José Ponte, entrevista
Os médicos ficariam
vinculados ao SNS?
Porque não? Formar um médico custa 100 mil euros. Depois a
formação pós-graduada são mais 300 mil a 400 mil euros. Ao fim dos dez anos de
formação dá quase meio milhão. Se quando se acaba uma especialidade em
oftalmologia ou dermatologia e a pessoa vai para o privado ou está a meio gás,
para que foi o investimento? O contribuinte pagou meio milhão e eu faço, perdoe
a expressão, um manguito ao contribuinte e vou para o privado. Acho isto
profundamente imoral.
Mas como é que
vinculava os médicos?
Hoje já temos pessoas que vão fazer a especialidade através
da Marinha, mas têm de lá ficar pelo menos seis anos. Façam-se as contas e
chega-se a um cálculo de quanto tempo é preciso para retribuir o investimento
avultado que o Estado fez. Mas vê isso debatido? Não.
Ser contracorrente
tem-lhe custado alguma coisa?
Disse a um jornal que as cirurgias no Algarve estavam a
piorar. Chamaram-me a atenção, mas porque é que eu vou esconder aquilo que
vejo? Se vejo coisas mal, digo. Se vejo uma mortalidade acima do que é concebível,
denuncio. Precisamos de auditorias sérias. Não sabemos no nosso país a
mortalidade em cirurgia por serviço ou especificamente em anestesia. Os
próprios colégios da especialidade deviam pensar a formação de modo a responder
a essas necessidades ou lacunas concretas.
Isso acontece em
Inglaterra?
Se hoje morrer um doente no Norte de Inglaterra por causa da
anestesia, vou ter um email do colégio a dizer que este instrumento ou este
pormenor da formação falhou. Cá, além de falta de informação, não existe um
mecanismo para impedir as pessoas de praticar enquanto não se esclarece o que
se passou. Lá há uma queixa e há uma suspensão preventiva. O médico vai para
casa com salário mas previne--se que repita o erro.
Há ideia que temos um
dos melhores sistemas de saúde do mundo. Concorda?
Isso é baseado em dois ou três indicadores, como a
mortalidade infantil e a longevidade. Costumo dar o exemplo de um amigo que
vive na Nigéria e me diz que Lagos é a cidade mais segura para andar de carro,
não há acidentes. Não há acidentes porque não se registam. Eu não digo que é
mau, Espanha não está mais avançado e Itália é pior.
Mas não vemos
diariamente doentes a queixarem-se ou mortes por negligência.
Não se vê mais porque não é mediático e as pessoas não estão
sensibilizadas. No Hospital de Faro três doentes receberam transfusões de
sangue erradas. Em vez de se avaliar o circuito e identificar lacunas, abriu-se
um inquérito. As pessoas perante o inquérito escondem, não se apura nada. É um
estado de coisas orwelliano, a realidade não é aquilo que aconteceu, é aquilo
que fica escrito. Enquanto isto não mudar não melhoramos. Estou convencido que
a mortalidade hospitalar é acima do esperado no Algarve. Muitos dos nossos
alunos são enfermeiros, andaram pelo país e todos têm exemplos. É uma
enfermidade do sistema na globalidade. Penso que enquanto os colégios da
especialidade também estiverem debaixo do chapéu do conselho nacional da Ordem
não será possível um maior escrutínio.
Jornal I, Marta F. Reis publicado em 3 Out 2013 link
Extratos de uma entrevista, que merece leitura na
íntegra, ao responsável cessante do curso de Medicina na Universidade do
Algarve.
Tavisto
Etiquetas: Entrevistas, Tá visto
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