferença no tratamento dos cidadãos também se verifica noutras doenças cuja terapêutica tem igualmente o apoio total do Estado e para as quais surgem fármacos inovadores. Caso dos medicamentos biológicos para a artrite reumatoide ou doença de Crohn.
O Ministério das Finanças, responsável pela ADSE até 2014, confirma a discrepância de critérios. “Há comparticipações/cofinanciamentos da ADSE a 100% para os medicamentos antineoplásicos” e essas “comparticipações para a oncologia (e não só) aplicam-se a medicamentos autorizados pelas autoridades europeia e nacional.” Ou seja, no privado as novidades ficam disponíveis de imediato para a ADSE. “A abiraterona é um antineoplásico comparticipado a 100% pela ADSE, aprovado em toda a UE em setembro de 2011 e comercializado desde outubro” explica o gabinete de Maria Luís Albuquerque. Contudo este medicamento ainda está em avaliação para comparticipação no SNS.
O ministro da Saúde, Paulo Macedo, limita-se a dizer que desconhece a política do medicamento da ADSE. Ainda assim, garante que “continuará a trabalhar para garantir a equidade no acesso ao medicamento e ao tratamento a quem recorra ao serviço publico de saúde”, salientando que o novo “formulário é um instrumento importante para garantir esta mesma equidade”.
Situação “aberrante”
Dos grandes grupos privados de Saúde só o HPP, responsável pelo Hospital dos Lusíadas, respondeu ao Expresso. Os gestores confirmaram os privilégios dos funcionários públicos, garantindo que “são alvo de uma criteriosa análise sob o ponto de vista clínico e, se devidamente fundamentados, podem ser pagos pela ADSE”. Mas reconhecem: “Entidades como a ADSE demonstram grande sensibilidade para com os beneficiários.”
Miguel Oliveira da Silva, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e responsável pelo parecer considerado por vários peritos da Saúde como a apologia ao racionamento, diz agora que a diferença de tratamento a favor dos funcionários públicos “só pode ser um lapso”, que, acredita, “será corrigido imediatamente”. Os administradores dos hospitais públicos dão igualmente o benefício da dúvida. “As várias entidades não terão ainda concluído a avaliação de alguns medicamentos que, eventualmente, poderão já estar a ser prescritos a beneficiários da ADSE em hospitais privados”, admite a presidente da Associação de Administradores Hospitalares, Marta Temido. Já a responsável pela Sociedade Portuguesa para a Qualidade na Saúde, Margarida França, salienta que “a ADSE tem uma componente financeira direta dos beneficiários que se pode entender como autonomia de decisão das regras de comparticipação”.
Foi a necessidade de cortes na Saúde, com a fatura com medicamentos ‘à cabeça’, que acentuou as diferenças. Os médicos já não conseguem contornar a burocracia, porque a teia tem menos pontos de fuga. E em junho o Ministério fez outro aperto: os fármacos no SNS têm agora de passar também pelo crivo de uma comissão nacional.
“O SNS e a ADSE dependem do Governo, mas os critérios para a utilização do mesmo medicamento são diferentes, o que gera natural perplexidade, sobretudo quando estão em causas doenças graves”, critica a responsável hospitalar Marta Temido. Já o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, diz que a situação “é absolutamente imoral” e acusa o Ministério de tornar a aprovação de medicamentos no SNS “exagerada e deliberadamente lenta”. Na sua opinião, a recente imposição do formulário de medicamentos no sector público será “mais um fator de bloqueio à inovação”.
“Aberrante” é como o presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia classifica as diferenças de tratamento. Joaquim Abreu de Sousa é taxativo: “Coloquem os gabinetes a trabalhar para evitar estas lacunas.” Aconselha ainda Paulo Macedo a atualizar o formulário para não travar o que há de novo.
E a única seguradora no país com uma apólice só para cancro está a crescer. Desde 2012, soma dez mil apólices. “Um dos benefícios importantes é o pagamento de medicamentos aprovados pelo Infarmed e não comparticipados pelo SNS”, explica o diretor da Combined em Portugal, Rahim Firozali.
Expresso 17.08.13

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