SNS: Dúvidas e incertezas
Recorrentemente, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) centraliza o foco da discussão pública e política. Certamente, pela condição de ser visto como um dos poucos valores seguros da democracia que poucos ousam pôr em causa.
Na maior parte das vezes, o que se discute não são os seus fundamentos, defeitos ou virtudes, ou até mesmo a sua existência, mas essencialmente quem faz jus proclamatório à sua melhor defesa. Quantas vezes tal acontece até por aqueles que, paradoxalmente, pouco ou nada têm a ganhar com a sua vitalidade, bom desempenho e eficácia.
Como discernir então, no meio da retórica política, os lados da razão, os bons argumentos e a sinceridade dos propósitos? Não parece fácil porque os diferentes atores refugiam-se, quase sempre, na coreografia mediática e no debate esquivado às questões essenciais:
- Estará, afinal hoje, o SNS melhor do que estava antes da intervenção externa?
- Cumprirá melhor a sua missão constitucional?
- Terá vencido os temores da insustentabilidade?
Não é fácil responder a cada uma das questões formuladas. Vale a pena, contudo, refletir, serenamente, sobre alguns dos aspetos que marcaram a vida do SNS nos últimos dois anos. De uma forma geral, os cidadãos e os agentes do sistema interiorizaram a necessidade de eficiência, de transparência e de rigor no escrutínio dos recursos públicos.
No sector do medicamento foram introduzidas medidas corretivas, ao nível do preço e das margens, tendo sido desenvolvido um circuito de prescrição mais transparente e mais seguro com um expressivo incremento da quota de mercado de genéricos. Ainda assim, as medidas transversais aplicadas foram, nalguns casos, além do razoável levando a um colapso do sector com consequências conhecidas ao nível da distribuição, da exportação paralela e da grave falta de medicamentos nas farmácias.
Destas medidas de política, na área do medicamento, resultaram importantes e necessárias poupanças que, associadas aos cortes remuneratórios, deram a aparente noção de que a sustentabilidade económica seria possível.
Por detrás deste aparente sucesso esconde-se, no entanto, um imenso manto de frustração face ao que deveria ter resultado do cumprimento das obrigações de reforma sectorial decorrentes do memorando de entendimento assinado em maio de 2011. A reforma dos cuidados de saúde primários e continuados estagnou limitando a capacidade de resposta, sobretudo nas grandes cidades, às necessidades agravadas pela degradação das condições económicas e sociais. Tal resultou na recolocação dos hospitais no vértice central da resposta assistencial agravando as respetivas condições de funcionamento e a qualidade na resposta ao mesmo tempo que se foi acentuando um significativo agravamento da despesa direta das famílias com a saúde.
Os aspetos centrais de uma reforma estrutural, duradoura, capaz de garantir a libertação de meios para a sustentabilidade do SNS, ficaram pelo caminho. São disso exemplos a reorganização das urgências, a reestruturação e a requalificação da rede hospitalar, a gestão estratégica dos recursos humanos e a avaliação, eficaz e independente, das tecnologias de saúde.
Em saúde, a demagogia e a exploração emocional dos factos é imoral e eticamente inaceitável. Da mesma forma, a desdramatização sistemática e a negação no reconhecimento dos sinais de disfunção do sistema não serve, seguramente, em nenhuma circunstância, a defesa do interesse público.
Adalberto Campos Fernandes, DN 27.01.14
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