quarta-feira, janeiro 29

A crise na Saúde

... Julgo que existe atualmente evidência suficiente para identificar um aumento dos desajustamentos entre aquilo que a oferta de cuidados de saúde do SNS, cujos recursos têm diminuído, e as necessidades de saúde da população, que têm aumentado, para um segmento significativo dos portugueses, no decurso a crise em curso.
A questão de saber até que ponto esses desajustamentos são percebidos como "rotura"; até que ponto serão socialmente toleráveis.
Aparentemente, a tolerância é elevada por parte do sistema político - particularmente pelas forças do chamado "arco da governação" e dos seus principais comentadores. Mas os desajustamentos são cada vez mais mal tolerados pelos profissionais de saúde, e são inaceitáveis para uma parte significativa da população portuguesa que depende exclusivamente do SNS.
Demoras
A que mais me impressionou ultimamente foi a recentemente descrita pela Direção Geral da Saúde relativa às cirurgias oncológicas: o número de doentes oncológicos operados diminuiu entre 2011 e 2012, pela primeira vez, em 6 anos. O número de doentes cancerosos operados com uma demora superior à desejável subiu 17,5% no mesmo período.
Indispensável
Os dados disponíveis, sendo preocupantes, não chegam para suportar uma estratégia de ação informada. Para ser breve, dois tipos de iniciativas parecem-me indispensáveis, desde há muito.
A primeira seria um levantamento (obviamente, mais fiável do que politicamente correto) sobre os estrangulamentos do acesso aos meios de diagnóstico e terapêutica, centro de saúde a centro de saúde, hospital a hospital.
A segunda consistiria no desenho de um conjunto de estratégias de proteção da saúde, concelho a concelho, articulando saúde, ação social, autarquias, centros de emprego, Misericórdias, escolas, farmácias, ONGs, empresas e associações sindicais e outras, com a intenção de identificar e proteger as famílias mais ameaçadas no seu bem-estar. Porque esperam?
Resiliência
A insensibilidade para as consequências dos desajustamentos no SNS tem-se escudado no termo resiliência. Justificar-se-ia se o que estivesse a acontecer fosse uma resposta adaptativa das pessoas e do sistema de saúde às circunstâncias adversas em que vivemos, evitando com sucesso os efeitos nocivos da crise sobre a saúde. Não é, obviamente, o que está a acontecer. Resiliência aqui significa simplesmente "aguentar, aguentar" essas consequências deletérias, viver com elas melhor ou pior. Isso não é resiliência.
"Resiliência" é uma expressão verdadeiramente despudorada quando utilizada por aqueles que não sofrem com a crise para negar o seu impacto naqueles que dela dificilmente se podem defender.
Causas
Tendo em vista o acréscimo das necessidades registaram-se, no orçamento operacional do SNS, demasiados cortes em demasiado pouco tempo, especialmente tendo em vista o acréscimo de necessidades.
Há também o saldo substancialmente negativo entre as saídas e entradas de profissionais no SNS, pelo menos desde 2010. Assim, temos menos profissionais (e entre os que saíram-se estão muitos altamente qualificados), tentando responder a maiores necessidades de saúde, em piores condições de trabalho, com cortes nos vencimentos superiores a 20%, e com ameaças periódicas às suas aposentações.
O efeito dos cortes orçamentais e o profundo desrespeito pela situação dos profissionais do SNS, sobrepõe-se a qualquer outro fator explicativo.
Grande Teatro
Chegamos aqui por duas vias. A primeira, de longo curso, não começou há três anos vem muito de trás. Um SNS é das construções mais complexas e exigentes que um país pode ter. Não se faz com o amadorismo dos "amigos do bairro". Mas de alguma forma, as nossas lideranças têm tido dificuldade em entender as necessidades críticas para o seu desenvolvimento - um refinado pensamento estratégico e de calibradíssimos instrumentos de influência. Por outro lado, fomos transformando o SNS numa espécie de oferta benigna do Estado às pessoas. E ele não é nada disso. É antes a expressão de um contrato social entre nós, de uns com os outros. O Estado, como gestor do contrato tem de nos prestar contas - o que sistematicamente não faz - e as pessoas, suas proprietárias, têm que assumir responsabilidades.
A segunda via é mais recente. Portanto, mais óbvia.
Face a uma crise económica associada a severas medidas de austeridade, faz parte das boas práticas de saúde pública procurar antecipar, prever, o mais precocemente possível os seus efeitos sobre o bem-estar da população - o que, aliás, está expresso nos tratados europeus. Só assim é possível monitorizar imediatamente, intervir cedo, e até ter argumentos objetivos para negociar algum suavizar da austeridade excessiva. Todos os relatórios da OMS são taxativos nesta matéria!
Mas, por alguma razão, aqueles que tinham a obrigação de aconselhar o Ministro da Saúde a ir por esse caminho  não o fizeram. E já sabemos que em política, os erros não se confessam, nem corrigem.
Por outro lado, os representantes da Comissões Europeia na troika, também não prestaram qualquer atenção a esta sua obrigação. A lógica subjacente a este "esquecimento" é evidente: o programa de austeridade esta condenado pelos seus arquitetos a ter "sucesso", independente do seu custo social. E a melhor forma de reclamar esse sucesso é ignorar esses custos. É o Grande Teatro.
Negação
Do Grande Teatro decorre que qualquer má notícia na saúde seja imediatamente minimizada e desvalorizada. Isso tem péssimas implicações. Quando acontecem coisas que não é possível ignorar, a reação arrisca ser tardia e as promessas de solução imediata irrealistas. Uma outra reação a este "estado de negação" - nacional e internacional - é a daqueles que justamente se indignam com tanta negação, acabando por ser levados ocasionalmente a exagerar no sentido oposto.
Remédio
Podemos tê-lo, se assim o quisermos. O ministro da Saúde, homem de conhecida probidade, afirma-se defensor do SNS. E eu acredito. Melhorar no volume e na qualidade da despesa é uma contribuição importante. Mas, depois, é preciso tratar das contradições: como é possível à tutela do SNS pensar que o setor social pode melhorar em 20-25% a gestão de hospitais do SNS em relação a aquilo que é capaz de fazer o SNS? Como é possível cortar o orçamento dos hospitais do SNS com gestão pública e aumentar os de gestão privada? Porque estes têm contrato? E os outros, coitados, não têm? Como é possível ser mais barato para um beneficiário da ADSE ir a uma urgência privada do que a uma pública?
O País tem seguramente a inteligência, a imaginação, a e muitas das competências técnicas necessárias para proteger, modernizando, o seu SNS.
Necessita de um enquadramento cívico e político para mobilizar e fazer valer essas potencialidades. 
O discurso "não temos dinheiro, temos que cortar" é deprimentemente incompetente e só pode levar a um ciclo vicioso de subdesenvolvimento. O discurso, a ação cívica e política que necessitamos, situa-se nos seus antípodas. Para isso temos que sair do Grande Teatro, partilhar factos, aceites por todos como tais, encarar o futuro com o atrevimento e a confiança daqueles que sabem onde querem chegar.link

Constantino Sakellarides, visão 29.01.13

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