A crise na Saúde
... Julgo que existe atualmente evidência suficiente para
identificar um aumento dos desajustamentos entre aquilo que a oferta de
cuidados de saúde do SNS, cujos recursos têm diminuído, e as necessidades de
saúde da população, que têm aumentado, para um segmento significativo dos
portugueses, no decurso a crise em curso.
A questão de saber até que ponto esses desajustamentos são
percebidos como "rotura"; até que ponto serão socialmente toleráveis.
Aparentemente, a tolerância é elevada por parte do sistema
político - particularmente pelas forças do chamado "arco da
governação" e dos seus principais comentadores. Mas os desajustamentos são
cada vez mais mal tolerados pelos profissionais de saúde, e são inaceitáveis
para uma parte significativa da população portuguesa que depende exclusivamente
do SNS.
Demoras
A que mais me impressionou ultimamente foi a recentemente
descrita pela Direção Geral da Saúde relativa às cirurgias oncológicas: o
número de doentes oncológicos operados diminuiu entre 2011 e 2012, pela
primeira vez, em 6 anos. O número de doentes cancerosos operados com uma demora
superior à desejável subiu 17,5% no mesmo período.
Indispensável
Os dados disponíveis, sendo preocupantes, não chegam para
suportar uma estratégia de ação informada. Para ser breve, dois tipos de
iniciativas parecem-me indispensáveis, desde há muito.
A primeira seria um levantamento (obviamente, mais fiável do
que politicamente correto) sobre os estrangulamentos do acesso aos meios de
diagnóstico e terapêutica, centro de saúde a centro de saúde, hospital a
hospital.
A segunda consistiria no desenho de um conjunto de
estratégias de proteção da saúde, concelho a concelho, articulando saúde, ação
social, autarquias, centros de emprego, Misericórdias, escolas, farmácias,
ONGs, empresas e associações sindicais e outras, com a intenção de identificar
e proteger as famílias mais ameaçadas no seu bem-estar. Porque esperam?
Resiliência
A insensibilidade para as consequências dos desajustamentos
no SNS tem-se escudado no termo resiliência. Justificar-se-ia se o que
estivesse a acontecer fosse uma resposta adaptativa das pessoas e do sistema de
saúde às circunstâncias adversas em que vivemos, evitando com sucesso os
efeitos nocivos da crise sobre a saúde. Não é, obviamente, o que está a
acontecer. Resiliência aqui significa simplesmente "aguentar,
aguentar" essas consequências deletérias, viver com elas melhor ou pior.
Isso não é resiliência.
"Resiliência" é uma expressão verdadeiramente
despudorada quando utilizada por aqueles que não sofrem com a crise para negar
o seu impacto naqueles que dela dificilmente se podem defender.
Causas
Tendo em vista o acréscimo das necessidades registaram-se,
no orçamento operacional do SNS, demasiados cortes em demasiado pouco tempo,
especialmente tendo em vista o acréscimo de necessidades.
Há também o saldo substancialmente negativo entre as saídas
e entradas de profissionais no SNS, pelo menos desde 2010. Assim, temos menos
profissionais (e entre os que saíram-se estão muitos altamente qualificados),
tentando responder a maiores necessidades de saúde, em piores condições de
trabalho, com cortes nos vencimentos superiores a 20%, e com ameaças periódicas
às suas aposentações.
O efeito dos cortes orçamentais e o profundo desrespeito
pela situação dos profissionais do SNS, sobrepõe-se a qualquer outro fator
explicativo.
Grande Teatro
Chegamos aqui por duas vias. A primeira, de longo curso, não
começou há três anos vem muito de trás. Um SNS é das construções mais complexas
e exigentes que um país pode ter. Não se faz com o amadorismo dos "amigos
do bairro". Mas de alguma forma, as nossas lideranças têm tido dificuldade
em entender as necessidades críticas para o seu desenvolvimento - um refinado
pensamento estratégico e de calibradíssimos instrumentos de influência. Por
outro lado, fomos transformando o SNS numa espécie de oferta benigna do Estado
às pessoas. E ele não é nada disso. É antes a expressão de um contrato social
entre nós, de uns com os outros. O Estado, como gestor do contrato tem de nos
prestar contas - o que sistematicamente não faz - e as pessoas, suas
proprietárias, têm que assumir responsabilidades.
A segunda via é mais recente. Portanto, mais óbvia.
Face a uma crise económica associada a severas medidas de
austeridade, faz parte das boas práticas de saúde pública procurar antecipar,
prever, o mais precocemente possível os seus efeitos sobre o bem-estar da
população - o que, aliás, está expresso nos tratados europeus. Só assim é
possível monitorizar imediatamente, intervir cedo, e até ter argumentos
objetivos para negociar algum suavizar da austeridade excessiva. Todos os
relatórios da OMS são taxativos nesta matéria!
Mas, por alguma razão, aqueles que tinham a obrigação de
aconselhar o Ministro da Saúde a ir por esse caminho não o fizeram. E já sabemos que em política,
os erros não se confessam, nem corrigem.
Por outro lado, os representantes da Comissões Europeia na
troika, também não prestaram qualquer atenção a esta sua obrigação. A lógica
subjacente a este "esquecimento" é evidente: o programa de
austeridade esta condenado pelos seus arquitetos a ter "sucesso",
independente do seu custo social. E a melhor forma de reclamar esse sucesso é
ignorar esses custos. É o Grande Teatro.
Negação
Do Grande Teatro decorre que qualquer má notícia na saúde
seja imediatamente minimizada e desvalorizada. Isso tem péssimas implicações.
Quando acontecem coisas que não é possível ignorar, a reação arrisca ser tardia
e as promessas de solução imediata irrealistas. Uma outra reação a este
"estado de negação" - nacional e internacional - é a daqueles que
justamente se indignam com tanta negação, acabando por ser levados
ocasionalmente a exagerar no sentido oposto.
Remédio
Podemos tê-lo, se assim o quisermos. O ministro da Saúde,
homem de conhecida probidade, afirma-se defensor do SNS. E eu acredito.
Melhorar no volume e na qualidade da despesa é uma contribuição importante.
Mas, depois, é preciso tratar das contradições: como é possível à tutela do SNS
pensar que o setor social pode melhorar em 20-25% a gestão de hospitais do SNS
em relação a aquilo que é capaz de fazer o SNS? Como é possível cortar o
orçamento dos hospitais do SNS com gestão pública e aumentar os de gestão
privada? Porque estes têm contrato? E os outros, coitados, não têm? Como é
possível ser mais barato para um beneficiário da ADSE ir a uma urgência privada
do que a uma pública?
O País tem seguramente a inteligência, a imaginação, a e
muitas das competências técnicas necessárias para proteger, modernizando, o seu
SNS.
Necessita de um enquadramento cívico e político para
mobilizar e fazer valer essas potencialidades.
O discurso "não temos dinheiro, temos que cortar"
é deprimentemente incompetente e só pode levar a um ciclo vicioso de
subdesenvolvimento. O discurso, a ação cívica e política que necessitamos,
situa-se nos seus antípodas. Para isso temos que sair do Grande Teatro,
partilhar factos, aceites por todos como tais, encarar o futuro com o atrevimento
e a confiança daqueles que sabem onde querem chegar.link
Constantino Sakellarides, visão 29.01.13
Etiquetas: s.n.s
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