SNS, morte lenta
Numa década,
os hospitais privados conquistaram uma dimensão e um peso significativo em
Portugal. Em 2012, já eram responsáveis por mais de um quarto (28%) do total
das consultas externas e por quase 12% das urgências. Entre 2002 e 2012, enquanto
as unidades públicas perderam cerca de três mil camas, as privados passaram a
dispor de mais 1400. No total, dispunham, em 2012, de mais de nove mil camas,
uma oferta que corresponde a mais de um quarto da capacidade de internamento
hospitalar no país. São dados do inquérito aos hospitais do Instituto Nacional
de Estatística (INE), que, antecipando o Dia Mundial da Saúde, traçou ontem uma
espécie de retrato da evolução do sector entre 2002 e 2012.
Enquanto o
número de hospitais privados passou de 94 para 104, nesta década, o dos
hospitais tutelados pelo Estado, na designação do INE (que inclui os 103 de
acesso universal e sete militares e prisionais), manteve-se relativamente
estável. O crescimento do sector privado ficou a dever-se sobretudo à abertura
de unidades de grande dimensão, pertencentes a importantes grupos económicos.
Ao longo
desta década, as consultas externas dispararam, tantos nos hospitais públicos
como nos privados. Mas o aumento foi mais acentuado no sector privado, que, em
2010, fez mais de 4,5 milhões de consultas, enquanto os hospitais do Serviço
Nacional de Saúde realizaram cerca de 12 milhões.
Nas
urgências, o número de atendimentos manteve-se relativamente estável no sector
público até 2010, e depois diminuiu 4,8% em 2011 e 2012, enquanto nos privados
praticamente duplicou neste período (passou de 460 mil em 2002 para mais de 800
mil, em 2012). Também as grandes e médias cirurgias diminuíram em 2011 e 2012,
depois de terem crescido até 2010, assinala o INE.
“Muito
satisfeito” com estes dados, o presidente da Associação de Hospitalização
Privada, Artur Osório, acredita que são uma prova de que o sector privado “se
afirmou como uma alternativa” ao público, deixando de se identificar com
“aquelas casas de saúde que eram só para os ricos”.
Já Marta
Temido, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares,
encara este boom do sector privado com alguma “preocupação”. Pode, especula,
“estar a crescer para ocupar o espaço a que o serviço público não consegue dar
resposta”.
Quebra
abrupta nos exames
O dado mais
surpreendente revelado neste retrato do INE é, aliás, o da quebra abrupta no
número de análises clínicas e exames (actos complementares de diagnóstico)
verificada nos hospitais públicos, de 2010 para 2012. Foram menos cerca de 44
milhões de análises e exames (como radiografias, endoscopias, etc.) e menos 2,6
milhões de actos complementares de terapêutica (como fisioterapia e
radioterapia), uma quebra da ordem dos 27%. Ao mesmo tempo, as unidades
privadas aumentaram substancialmente a sua actividade nestas duas áreas, ainda
que isso não tenha sido suficiente para compensar a redução verificada no
sector público.
A redução nos
meios complementares de diagnóstico decorre do “avanço tecnológico” que “reduz
a multiplicidade de exames, permitindo um diagnóstico mais célere”, explicou,
em resposta escrita enviada ao PÚBLICO, a Administração Central do Sistema de
Saúde (ACSS). “A sofisticação dos actos de diagnóstico evita a proliferação de
actos menos diferenciados”, justifica a ACSS, que dá o exemplo da área da
imagem, onde a “democratização da ressonância magnética e tomografia
computadorizada substitui a necessidade de recurso a vários exames da
radiologia convencional”. Uma TAC “substitui várias radiografias
convencionais”, acrescenta.
O mesmo
acontece com as análises clínicas e com a medicina física e reabilitação, a
diálise e a radioterapia, com a “sofisticação dos equipamentos e técnicas” a
permitir “uma redução dos actos praticados”. Outra explicação avançada pela
ACSS passa pela alteração da forma de registo, que evoluiu, nalgumas
instituições, para “registos compostos de vários actos”.
Relativamente
à diminuição no número de camas, para a ACSS esta é uma consequência do aumento
da cirurgia de ambulatório (que não implica internamento) — e que passou de 10%
em 2002 para 53,8% em 2012 — e do desenvolvimento da rede de cuidados
continuados. “No final de 2012, a rede de cuidados continuados assumia 5911
camas, muito acima da redução de camas de agudos. Este é um feito desejável e
em linha com todas as recomendações internacionais”, assinala.
António
Taveira, da Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos, Armando Santos, da
Federação Nacional dos Prestadores de Cuidados de Saúde, e o ex-bastonário da
Ordem dos Médicos Germano Sousa têm uma explicação mais simples: todos
acreditam que este decréscimo fica a dever-se sobretudo aos cortes orçamentais
decretados nos últimos anos.
Uma boa
notícia neste retrato do INE é a de que aumentou substancialmente o número de
médicos e enfermeiros, mais 10 mil e mais 23 mil, respectivamente. Na
mortalidade, já se sabia que se morre cada vez menos devido a doenças
cardiovasculares (a redução, em termos de taxa bruta, é de 21% em dez anos),
mas aumentaram os óbitos por tumores malignos (mais 14,1% entre 2002 e 2012).
Também a
esperança média de vida continua a aumentar. A má notícia para os portugueses é
a de que, apesar de viverem mais tempo, têm menos “anos de vida saudável” do
que os cidadãos de outros países da União Europeia. As mulheres são as mais
penalizadas: em 2011, uma portuguesa podia esperar, em média, viver sem
limitações de longa duração até aos 58,6 anos, enquanto nos homens os “anos de
vida saudável” se prolongavam até aos 60,7 anos.
Alexandra Campos, JP 05.04.14
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